segunda-feira, 19 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE – Uma Visão Pessoal


Capitulo I – A Origem

Há muito tenho pensado em escrever sobre a cidade do Recife. Mas precisamente sobre suas incoerências e contradições. Confesso que como residente do centro da cidade, me tornei de certa forma um “voyeur social” e gosto de observar, muitas vezes de minha janela, pessoas e comportamentos. E é engraçado perceber o quanto podemos nos integrar num processo coletivo que poderíamos chamar vulgarmente de “big brother urbano”, ou mais sofisticadamente como “grand frère urbain”. Talvez tal correlação se justifique porque posso dizer que moro em uma cidade vigiada (e porque não dizer sitiada) vinte e quatro horas por dia, por mais de quinhentas mil câmeras espalhadas pelas avenidas, ruas, becos, entornos, cantos e recantos do grande centro. Digo mesmo que hoje não conseguimos mais sair de nossas casas sem ser acompanhados, ou melhor, bisbilhotados por uns cem números desses equipamentos curiosos. São os olhos do Estado que nos vigia, para quem outorgamos esse poder. Mas isso é assunto que pretendo abordar adiante.

Por hora, esclareço apenas que não encontrarão em meus discursos simples relatos sobre a cultura local, ou ainda sobre as paradisíacas praias que margeiam nosso litoral, e menos ainda, sobre os pitorescos pontos turísticos que nos tornam um verdadeiro patrimônio histórico da humanidade a céu aberto. Encontrarão sim, as análises que consigo e gosto de fazer sobre fatos e situações corriqueiras. E também, logicamente, criticas sobre aspectos sociais e políticos que exprimem muito de nossa cultura e forma de vida.

Pretendo com isso abrir e provocar debates sobre conflitos atuais, diferenças sociais e processos de exclusões. Quero mais ainda, mostrar o outro lado da moeda, a cidade através da visão de quem está no outro lado, fora do aconchego dos edifícios luxuosos e confortáveis. De quem está fora das enormes quantidades de grades que pretensamente acreditam proteger a classe média e alta. E principalmente quero evidenciar a convivência (pacifica?) entre dois mundos que se abrem diante de meus olhos todos os dias: o diurno e o noturno.

Saliento apenas, como em anteriores escritos, que falo apenas de um lugar especifico - o de morador e habitante de um grande centro urbano. E por isso, minhas observações devem ser encaradas e entendidas como ponto de vista pessoal, construído e reconstruído a partir de minhas experiências e vivências, expectativas e perspectivas enquanto inquilino desse grande laboratório chamado Recife.

Assim, pretendo iniciar afirmando que sou pernambucano por natureza e logicamente tenho “orgulho de ser nordestino” por tradição. E tradição para nossa gente é coisa séria, que se deve respeitar. Porque como diria uma das mais belas homenagens, que cantada nos carnavais emocionam e nos enche de alegria, poderia resumir afirmando que “somos mamelucos, somos de casa forte, somos de Pernambuco e somos o Leão do Norte”. E neste sentido digo mesmo, que ser de Pernambuco significa de certa forma gostar de contar e ouvir histórias. E acima de tudo, claro, fazer também a história.

Então iniciarei dizendo que foi os nossos antepassados indígenas quem primeiro nos nomeou. Assim, prefiro dizer que nosso batismo é indígena e não católico, e se em tupi guarani (que deveria ser nossa língua oficial) nascemos “Paranampuka”, deveríamos nos denominar “Paranampukanos”, pois que somos filhos do “mar que bate nas pedras”. Como diz o velho ditado popular: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, e é assim que nos vejo e percebo insistentes, persistentes e convictos. Somos fúria e calmaria ao mesmo tempo, pois que somos água. Somos guerreiros e pacificadores. Talvez por isso, uma das grandes e complicadas perguntas que sempre fiz na época de escola era como se podia dizer que o Brasil foi descoberto em 1500 se nossos ancestrais já corriam as matas e percorriam quilômetros de litorais há muitos séculos atrás. E é mesmo muito engraçado perceber como éramos contraditórios ao afirmar que quando os portugueses aqui chegaram, por um erro da navegação já que seguiam para as índias, encontraram a terra habitada por homens que andavam nus. Então nossa história começava por um erro do destino? Mas como, se na época das grandes conquistas “navegar já era preciso”? Como poderiam cometer um erro tão fantástico, e porque não dizer fantasioso, se os portugueses a época já dominavam a navegação e desbravavam mares longínquos? Ou devemos ainda crer que esses reis dos mares não sabiam ler mapas, e nem como nossos índios, se guiar pelas estrelas?

Considero pouco provável tais conjecturas, e assim prefiro acreditar que de certa forma herdamos sim de nossos compatriotas, uma espécie de adimiração irresponsável pelas grandes anedotas. Talvez tenhamos herdado também essa vocação cultural pelas mentiras, ou para ser mais ameno, pelas fantasias. Sei apenas, que de acordo com o que aprendi em salas de aulas, que esses mesmos portugueses levaram trinta e sete anos para nos “encontrar”. Sim, falo encontrar, primeiro porque nunca estivemos perdidos ou escondidos; e segundo porque se dormíamos nus sob as luzes de um céu estrelado, não tinham o que “descobrir”. Não havia lençóis naquela época e por isso já estávamos descobertos há tempos. Éramos expostos em espírito, inocência e também em sexualidade.

Mas o importante é que resolveram nos ensinar, e não sei “por que cargas d’água”, que em 1537 eles fundaram entre as águas dos rios Capibaribe e Beberibe uma espécie de colônia de pescadores, habitadas por pequenos comerciantes ou mascates que atravessaram o oceano em busca de novas oportunidades. Foram denominados “povos dos arrecifes” por se localizarem entre as margens do rio e do mar. O que nos leva a crer que habitávamos uma ilha. E aí relembro das minhas aulas de geografia da época, que nos ensinava a decorar que “ilha é uma porção de terra rodeada por água de todos os lados”. Será que éramos reducionistas a ponto de simplificar tanto as coisas? Ou imaginavam os ilustres professores que não tínhamos capacidade intelectual para introjetar e absorver mais informações relativas ao tema?

Mas eles, os professores reducionistas se limitavam a nos dizer apenas que aqueles eram povos perigosos e que ameaçavam a aristocracia que se elevava e protegia pelas altas ladeiras de Olinda. Assim, nossos conterrâneos, e logicamente bárbaros “descobridores” e afanadores, nos mantiveram colonizados por quase um século. Mas eis que em 1630 um conde malvado chegaria as nossas terras para acabar com a norma burguesa que separava os miseráveis “sem eiras e nem beiras” dos afortunados que ocupavam os grandes casarões de telhados ornados e decorados. Eles sim tinham beiras. E isso era sinônimo de status e riqueza. Mas aí os holandeses se apropriaram de nossas casas, queimaram Olinda e baniram os nossos “pobres descobridores”. E assim, em 1637 a antiga aldeia, que vivera a sombra da primeira capital pernambucana, transformou-se na “Nieuw Holland” ou Nova Holanda. Neste momento relembro, mais uma vez, meu período de escola onde escutava professores asseverando que os holandeses eram invasores injustos. E aí questiono sobre o que foram os portugueses na verdade? Caridosos viajantes que vieram em missão de paz? E se os holandeses eram bárbaros, como poderíamos ou deveríamos classificar os lusitanos? Mas interessante é pensar que os debates se restringiam a pontos de vistas a favor ou contra, de um ou de outro. Porém nunca me ensinaram o que acontecera com nossos antepassados. Foram os índios dizimados sem dó e sem piedade nos grandes massacres pela ocupação das terras? Ou simplesmente foram abduzidos por extraterrestres que os levaram em discos voadores luminosos para outras galáxias? E neste sentido, quem realmente eram os bárbaros? Portugueses, holandeses, indígenas ou os extraterrestres?. Nos livros de história não encontrávamos respostas para essas indagações (será que já conseguiram responde-las?). Será que “optamos” por omitir tal fato devido à menor importância que os mesmos representavam em relação ao processo de civilização?

E aí podemos pensar de que civilização estava se falando naquelas épocas? No conjunto de características próprias à vida social coletiva, que pode ser traduzido como cultura; ou, no tipo de sociedade resultante de um processo, ou o conjunto de suas realizações, em especial, aquele marcado por certo grau de desenvolvimento tecnológico, econômico e intelectual, considerando o adotado pelas sociedades ocidentais modernas, e que se caracterizam por diferenciação social, divisão do trabalho, urbanização e concentração de poder político e econômico? Provavelmente prevalecia o modelo europeu, visto como primeiro mundo, e por isso superior as culturas denominadas primitivas. Então podemos supor que civilização não é o oposto de cultura, e ainda, que cultura determina a civilização de um povo? E se assim o for, será que poderíamos ter entendido que os antigos índios brasileiros, e porque não dizer sul-americanos, tinham civilização própria? Dentro desse contexto prefiro deixar a cada um, o poder de refletir sobre o conceito de barbárie e/ou bárbaros, para que encontrem suas próprias respostas.

Mas voltando as nossas “histórias da carochinha”, com os vândalos (no sentido de invasores) chegaram os arquitetos e engenheiros. Registra-se até um tal de Pieter Post que se tornaria responsável pela definição dos traços arquitetônicos da antiga aldeia dos Arrecifes, que se transformaria numa Vila. Surgiram grande obras e edificações, entre elas, o primeiro observatório astronômico do Novo Mundo (como aprendemos a denominar o continente sul-americano). E com isso passamos a acreditar que estaríamos muito mais perto dos céus do que aqueles pobres indíos que não apenas falavam com as estrelas, mais nos escuros das matas se guiavam por elas.

No comando dos nossos novos invasores estava nosso grande e excêntrico visionário, o conde Maurício de Nassau (que era alemão e não holandês, e por isso se chamava Johann Moritz Von Nassau-Siegen). E com suas idéias extravagantes e civilizatórias (e por que não egocêntricas) criaria uma verdadeira fortaleza chamada de “Maurisstad”, ou mais comumente conhecida como terra Maurícia ou Mauricéia. Ergueram-se as pontes, diques e canais para interligar as ilhas, e construiu-se a maior e melhor malha ferroviária das Américas (só perdendo para cidade da Filadélfia, nos Estados Unidos), por onde escorreria nossas “doces riquezas” (Sim, falo da cana-de-açúcar enviada para a maior empresa holandesa, que pagava pelos feitos do admirável e civilizado conde europeu). Mas será que isso era roubo, ou apropriação indevida?

Por fim, e para abreviarmos a história, em 1823, já de volta a colonização portuguesa (talvez para nosso azar), a velha “Vila de Santo Antonio das Cacimbas do Recife do Porto” foi alçada a condição de cidade. Depois, e digo que não sei mais precisar em que data (será que os livros escolares atuais já conseguem?) nos tornamos apenas “Recife”, em direta referência aos antigos arrecifes repletos de atóis de corais avermelhados que cortavam o mar que banha nossa cidade. Assim, não poderíamos ser menos que a capital, pois que naturalmente somos mar que bate as pedras.

Hoje, conhecida como a “Veneza Brasileira” (mas em tempos passados, rotulada popularmente como “venérea brasileira”), Recife cresce e se desenvolve numa velocidade comum as grandes metrópoles. E também como os grandes centros urbanos, sofre com os benefícios e conseqüências de um crescimento populacional desenfreado. Assim atualmente vemos verdadeiras tribos, que não são mais indígenas, mas que se misturam, se acotovelam, dançam e se esbarram em ruas estreitas e mal estruturadas. São homens, mulheres, trabalhadores, desempregados, bêbados, pessoas em situação de rua, crianças exploradas sexualmente, pessoas com deficiências, prostitutas, travestis, boys de programa, e mais uma enormidade de personagens que dividem e/ou lutam por espaços e territórios, muitas vezes dentro de um mesmo perímetro.

E se durante o dia, o sol ilumina os “homens de bem”; à noite, a lua revela a outra face de uma bela cidade litorânea, mas que se mostra madrasta e corrupta a depender da sorte de quem a procura ou percorre. A quem se alvoroçar em desvendar seus encantos, a prudência. A quem se atrever a descortinar suas mazelas, feitiços e luxúrias se transformam em riscos de sedução. E ainda, a quem desejar conhecer suas verdades, se sobreviver a seus riscos e perigos poderá encontrar o fascínio. São as controvérsias de uma imensa cidade que se mostra múltipla e singular. Que se estabelece ao passo que concretiza diferenças, sejam elas étnicas, religiosas, sexuais, sociais ou culturais. E assim, se estabelece também em novas configurações espaciais e temporais, define e agrupa categorias de indivíduos em territórios estrategicamente escolhidos. Determina quem estigmatiza e quem é estigmatizado, quem subjetiva e quais serão subjetivados, ou ainda pior, quem objetifica e quais serão objetificados. Quem vende e quem compra, incluindo almas, vidas, corpos e prazeres. São as normas sociais, são as regras de um jogo difícil de entender e de se jogar, mas que a permite que se mantenha lindamente bela e tenebrosa ao mesmo tempo. Um jogo que acima de tudo possibilita que se perpetue misteriosamente irresistível e atraente.


Assim é Recife, assim é minha cidade e sua história.

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