domingo, 11 de julho de 2010

A HISTÓRIA DA MINHA VIDA - A Juventude



















Auto Retrato/2006

Capítulo IV – Tornei-me Adulto

Na década de noventa me tornara adulto, mas como dito, refiro-me apenas a um marcador cronológico e legal. Ou seja, não me sentia adulto apenas por ter vinte e quatro anos (sugestivo não?), mas simplesmente pelo fato de me sentir maduro, responsável e autônomo. Graças ao Lula, as pessoas têm hoje em dia sua juventude prolongada até os vinte e nove, mas sou de uma geração anterior, de uma época onde as categorias etárias não eram tão bem definidas. Existia naquelas épocas certa indefinição cultural sobre os limites de infância e adolescência, por exemplo, e a gente se tornava adulto ao começar a trabalhar. Depois do Estatuto da Criança e do Adolescente, parece que tudo ficou mais claro (será?). Penso eu, que essas fases são muito mais definidas no âmbito psíquico do que legal. Mas, claro que é preciso definições jurídicas para respaldar procedimentos e normas sociais. Considero mesmo que isso seja um avanço, prova de nossa maturidade enquanto nação.

Mas neste momento, peço licença para retornar um pouco no tempo, pois que especificamente no meu caso, não posso falar de minha vida adulta, sem falar dos anos oitenta, pois como já dito também, sempre fui acelerado. Acho que me tornei realmente adulto ao ingressar no mundo do trabalho, como se entendia no inicio do século passado. E posso dizer que a década de oitenta mudou não só minha história, mas a do país inteiro. Com a queda da ditadura militar em 1984, iniciou-se o processo de abertura política e os antigos exilados puderam voltar ao Brasil. Era a época das grandes inspirações políticas, artísticas, educacionais, sociais e logicamente culturais de forma mais abrangente. Época das grandes canções, dos grandes discursos e das grandes causas em nome da democracia. Certo, que como tudo no Brasil, a queda da tirania também foi reflexo de um movimento externo, mundial. É bom que se saiba que fomos um dos últimos países a impetrar a tão sonhada liberdade democrática. E quantos pagaram por isso? Quantos sofreram, desapareceram, foram torturados e mortos? Não podemos esquecer nossos verdadeiros heróis que foram as ruas, enfrentaram canhões e ser puseram frente a fuzis e metralhadoras. As passeatas, as caminhadas e as palavras de ordem ecoavam pelos quatro cantos. A música já dizia: “vem vamos embora que esperar não é saber, pois “quem sabe faz à hora e não espera acontecer” (é do Geraldo Vandré). E era assim, “caminhando e cantando, e seguindo a canção”, que éramos também todos iguais, de “braços dados ou não”. E neste sentido éramos sim, iguais em desejos, sonhos e ideologias.

Não vivi estas lutas e hoje penso que se as tivesse vivido, provavelmente não estaria hoje contando partes de minha vida. Acho que sou de ir até as ultimas consequências por ideal. Às vezes não entendo como me tornei tão controverso se era filho da ditadura. Vivi o auge das mudanças e presenciei, e porque não dizer, participei de outras lutas que vieram (pois que elas sempre vem), e que também se tornaram tão importantes quanto. Assim foram os anos oitenta. Uma verdadeira ebulição nacional, que era minha também. Lembro que na época da Escola Técnica eu falava de política como se entendesse. Gostava de me imaginar engajado e consciente de minha própria realidade. As diferenças sociais me incomodavam, os governos tiranos me machucavam e eu discutia com meus colegas de turmas como gente grande. Fazia movimentos internos contra professores opressores, liderava campanha de “abaixo fulano” e de “vamos exigir nossos direitos”. Colocava-me contra a maioria, em movimento inverso, muitas vezes, apenas para causar polêmica e gerar debates. Ia votar pela primeira vez e logicamente colei adesivos no peito, para mostrar meu posicionamento político. “Meu primeiro voto é de Arraes”. Na verdade ainda nem sabia direito quem tinha sido aquele senhor, mas ouvia velhas histórias de perseguições, das peregrinações pelos interiores do Estado e das lutas pelo povo nordestino. Tornou-se meu herói, e de muitos também.

A ditadura tinha acabado em 1984 e o movimento das “diretas já” era um sonho. Pleiteávamos o direito de escolher nosso presidente da república. E eu estava ali, estava vivo e me sentia cidadão lutando pelos meus direitos e por igualdade de fato. Não me sai da cabeça a imagem de Fafá de Belém cantando o hino nacional. Como também é impossível esquecer o povo invadindo o campo da alvorada. Queria está lá e levantar bandeiras. Queria gritar e cantar com todos aqueles, que como eu não concordava com as arbitrariedades dos governos. A proposta da emenda Constitucional Dante de Oliveira, que nos outorgaria tal direito foi reprovada no congresso conservador. Mas conseguimos uma vitória parcial. A eleição de Tancredo Neves para presidente aprovada pelo Colégio Eleitoral (concordam agora que o brasileiro não faz política e sim acordos?). Assim se podia agradar a gregos e a troianos. Amenizava-se a fúria do povo e se mantinha o poder nas mãos de poucos. Tancredo era a grande esperança de mudanças, porém, fomos traídos por um “golpe” do destino (terá sido mesmo?). Sua morte (ou assassinato?) foi chorada pelo país inteiro, que indignado assistiu a posse do Sarney (O mesmo que hoje senta em uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Mas o que foi que ele escreveu mesmo? Alguém já leu?). Eram os resquícios de vinte anos de atraso e violências promovidas pelos homens de farda.

Lembro das músicas. Com Cálice, do Chico Buarque, acho que entendi o que significava metáforas. Acho mesmo que é um excelente recurso para se dizer o que não pode ou deve ser dito. Serve como alegoria da poesia. Cálice é um exemplo clássico de poesia, criada por um gênio da nossa música popular que não se calava. E era exatamente do que não precisávamos naquele momento. Não queríamos cálice e não queríamos cale-se! Pelo contrário, buscávamos liberdade de expressão e direito a voto. Era momento de eleger nossos representantes, definir e validar uma cidadania nacional. Queríamos ser brasileiros de fato e não passageiros de terceira classe. Isso é política, que logicamente se diferencia do movimento atual, ao qual devemos denominar apenas como politicagem. Chico, Caetano, Gilberto Gil, Vandré, Milton Nascimento, Belchior, Elis Regina, Fernanda Montenegro, Marília Pêra, Armando Bógus, e mais uma quantidade enorme de artistas nos inspiravam. Era como se falassem por cada um de nós, e assim cumprissem seu principal papel. A arte é cria e amiga da liberdade, por isso os movimentos culturais, aliados aos sociais, cresciam enquanto os sindicatos forçavam a barra e empurravam o governo contra a parede. Era preciso quebrar muros. Não os de Berlim, pois isso os próprios alemães souberam fazer no final de 1989, mas falo das muralhas socioeconômicas que separavam norte e nordeste do sul do país. Era época de provocar incêndios, enfrentar a polícia armada, se amontoar e acima de tudo gritar em nome da democracia.

No mesmo ano de 1984 me apaixonei, ainda aos dezessete anos, e iniciei uma vida a dois. Foram anos de grandes mudanças e descobertas. Ingressei no teatro profissional, e assim acompanhei todo o processo de consolidação do que chamaríamos de queda da censura. Lembro que em um dos espetáculos que participei, tivemos que fazer uma leitura ou ensaio geral para os censores. Eles ficavam sentados, com o texto nas mãos e acompanhavam cada fala, de cada ator, para depois definir o que podia e o que não devia ser falado ou encenado. Incrível, não? Mas posso dizer que vivi para ver isso. Nesta época também tinha me tornado profissional de carteira assinada. Era meu passaporte para uma vida adulta. Mudei-me para o centro do Recife e assim abandonei os subúrbios. Tornara-me urbano, a ponto de não mais conseguir viver sem a agitação, bagunça, violência e comodidades dos grandes centros. Morava no centro, trabalhava no centro e estudava no centro.

Sair da casa de meus pais, talvez tenha sido a decisão mais difícil da minha vida. Abandonar a comodidade e segurança da família é sempre um corte, uma ruptura violenta e dolorosa. É preciso romper com a zona de conforto e entender que a partir daquele momento seremos responsáveis pelos nossos atos. Lembro que neste dia, não sabia como agir, o que falar e os sentimentos se misturavam a uma quantidade enorme de emoções que me fragilizavam. Lógico que minha saída foi acontecendo paulatinamente, mas sempre existe um dia que demarca a saída efetiva. Não lembro o que falei ou mesmo se falei, sei apenas que me encaminhei, e como diz o Roberto Carlos, “parei em frente ao portão”, que nos fechava em muros altos. E pior, não tinha cachorro pra mi sorri latindo. Afinal estava mais uma vez na contramão. Aquele não era um momento de regresso, mas sim de partida. Sei também que pensei que não teria coragem, ou que simplesmente deixaria para depois. Não dava para voltar e não dava simplesmente para abandonar um plano de vôo em direção a liberdade que desejava. Acho que andei teso e reto. Cada passo era um peso em meu corpo. Não queria olhar para trás. Queria correr e ficar. Sorrir, chorar ou mesmo simplesmente escutar alguém pedir para que não fosse. Na verdade não sei o que sentia naquele momento, mas confesso que as lembranças me fazem chorar ainda hoje. Meu sobrinho fechou o portão as minhas costas e neste momento acelerei os passos para não chorar pela rua. É engraçado como as crianças resolvem os conflitos dentro de uma outra lógica. Entrei no primeiro ônibus que apareceu, pois precisa sair rápido antes que pensasse em desistir. Acho que naquele momento queria colo de mãe. Chorei sozinho, como muitas vezes o fiz em toda a minha infância e adolescência. E as vezes me pego fazendo mesmo nos dias de hoje. A viagem parecia não terminar nunca e eu ficava pensando no medo que sentia em relação ao futuro. Era um novo rio, que mais uma vez mudava meu destino.

O apartamento ficava na Rua da Concórdia. Era uma quitinete, em um prédio meio esquisito. Havia apenas uma sala, um quarto e um banheiro. Não havia cozinha e por isso durante muitos anos lavei pratos e talheres na pia do banheiro. Dizem que o amor é lindo e nos deixa bobo. Posso dizer de carteirinha o quanto isso é verdade, pois de outra forma, como uma pessoa fresca como eu poderia viver num apartamento sem cama, televisão, e tudo mais que é necessário ao mínimo de conforto? Tínhamos apenas uma geladeira e um fogão. Foi o que deu para comprar de imediato, e assim, no primeiro mês dormimos no chão, ou melhor, sobre os papelões que antes serviram de embalagens. Mas não relembro disso com sofrimento, muito pelo contrário. Vivia um grande amor e isso era suficiente. Depois compramos mesa e levei da casa de meus pais duas camas de solteiro, uma televisão preto e branco, e umas prateleiras feitas por meu pai, que arrumadas serviam como uma espécie de guarda-roupas. Com o tempo as coisas iam se organizando e o apartamento tomando forma. Era meu lar. Minha casa. E isso significava pagar contas, fazer compras, arrumar, limpar. Eu era adulto de fato. As vezes a saudade batia forte, e a vontade de voltar pra casa me invadia. Sentia-me fragilizado, e nessas horas, sozinho, voltava a ser pequeno e inseguro. Engraçado que até hoje quando digo minha casa, refiro-me muito mais a casa dos meus pais do que a minha própria residência. Acho que isso é normal (não é?).

Lembro que depois de um ano, tirei minhas primeiras férias. E de presente, comprei uma “radiola Panasonic”. Era uma daquelas bem grandes e modernas. Tinha uma tampa em acrílico que a gente podia fechar enquanto o disco tocava. Os caixas eram grandes também e podiam ficar em pontos estratégicos da sala para ampliar a sonoridade. E eu tinha uma quantidade enorme de LPs, que nos finais de semana gostava de arrumar e rearrumar enquanto os colocava para ouvir. E assim, em 1985 descobri um dos maiores poetas de minha geração: Cazuza. Era incrível como ele conseguia transformar o feio em beleza. E cantava as mazelas do país de uma forma que me tocava e emocionava. Um jovem que como eu, parecia está à frente de seu tempo. O “exagerado” que adorava “um amor inventado” e que se apaixonava por pessoas e não por homens ou mulheres. Que não precisava “usar de tanta educação para destilar terceiras intenções” e que clamava para que o Brasil mostrasse sua cara de fato. Cazuza abria frente contra a hipocrisia social e política. Proclamava a liberdade de expressão e quebra de conceitos morais ultrapassados. Era um louco lindo demais, mais que um homem, mais que um ser. Não existiam definições e não havia modelos em que se pudesse colocá-lo ou rotulá-lo. Era a simbologia viva da falta de limites e da intensidade. Com ele descobri o Oscar Wilde e vivi um amor “que não ousava dizer o nome”. Aliás, naquela década, os nomes eram desnecessários, assim como as regras e as normas sociais e religiosas tradicionais também o eram. Encontrei em Cazuza meu primeiro referencial. Alguém que era diferente como eu, e que adorava se diferenciar. E é impressionante como os ídolos tem essa importância fundamental no processo de identificação e construção (e estruturação) emocional de cada pessoa. Buscamos sempre uma referência que justifique e explique nossos comportamentos e posturas. E por mais que queiramos nos diferenciar, o que buscamos na verdade e em essência é a igualdade. Não é assim que construímos nossa identidade? E o “eu” não se constitui a partir do olhar do “outro”?

Mas nem tudo era poesia naqueles tempos de liberdade, e assim, os jornais começavam a divulgar a descoberta de uma nova doença fatal. Era a síndrome da imunodeficiência adquirida que ameaçava destruir o sonho de liberdade sexual que se consolidada não apenas no Brasil, mas no mundo. E logicamente a grande igreja não perderia a oportunidade de lançar suas garras contra uma sociedade desinformada e alarmada diante daquele “castigo divino”. A “peste gay” escancarava de vez os mais bem guardados e protegidos segredos de uma parcela da humanidade que lutava (ou será que ainda luta?) pelo respeito às diferenças. Era o momento de se evidenciar a sexualidade brasileira e contrariar os dogmas das religiões. E logicamente o momento ideal para que as igrejas, mais uma vez aliadas ao Estado, ressuscitassem o ultraconservador modelo de moralização e higienização social denominado “caça as bruxas”. A AIDS tornou-se o álibi perfeito para uma parcela conservadora e hipócrita da sociedade, que via na liberdade sexual os prenúncios do fim do mundo. Segundo eles fazia-se necessário uma providencia dos céus, um castigo que nos ensinasse o valor e importância da castidade, da virgindade, da fidelidade, bem como a validação do já tão consolidado modelo heterossexista. As cidades amanheciam cheias de pichação com frases violentas e preconceituosas, do tipo “Jesus abomina os gays” e os meios de comunicação divulgavam a descoberta de novos casos de homossexuais contaminados, internados e mortos.

Grandes estrelas do cinema americano e mundial foram “desmascaradas” diante da multidão de fãs que se dividiam entre a indignação e a piedade. Os grandes ídolos e símbolos sexuais, exemplos de masculinidade, foram desfeitos, destituídos e expostos em sua intimidade. Vidas inteiras foram escacavilhadas para que fossem julgados e condenados culpados por suas obscenidades. Em 1982 registraram-se os primeiros casos no Brasil e a ciência corria em busca de explicações e controles. Era o pânico que se instalava nos principais centros urbanos. Os homens de fé gritavam pelos quatro cantos de Recife que as Sodomas e Gomorras modernas queimariam nas chamas do inferno. Lembro que tinha verdadeiras diarréias diante do sensacionalismo impresso nas páginas dos jornais. Sentia suores percorrendo o corpo e ao mínimo sinal de gripe ou inflamação na garganta corria ao espelho em busca das tão faladas ínguas. Eram os sintomas do pânico. O medo tomava conta de todos. Os bissexuais foram taxados como responsáveis pela falência das famílias. Era a exposição das orientações sexuais que entravam em debate. As travestis foram perseguidas e estigmatizadas mais uma vez e os gays se escondiam em parcerias afetivas e sexuais que contrariavam seus desejos e orientações. Ninguém queria ser identificado, indicado e perseguido. Era preciso esconder desejos e amores. Era preciso calar e se abafar mais uma vez.

Comecei uma campanha de conscientização e esclarecimentos para os funcionários da empresa em que trabalhava. Era uma forma de fazer minha parte, e mais uma vez, em movimento contrário me posicionar de forma racional. Explicar as formas de contaminação, destituir os mitos e alicerçar um posicionamento social pautado na lógica e na concretude das informações. Mas como falar de sexo, de relações sexuais, de intimidades e desejos? Era preciso chamar a atenção para os prejuízos da histeria coletiva. Iniciei os treinamentos e reuniões, trazia noticias, esclarecia dúvidas (que também eram minhas) e tentava empregar um tom natural nas conversas e palestras. Coloquei a AIDS na pauta institucional e apresentei os resultados da experiência no primeiro seminário internacional sobre AIDS realizado em Recife. Junto a mais duas empresas pernambucanas nos destacamos como exemplos de campanhas bem sucedidas. Isso me mostrava que estava no caminho certo e que a racionalidade é a base para se enfrentar grandes desafios. Descobria ali minha vocação de pesquisador e formador de opiniões.

Iniciei a faculdade, financiada pela empresa. Estabeleceram que fizesse arquitetura em horário diurno e que compensasse as horas no turno da noite. Isso atenderia aos interesses da empresa, mas não os meus. O programa de incentivo era restrito ao staff da organização e como era chefe, teria que ingressar na faculdade o mais rápido possível. Assim, fui aprovado em uma das mais caras, mas não das melhores. Não fiz arquitetura como possam imaginar. Não me renderia às determinações do poder e nem permitira que traçassem meu destino. Seria psicólogo e buscaria entender a humanidade (quanta ilusão, não?).

Dizem que a época de faculdade é a melhor fase de nossas vidas. E isso acaba sendo uma grande verdade. Aprendemos não só nas salas de aula, mas, e talvez principalmente, nos corredores, praças e logicamente bares. Adorava Freud e sua psicanálise. Id, ego, superego, instinto, racionalidade, pulsão e libido passaram a fazer parte de meu cotidiano. Descobri por exemplo que o que sentia ao ler os jornais da época se chamava somatização. Um processo irracional, sem justificativas palpáveis, desencadeadas por um medo imenso de adoecer. Ou principalmente, carregar mais um estigma. Acho que me tornei psicólogo, antes mesmo de concluir o curso. Dava aulas aos colegas, fazia grupos de estudo e logicamente em troca pagavam minhas cachaças. Tornei-me uma espécie de líder, ou melhor, ditador para um grupo formado por umas oito mulheres (novamente?). Como já dizia minha mãe: “bendito sois entre as mulheres”. Acho que era uma espécie de profecia, ou ainda, o velho instinto materno que permite as mães conhecerem e reconhecerem seus filhos em essência. Minha mãe sempre teve isso, talvez por isso fosse e é tão difícil lhe esconder alguma coisa.

De todas as coisas boas que uma formação universitária pode lhe propor talvez o conceito de universalidade de conhecimentos seja o mais importante. Não aprendi apenas os conceitos da psicologia tradicional e moderna, mas tirei lições de vida. Não foram apenas os professores que direcionaram meus estudos, mas todas as pessoas com quem convivi e seus posicionamentos diferentes aos meus. Coloquei em prática o velho conceito do ponto de vista individual e buscava interpretar as situações sob as várias perspectivas possíveis. Aprendi a me “colocar no lugar do outro” ampliando minha compreensão sobre os fatores e motivos envolvidos e motivadores das ações e reações humanas. Tornava-me mais centrado, ao passo que pesquisava teorias e efetivava meu processo de auto-análise. E a cada dia descobria que deseja ouvir as pessoas, acreditando poder contribuir de forma direta para seus processos de crescimento pessoal.

Lembro de uma das muitas situações embaraçosas por que passei naqueles anos. Certo dia, encontramos uma das colegas de turma muito mal. Tinha ingerido uma grande quantidade de tranqüilizantes, que nunca soubemos qual. Entramos num carro e saímos em disparada para um hospital. No caminho ela vomitava compulsivamente sobre minha camisa. Ao passo em que tentava manter a situação sob controle, as demais passageiras e cúmplices de situação inédita, precipitavam vômitos por nojo e desconforto. Em certo momento, a vítima após nova crise de vômito, levou uma das mãos à boca. Em meu desespero, por imaginar que a mesma fosse ingerir uma nova quantidade de comprimidos, tentava impedi-la gritando que não e prendendo seus braços. Ela em desespero igual, ou maior que o meu, se contorcia e tentava se desvencilhar a fim de atingir seu objetivo. Comecei a prendê-la com mais força ainda, puxando sua cabeça para trás até que ela conseguiu falar: “é minha chapa!”. E eu explico, é que ao vomitar, a dentadura da criatura tinha caído e o que ela estava tentando fazer era apenas recolocá-la no boca. Sei que conseguimos rir muito da situação, porém confesso que na hora o desespero tomava conta de mim. Lembro também que voltei para a faculdade sem camisa e ao passar pelos corredores a caminho do banheiro, todos comentavam o feito e de certa forma nos tornamos heróis.

Outra situação refere-se aos meus movimentos de protesto e igualdades de direitos. Sempre fui às aulas trajando um pequeno short (é assim mesmo que se escreve?). Na verdade era uma espécie de cueca pijama, dessas que a gente usa em casa. Bom, colocava uma camiseta, uma sandália nos pés e estava completa a indumentária universitária. Adorava também sentar nas cadeiras da frente e realizar movimentos, num abrir e fechar de pernas que desconcertava meia dúzia de professores. Em determinado dia, a coordenadora do curso me chamou para solicitar que abandonasse o pequeno short e logicamente utilizasse calças compridas como a maioria dos garotos. Aproveitei o desconcerto dela diante da situação para protestar meus direitos. Aleguei que deixaria de usá-lo se as moças fossem proibidas de trajar mini saias e shortinhos curtos. A partir dali meu figurino passou a ser causa e bandeira de luta. E assim reforcei meu guarda-roupas com novas peças e continuei por um bom tempo desfilando minhas pernas pela faculdade.

Outros movimentos se referiram aos protestos contra os altos preços da mensalidade, ao fato absurdo de alunos não poderem assistir às aulas ou ainda fazer as provas por estarem com as mensalidades atrasadas. Também fazia os movimentos de “fora professor tal”. Acho que perdi a conta de quantos foram expulsos da grade curricular. Desafiava os mesmos em sala de aula, discutia as teorias e quando sentia fragilidade de argumentação, pronto, era motivo suficiente para iniciar um novo movimento por melhor formação profissional. Fazia valer meus direitos e valorizava meus parcos recursos investidos no meu tão sonhado futuro.

A AIDS nos atingiu em cheio com a doença e morte de um amigo de curso. Era um jovem, que como todos, batalhavam e investiam esforços para se firmar e se estabelecer economicamente. Foi um grande amigo com quem pude partilhar histórias, segredos e alegrias. Em um determinado semestre ele sumiu das aulas. Liguei para saber noticias e soube que tinha trancado o curso e não queria mais ver ninguém. O caso tornou-se um dos maiores mistérios. Questionávamos como uma pessoa podia simplesmente renegar um grupo de amigos, sem motivo aparente. Tempos depois nos chegou a suspeita de sua doença. Alguém o vira muito magro e esquisito, em comparação ao corpo malhado e forte que tinha. Acho que em menos de três meses chegou a falecer sem mais nos ter dado a chance de revê-lo. Era um choque, principalmente para mim, pois éramos quase irmãos. Tinha verdadeira admiração por ele, mesmo considerando seus desvios de caráter e forma estranha de atingir objetivos. Mas tinha aprendido a lição básica da psicologia a ponto de não fazer julgamentos pautados nos meus próprios valores.

Com o tempo a doença chegava mais perto de todos, e aos poucos, se multiplicavam os casos de pessoas conhecidas ou pessoas que conheciam pessoas infectadas pelos HIV. Assim, a AIDS trouxe a abertura necessária para se debater sexualidades e a geração de oitenta se tornou a “geração camisinha”. Os namoros e relações sexuais e afetivas não se restringiam mais a homens e mulheres. Se fala abertamente em sexo, transas e trepações. A virgindade perdia seu valor e todos queriam relatar suas experiências e logicamente trocar informações. É incrível como a gente aprende sobre sexo e sexualidade na faculdade, mesmo ainda que o assunto não esteja no conteúdo de sala. Formei minha opinião em relação a vários assuntos correlatos, tais como infidelidade, divórcio, condição de amantes, homossexualidade, bissexualidade, prazer, ejaculação precoce, gravidez indesejada e aborto. A cada dia revia meus velhos conceitos e atualizava pontos de vista.

Exemplo disso refere-se ao constrangimento que causei a alguns colegas ao afirmar que iria “beber o defunto”. Acharam-me grosseiro e insensível, contudo, talvez não tenham entendido que naquele momento não via a morte de meu amigo como algo negativo, mas ao contrário, apenas como um ciclo que se fechava. Uma passagem para uma “outra dimensão” que não conhecemos, mas que nem por isso deve deixar de ser comemorada. Lembro também que ao final do curso refizemos as eternas juras de amizade eterna (imagino que estejam recontando mentalmente agora, pois acabei de fazer o mesmo) e criamos uma “cápsula do futuro” (acho que era modismo naqueles dias), onde na confraternização de natal enchíamos com nossos grandes sonhos e desejos de felicidades, para só abrir no ano seguinte. É engraçado refletir agora sobre a relação de tempo. Doze meses pode ser um período enorme para se planejar vidas e estabelecer objetivos. Digo isso, porque um em desses momentos de abertura da tal fantasiada cápsula, uma de nossas colegas de turma tinha falecido. Doze meses, foram suficientes para descoberta do câncer, retirada dos seios e morte de uma das pessoas mais puras e sofridas que já conheci na vida. Eis a relatividade de um demarcador chamado tempo. Assim, entendo que seis anos de curso foram mais que suficientes para me ensinar muito mais do que simples teorias cientificias.

Em 1990, vibrei com a posse do Collor, não por acreditar no discurso da caça aos marajás, mas como até os dias atuais, muitas vezes por falta de alternativas mais poupáveis. Era ruim com ele e pior com os militares. Mas sempre votei no “analfabeto” mais inteligente que pretendia mudar o país. Uma, duas, três vezes. É preciso acreditar num sonho e saber que nada muda de uma hora para outra, ou do dia pra noite. É preciso entender que o brasileiro não é político, mas politiqueiro. Que nos introjetaram paulatinamente a “Lei do Gerson”. Aquele jogador, que num determinado comercial dizia: “Eu gosto de levar vantagem em tudo!” E assim, aprendemos a brigar por vantagens e não por direitos, por oportunidades e não por possibilidades de mudanças coletivas. Instaurou-se no país a cultura política do pão e circo. Prá isso serviram as copas conquistadas, prá isso se criou produtos como os tantos reis e rainhas propagados pela mídia. Já pararam para pensar no quanto do sentimento de súditos mantivemos em nosso sangue? Temos rei do futebol, rainha dos baixinhos, princesinha do Brasil, a rainha do lar, rainha do milho, rei da música, rei das cochinhas, rua do príncipe, rua da princesa, da imperatriz e do imperador, rei momo, rainha do carnaval e toda uma realeza, que a fora no maracatu pernambucano não nos deveria representar mais nada. Afinal foi com a realeza que aprendemos a ser roubados e violentados em nossos direitos. Foi com eles que aprendemos a cultivar um sonho de nos tornarmos uma espécie de europeu do novo continente. Muitas vezes chego a achar que continuamos a ser plebeus, que em dicionário brasileiro pode ser traduzido como pé-de-poeira. Tornamos-nos república e cultuamos monarquias sociais. Expulsamos a realeza, mas até hoje pagamos a manutenção dos descendentes dos chamados sangues azuis, com parte de nossos impostos (você não sabia?). Insistimos em eleger ídolos e a eles oferecemos impunidades e regalias, para fazê-los intocáveis e imortais. Entregamos nas mãos de Deus nossos destinos e aos políticos nossos futuros. Acostumamos a baixar a cabeça e pedir que, por favor, nos joguem suas migalhas. Migalhas essas pagas com nossos impostos. Apostamos nossas esperanças de uma vida melhor e mais digna nos jogos de azar. Nos tornamos pândegos e por isso não precisamos ser levados a sérios. Ficamos atrofiados e débeis em iniciativas e autonomia. Paramos na eterna espera dos líderes e dos corajosos para que se arrisquem por nós. Como dizia o Zé Ramalho, levamos uma “vida de gado”. E povo marcado é povo feliz (não é?).

Mas a era do “Collorido” se mostrou um bom exemplo de como estávamos preparados para novas batalhas. Naquela época a inflação atingia os mais altos patamares da desvalorização monetária. Não se sabia realmente o quanto se ganhava em salários. Não se tinha noção do poder de compras. Aí, veio a grande solução, coordenada por uma ministra da economia que parecia viver em outro mundo. Era a primeira mulher a ocupar cargo tão importante. Confiscou a poupança e salários. De uma hora para outra vimos nossas economias desaparecerem sobre nossos olhos inertes. Alguém tem outro nome para isso que seja diferente de golpe político? Depois vieram os escândalos envolvendo o presidente atleta (lembram dele correndo e fazendo marketing de sua jovialidade?). A casa da dinda tornou-se o núcleo da máfia. A imprensa mais uma vez cumpria seu papel e a “Vênus Platinada” mais uma vez seguia sua filosofia e estratégia de manutenção do poder: dar ao povo não que se precisa, mais o que merece. E assim, mostrando sua força, do mesmo jeito que o “collocou” no governo, nos fez tirá-lo. Alguém se lembra de um seriado chamado “Anos Rebeldes”? E da novela “A Pátria é Minha”? “Meninos eu vi!”, como dizia o radialista assassinado, a Globo revelar sua força e capacidade de elaborar e disseminar fenômenos de massa. Mas claro que tudo não se deve a ela. Pelo contrário, acho que mostramos a força de um povo, que consegue inclusive tornar uma grande potencia tradicionalista e mantedora do poder burguês, em aliado de luta. Não foi isso que aconteceu? Ou será que perdi algum capitulo de uma novela chamada vida real?

Fomos para as ruas caçar os marajás. Pintamos a cara de verde, amarelo e preto, e nos tornamos uma tribo dos “caras pintadas”. Parecia um resgate de nossas origens indígenas. E isso emocionava e nos orgulhava enquanto jovens conscientes. Era o movimento estudantil aliado aos movimentos sociais e políticos para o “Fora Collor”. Os escândalos se sucediam, conhecidos como “PC” (não, isso não é linguagem da informática, mas até poderia já que terminou com queima de arquivo). Aqui, PC significa Paulo Cesar, o grande mentor da maior corrupção que o país já viu. Assassinado na praia de guaxuma, em Alagoas, levou para o túmulo, junto com a namorada Suzana, os segredos e mistérios que envolviam uma grande conspiração. Mas, continuamos nas ruas, em passeatas, carreatas e caminhadas. Importamos até palavra americana (e mais uma vez esquecemos o tupi guarani) e assim, em 1992 vivemos nosso primeiro “impeachment” político.

Aquilo nos encheu novamente de orgulho e coragem para enfrentar as novas batalhas que viriam no governo do Itamar Franco, vice do Collor. Faltava carne nos supermercados. Tinham filas e cotas para compra de produtos. E existia uma maquininha de remarcar preços que normalmente era mais rápida que o mais rápidos dos mortais. Nossa dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI, alguém lembra?) alcançava cifras estratosféricas. Éramos devedores e endividados. Estávamos falidos e lutando contra um dragão, que não era o japonês que trazia sorte e fertilidade, mas sim o da inflação que consumia nossa produção nacional. Mudou-se a moeda (nem lembro mais de todas, pois que foram tantas). Primeiro cruzeiro, depois cruzado e em seguida cruzado novo. Inventaram um tal de ágil que se cobrava em cima dos valores reais. Mas tinha outro tal de abono que enganava o povo dando a sensação de que as perdas salariais eram equiparadas. Lógico que esse não entrava nos encargos contratuais, uma vez que não era agregado aos salários. Era uma espécie de auxilio antecipado, um acréscimo nos rendimentos (lembram das migalhas?). Uma galinha custava tantos zeros que não sabíamos calcular. Até por nós brasileiros somos péssimos em cálculos, fruto de nossa educação de base. Os militares nos endividaram e tivemos que pagar o preço. A Zélia nos roubou e tivemos que ficar calados e agora nem comer a gente podia, pois não tínhamos com o que pagar. Até que em 1994, foi implantado o Plano Real. Sim, pra quem não sabe o Real é do Itamar e não do Fernando Henrique, que logicamente pegou carona e se beneficiou a ponto de se eleger presidente da república. E olha que foram dois mandatos consecutivos.

Chegávamos ao final do curso e estávamos prestes a nos formar e a parti dali nos tornar os grandes profissionais que prometemos, ou pelo menos, pretendemos. Tinha acabado de abdicar de um cargo de gerente de recursos humanos e estava desempregado. Aquele financiamento da faculdade era passado e terminara ao aceitar uma proposta profissional mais vantajosa, fruto do trabalho apresentado no seminário que falei anteriormente. Depois mudei novamente de organização e agora tinha que pagar as mensalidades com as economias que restaram da indenização. No último período, tínhamos também que estagiar. E isso significava pagar duas mensalidades em valores orbitantes. Não daria para fazer as duas coisas ao mesmo tempo o que representaria atrasar minha formação. Recorri à diretoria da instituição e ouvi a frase celebre destinada aos menos afortunados: “não fazemos caridade, isto aqui é uma instituição privada e se não pode pagar as mensalidades tranque o curso”. Nunca esqueci esse discurso e acho ali entendi as regras do capitalismo selvagem. Não tinha mais dinheiro para pagar as duas ultimas mensalidades, estava no fundo do poço e vendo meus planos irem por água abaixo. Descobri naquele momento o significado de companheirismo e amizade sincera. Percebi a importância de estabelecer e consolidar relações. E descobri a capacidade de me surpreender e me emocionar ao ver meus colegas de turma iniciar e efetivar um movimento coletivo de amparo para financiar minhas dívidas. Descobri também o sentido da gratidão e respeito. Penso até hoje em todos que participaram dessa ação e de certa forma me orgulho ao saber que consigo despertar nas pessoas os melhores sentimentos e emoções. Que consigo me fazer gostar.

A crise me levou de retorno a casa de meus pais, ou melhor, de uma de minhas irmãs. Para entenderem melhor é preciso que explique um dos motivos de toda essa reviravolta. Num determinado dia, minha vizinha foi assassinada na recepção do tal prédio esquisito da rua da concórdia. Ela era a típica mulher marcada para morrer. Ex-prostituta, negra, pobre e viciada. Confesso que de certa forma não a entendia e na verdade buscava me proteger, uma vez que mantinha certas relações que podemos denominar como perigosas. Muitas vezes, durante noites seguidas ouvia seu choro. Reclamava um amor que não tinha, o afeto que nunca chegava na hora certa e o custo de manter um “homem” que ainda conseguia lhe tirar o pouco que tinha. Violentada pela vida e sucessivamente por ele, levava uma vida de louca e em dias de crise caminhava nua pelas ruas noturnas. Gritava os nomes de poderosos e gente conhecida e defecava pelas escadarias, muitas vezes para provocar a sindica. Para chegar ao meu apartamento tinha que passar por um corredor que também dava acesso ao dela, protegido por uma grade de ferro. Dessa forma mantinha minha porta fechada, evitando o confronto com usuários e traficantes. Com a sua morte, provavelmente seriamos testemunhas de alguma coisa, ou pelo menos receamos tal envolvimento. Dessa forma decidimos nos mudar, passando a dividir um apartamento com um amigo e sua família. Como o cotidiano era muito complicado, percebi a necessidade de sair para salvar minha relação.

Mas estava desempregado, para finalizar um curso, fazendo estágio e logicamente recebendo menos de um terço do que costumava receber. Não tinha alternativas e uma quantidade de problemas enormes. Minha irmã me sugeriu a solução e me transferi de volta para o subúrbio. A casa era pequena, desenhada por ela e construída por meu pai e irmãos. Talvez seja nessas horas que vemos e reconhecemos o verdadeiro valor e significado de família. Sentia-me o próprio personagem do livro, onde o protagonista volta para casa depois de todo tipo de sofrimento. Sentia-me bem vindo de volta ao lar e isso foi extremamente importante para consolidar velhas relações e rever ressentimentos e mágoas passadas. Restabelecer relações com meu pai e desfazer mal entendidos já esclarecidos em terapia.

Terminei o curso e ingressei numa empresa multinacional o que me permitiu voltar ao centro, dessa vez na Manoel Borba, no centro do Bairro da Boa Vista. Eram outros tempos. Tempo que podíamos chamar de modernos. O admirável mundo novo começava a impor suas definições de conforto e comodidade. Existia o telefone fixo, e agora não era tão necessário andar com aquela quantidade enorme de fichas para se ligar de orelhões. Com o tempo essas fichas de orelhão, como se chamavam, foram sendo substituídas pelos atuais cartões de telefone. E pensar que naquela época o fato de se ter linhas de telefone era sinônimo de status e investimento econômico. Cheguei a possuir duas, que com a chegada do celular tivemos que vender para aproveitar o valor de mercado. Por falar nisso, meu primeiro celular foi um Motorola daqueles que mais pareciam um tijolo. O carregador de bateria mais parecia um equipamento eletrônico de grande porte. Meu aparelho tinha o famoso flip (acho que era assim que se chamava) e uma antena ridícula que tínhamos que puxar para captar sinais. Era a modernidade que chegava para facilitar nossas vidas.

Minha televisão era uma CCE de 14 polegadas e era colorida. E pensar que bem antigamente existiam umas telas que se colocava na frente das televisões para dar o colorido das imagens. A tela era dividida em quatro cores, azul, amarelo, verde e vermelho, e logicamente os personagens iam mudando de cor de acordo com a movimentação das cenas. Tinha também comprado um novo aparelho de som, que tinha deixado de se chamar radiola. Era um gradiente, daqueles grandões que tinha toca disco, CD, amplificador e mais uma porrada de coisas que nem sabia para que servia. Nos toca-discos não existia leitura óptica e isso era feito através de uma agulha (era assim que se chamava, agulhas de radiola) que a gente precisava substituir quando se desgastava. E era muito comum riscar os discos por causa dessas agulhas ou mesmo na movimentação do braço do equipamento. Uma vez riscado, o vinil estava praticamente perdido. Era um tempo onde se falava das músicas do lado A ou B do disco tal. E lembro que quando fazia festas em minha casa alguém sempre pedia: toca a faixa dois do lado B. Mas era também o inicio da substituição dos antigos discos de vinil. Ainda lembro-me de meus primeiros CDs, um de Nana Cayme e outro de Gal Costa. Adorava meus antigos discos, mas como tudo nos dias atuais, tornaram-se obsoletos.

Acho que os anos noventa podem ser definidos como a geração de consumo desenfreado. Hoje vivemos processo semelhante com o aparelho de telefone fixo. O meu, por exemplo, tem fax. Alguém consegue explicar nos dias de hoje qual o valor real de um fax na vida de alguém? E vídeo cassete? Tinha de duas e quatro cabeças. E aquelas fitas enormes que ocupavam espaços de nossas estantes e que depois se enchiam de mofo? Alguém se lembra do limpador de cabeçote? Engraçado pensar que mantenho em minha casa um aparelho de DVD, que pelo tempo que não uso acho que nem funciona mais.

E as câmeras fotográficas? Sou de um tempo que retrato, pois era assim que se chamava, era coisa para retratista. Ele chegava a sua casa, escolhia o cenário e tudo virava festa. A gente esperava não sei quanto tempo para ele trazer a foto, que era em preto e branco. Tinham também os tais binóculos onde a gente tinha que esfregar um dos olhos para ver a foto que ficava em seu interior. Era só a película do filme e logicamente cabia apenas uma foto. Assim, se tinha um bocado de pequenos binóculos coloridos. Depois tinhas os retratos de família. Lá em casa eram dois, cada um com cinco filhos e ficavam pendurados nas paredes da sala de visitas (sim, as casas tinham salas de visitas). A gente tinha que tomar banho, pentear cabelos e vestir roupas novas para ser fotografado. Lembro que nesse dia, que logicamente esperamos ansiosamente, tive que tirar a foto meio que de perfil. É que numa das muitas brigas com meu irmão menor, ele atingiu meu rosto com um pedaço de cano. Não queríamos que o ferimento aparecesse na foto e aí não teve outro jeito. Lembro também que existia uma técnica de colorir as fotos. E um dia minha irmã mais velha contratou um retratista para colorir uma foto sua. Poderíamos dizer que a técnica funcionava como uma espécie de foto shop da época. Quando ele entregou o material, tinha adicionado uma medalhinha num trancilim de ouro (alguém sabe o que é trancilim? Nem sei se é assim que se escreve). Só sei que o resultado não foi muito agradável. Depois vieram as câmeras fotográficas com flash. Você comprava um “flash”, adaptava no equipamento e conseguia tirar até quatro fotos. E aí se levava para revelar e em média uma semana depois podia ir buscar para ver os resultados. Era comum a gente passar pelas ruas ver as fotos das pessoas girando pelas engrenagens das máquinas de revelação. Isso era sinônimo de modernidade.

Os anos noventa trouxeram também a informática e os computadores cada vez mais potentes. Mas antigamente se utilizava as máquinas de datilografia. Na minha época todo mundo que era atualizado e queria trabalhar tinha que ter diploma de datilografia. Tive uma daquelas máquinas de escrever “Ollivette”, daquelas de ferro. Era portátil, o que significava que já era moderna para a época. Tinha-se que comprar as fitas, que eram preta e vermelha e que se utilizava ao máximo. Quando a fita acabava a gente tinha que rebobinar os carretéis, instalar novamente e seguir datilografando. Os trabalhos de escola ficavam imensos e os relatórios de trabalho verdadeiros calhamaços de papel. Acho que ainda existiam as enceradeiras, aquelas máquinas enormes que a gente utilizava para encerar o piso. Lembro que quando crianças a gente encerava sempre o terraço que na época já era de cerâmica. Porém nos anos noventa já usava cera liquida que a gente esfregava com um pano limpo. E era impressionante a quantidade de quedas e escorregões que se levava nos pisos encerados. Lembro também que sou de época em que se utilizava filtros de barro. E todo mundo tinha em casa uma jarra grande, que também de barro servia para armazenar água. As quartinhas eram bem menores e normalmente ficavam em cima do balcão de cozinha. Ah, que saudade de água de quartinha. Quando a água encanada chegou lá em casa, na época de infância, foi uma novidade. Como já relatei, lá tinha uma cacimba e meu pai instalou uma máquina elétrica que bombeava a água para a caixa d’água. A tubulação foi toda feita em cano de PVC. Era um verdadeiro engendrado com tubos, joelhos, roscas e fita de vedação. As geladeiras substituíram as jarras e quartinhas, mas a água não tinha o mesmo gosto. E aí peço desculpas para a licença poética, pois sei que água não tem gosto. Mas até hoje, ao beber água busco por um sabor que se perdeu na minha infância.



Um comentário:

  1. Cara, chega uma hora que você tem que ser independente, pra toda a galera chega a hora de juntar a poupança comprar casas e sair das casas dos pais...

    ResponderExcluir