terça-feira, 28 de junho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - DE VOLTA AO PASSADO










PRIMEIRO CAPÍTULO DO RECOMEÇO
Há exatamente um ano comecei a escrever sobre minha própria vida. E confesso não ser uma coisa muito fácil falar sobre si mesmo. Relendo algumas linhas comecei a refletir sobre como a vida segue rapidamente por caminhos que, muitas vezes, nem imaginamos ser possíveis. Alguns planos ou projetos se concretizam, outros não. Alguns abandonamos ou simplesmente decidimos por adiá-los. A vida nos obriga, inevitavelmente, a rever constantemente nossos próprios conceitos. E isso se torna por demais, interessante. Apesar de doze meses não se configurar como tão prolongado período de tempo, percebo que muitas coisas importantes aconteceram. Algumas boas, outras nem tanto. Na semana passada ao reencontrar uma grande amiga, ela me disse que nunca se esquecera de uma frase que havia lhe enviado por e-mail: “por mais difíceis que sejam as fases da vida, todas merecem ser vividas”. Logicamente não lembrava mais de tal mensagem, mas confesso ser gratificante saber que o que dizemos, ou dissemos em algum momento, servira, serviu ou servirá de alento ou referência para alguém. E é exatamente sobre isso que resolvi escrever: as fases da vida e o merecimento de vivê-las com dignidade.

Em um ano alguns acontecimentos se tornaram marcantes em minha trajetória e por isso 2011, com certeza, me será inesquecível. Tornei-me professor, e pela primeira vez tive que encarar o desafio de enfrentar salas repletas de jovens alunos ávidos por novos conhecimentos; voltei a trabalhar para mim mesmo, e assim estou num processo de reestruturação pessoal e profissional; minha mãe faleceu depois de alguns dias internada em uma unidade de terapia intensiva. Posso mesmo dizer que neste ano consegui ser ouvido por milhares de pessoas. Primeiro devido ao sucesso do blog que hoje tem uma média de mil acessos mensais. E neste ponto, confesso ainda me espantar em perceber que pessoas desconhecidas, inclusive no outro lado do mundo, investem tempo para ler memórias, pensamentos e conjecturas de uma pessoa totalmente comum. Também falei para variadas platéias, seja através das aulas, seja em palestras de capacitação de profissionais, seja através dos textos que escrevo para encenações teatrais. São minhas idéias e percepções sobre a vida atingindo milhões de pessoas, em várias localidades e de diferentes formas. Por fim, das três premissas básicas para se marcar a passagem na terra (plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho) que falei no início de minhas memórias, posso afirmar me sentir extremamente feliz em está a um passo de concretizar a segunda (sobre a qual pretendo falar posteriormente). Acho que isso já se torna suficiente para justificar e explicar por este ano se torna tão importante para mim.

Relendo também os escritos iniciais percebo o quanto faltou ser dito ou contado. Engraçado lembrar que após as postagens no blog meus irmãos reclamaram (no bom sentido, claro) a ausência de algumas passagens importantes e memoráveis. Divertido e gratificante foi vê-los também voltar ao passado em busca de lembranças que hoje se tornaram engraçadas e divertidas a ponto de provocar boas e altas risadas. Peço então licença para me redimir diante de tal falha vasculhando minhas histórias (que também são deles) para recompor nossas trajetórias. Esclareço, contudo, que tais relatos corresponderão ao meu modo de ver a vida, de entender os fatos e de ressignificar algumas situações, a fim de evitar os “dramalhões mexicanos” sobre pobrezas e dificuldades sociais que se tornaram marcas registradas dos cantores de duplas sertanejas. Neste aspecto, relembro de uma frase dita pelo ex-presidente Lula, no Marco Zero, diante de milhares de conterrâneos: “só sabe o que é falta, quem já passou por isso”. E partindo desse principio posso afirmar que pobreza nunca foi vergonha, pois que essa se concentra na impossibilidade de condições dignas de existência e desenvolvimento saudável.

Posto isso, dá para entender as dificuldades e ausências sentidas e vivenciadas por uma família composta por dez filhos, uma mãe semi-analfabeta e um pai que muito jovem se tornou o provedor. Minha casa mudou de estrutura e tamanho várias vezes, talvez no mesmo [des]compasso com que evoluiu o número de irmãos. Refazendo as contas, na semana passada descobri que minha mãe se casou com dezoito anos, provavelmente no mês de julho, já que minha irmã mais velha nasceu no mês de abril. Isso significa que antigamente [exatamente a cinquenta e seis anos atrás] as mulheres casavam e logo se viam grávidas. Se meus cálculos estiverem corretos, até eu nascer em 1966 [sim, irei completar 45 anos de idade] minha mãe se manteve grávida por doze anos consecutivos. Isso significa uma média de 1,5 filhos por ano. Ou seja, mal paria, ela se descobria novamente gestante. E antes que perguntem ou questionem a soma, lembro que depois de mim vieram mais dois filhos, que devido ao desenvolvimento foram gerados em intervalos maiores.

Do pouco que sei sobre a história de meus pais, fica o registro de uma conversa relatada por minha mãe em certa ocasião. Ela nascera em Gravatá, cidade interiorana, a mais ou menos uma hora e meia do Recife [lembrem que sou péssimo em orientação geográfica e espacial]. Viveu sua infância junto aos irmãos em um pequeno sítio, que nem sei onde se localiza. Na verdade nunca conheci sua cidade natal. Para mim era apenas mais uma das pequenas cidades pelas quais passava quando em viagem rumo a Caruaru ou Petrolina. Pelo que sei a pobre família era dirigida por um pai severo, que batia nos filhos e adotava punições severas, como por exemplo, colocar os filhos homens para trabalhar nus no campo. Lembro de minha mãe contar que me algumas situações precisou engatinhas escondida pelo chão para levar-lhes roupas, comida e água. Lembro também de seus relatos sobre suas corridas em cavalos, momentos em que se sentia livre e poderosa. Na verdade sei muito pouco de seu passado, mas sei que devido as aspereza do pai, alguns filhos tomaram o mundo sem deixar rastros. Um deles reapareceu depois de décadas em São Paulo. Já morávamos em Camaragibe quando um carro estranho estacionou na frente de casa. Minha mãe emocionadíssima, de imediato reconheceu o irmão desaparecido, que trouxera a família em viagem de férias. Esse fato nunca saiu de minhas memórias, até porque foi a primeira vez que andei de carro. Nem sei ao certo que idade tinha, mas sei que era uma criança meio afastada da civilização, e isso logicamente tinha uma importância enorme. O carro era uma Brasília, se não me engano, de cor creme. O irmão de minha mãe tinha uma esposa gorda e duas filhas adolescentes. Em determinado dia fomos todos à praia. O carro ficou pequeno para tanta gente. Tinha meninos na mala e também amontoados, uns sobre os outros no compartimento de passageiros. Minha tia gorda me ajeitou entre suas pernas, e agachado ali não conseguir ver as maravilhas do desenvolvimento. Não sabia o que eram prédios e muito menos tinha visto tanto carro ao mesmo tempo. Mas encolhido daquele jeito pude apenas visualizar as nuvens que passavam apressadas pela janela.

Outro irmão de minha mãe nunca voltou e provavelmente morreu sem reencontrar a família. Das irmãs, sempre tivemos poucas notícias. Na verdade, nunca tive muita aproximação, e muito menos afinidades com tios, tias e primos e outros parentes e aderentes. Acho que a distância nos impossibilitava disto. Assim, nossa família se resumia a nós mesmos e aos muitos bichos que sempre criamos. Mas, voltando a história de minha mãe, sei que viera morar na casa de uma senhora conhecida como “Didinha”, que na verdade nunca soube direito o grau de parentesco. O que sei ao certo é que morava em plena Av. Norte. Segundo uma de minhas irmãs, ela era prima de minha mãe, ou seja, seu pai era o irmão rico do meu avô materno. Tinha alguns filhos [que nem sei ao certo quanto] e uma filha única de quem minha mãe se tornaria “dama de companhia”. Se hoje em dia, ainda se torna comum importar crianças de outros municípios (menos desenvolvidos, logicamente) para assumirem os afazeres domésticos nas casas das famílias de classe média aburguesadas da capital, imagina naquelas épocas em que nem se imaginava falar sobre direitos das crianças e adolescentes. Assim, a família abastada se dividia entre a casa do Recife, onde moravam, e a de Olinda, onde veraneavam todos os anos. Apesar de imaginar as belezas da época, esse se tornou um período do qual nunca tive muitas informações. Sei apenas, que como acompanhante minha mãe parou os estudos na mesma época em que a “senhorinha”. Da casa na Av. Norte ainda me lembro, pois, quando criança a acompanhei em algumas visitas. Era grande e tinha terraço com piso de mosaico vermelho com adornos brancos, que também se estendiam por todos os cômodos. Eles também tinham televisão e até tela colorida. Nesta época, essas telas eram adaptadas ao aparelho para colorir as imagens. E assim, podia ver Fred e Wilma Flingstones mudarem de cor a cada movimento. Era alta tecnologia só acessível aos ricos. Tinha um muro na frente e nas pilastras que seguravam o portão havia uma pinha portuguesa de porcelana colorida. Daquelas que ornavam as residências dos que tinham beiras.

Minha mãe conviveu com eles por muitos anos, e segundo ela, nossos destinos seriam bem diferentes se quando, recém saída da adolescência, tivesse resolvido aceitar o convite de um pretendente caminhoneiro apaixonado. Independente disso tudo o seu encontro com meu pai parece ter se dado em uma das janelas dessa casa. Gosto de imaginar que era uma tarde ensolarada e que na tal janela existia vasos com flores, daqueles que se estendem por todo o peitoral, onde as moças colocavam o rosto sobre as palmas das mãos e ficavam a suspirar pelos príncipes encantados que por ventura lhes lançavam olhares languidos de paixão [adoro os olhares lânguidos, que significam voluptuosos e sensuais]. Ao que tudo indica esses encontros foram se sucedendo até que um dia o enamorado futuro papai tomou coragem para adentrar na residência e pedir permissão para namorá-la. Daí para o casório e consequentemente para a chegada de uma penca de filhos, parece que foi um passo. Neste ponto, não sei ao certo a cronologia dos fatos, mas pelo que minhas irmãs contavam o jovem casal morou por alguns anos no bairro de Água Fria, próximo a casa dos meus avôs paternos. Como a situação financeira de início não era das melhores, parece que se fez necessário uma distribuição dos filhos entre os parentes mais afortunados. Assim, a primeira filha passou umas temporadas na casa da avó, que lhe deu o nome de batismo; e a segunda, no sítio de uma tia que morava no município de Vicência (local que por coincidência trabalha atualmente). Acho que essas “temporadas” não foram tão curtas, uma vez que, pelo que eu sei só após meu nascimento nos mudamos para Camaragibe.

Era uma pequena casa perdida no meio dos matos. Pelo que me contavam os mais velhos, tinha apenas uma sala, quarto, cozinha, e um grande espaço para se construir. A casa foi sendo reformada de acordo com a chegada dos novos filhos. O banheiro era externo e logicamente não tinha água encanda [como se chamava], por isso era preciso pegar água na cacimba e colocar no vaso sanitário [que se chamava bacia]. Ainda lembro o quanto era difícil e temeroso acordar durante a noite para ir ao cubículo escuro. Como era criança, era natural que tivesse medo de assombração. Isso na verdade não tinha. Mas tinham os sapos e as lagartixas que corriam pelas paredes. Daquelas escuras e cascudas que paradas, nos fitavam balançando a cabeça. Nossas camas coletivas e muitas vezes dormimos amontoados, o que não deixava de ser divertido. Com o passar dos tempos os cômodos foram melhor divididos e passamos a dormir em beliches de madeira, confeccionados por meu pai. Detestava dormir no andar de cima, pois como me mexia muito durante a noite, as vezes caia e estatelava no chão. Dizem que em um desses episódios meu sono era tão pesado, que mesmo tendo caído, continuei a dormir [será que não tinha desmaiado?]. Meus irmãos também não gostavam do fato. Isso porque, segundo eles, eu urinava na cama e a urina escorria por cima de quem dormia na cama de baixo. E nesse ponto, também é engraçado lembrar que a gente não urinava, mas mijava.

Mas antes disso lembro que quando criancinha dormia em um berço protegido por um mosquiteiro. Em certa noite acordem aos ouvir os sons de pequenos sinos. Havia fadas minúsculas sobrevoando o berço. Elas eram coloridas e cintilantes e brilhavam na noite escura. Nunca descobri se o fato foi real ou apenas sonho. De qualquer forma, acho mesmo que as crianças são mesmo protegidas em seus sonos. E isso nós éramos, tanto pelos adultos, quanto pelos seres invisíveis que nos livram de várias enrascadas e difíceis situações. Essa é a única explicação que encontro para o fato de nunca termos sido picados pelas tantas cobras que apareciam naquela casa. Elas vinham de todos os lados. Telhado, janelas, portas, buracos de tijolos e das árvores. Certo dia, durante o café da manhã, uma papa-ova caiu de telhado bem em cima de nossa mesa. Foi um corre-corre. Em outra situação, outra apareceu na porta da sala. Certa vez, minha irmã mais velha saiu correndo nua do banheiro porque uma cobra havia entrado pela janela enquanto tomava banho. Já as cobras cipós sempre nos causavam arrepios e repugnâncias. Na verdade acho que não são venenosas e por serem finas demais se assemelham a galhos de árvores. Assim, muitas vezes as confundíamos e elas escorregavam de nossas mãos.

Sei que meu pai trabalhava muito e por isso só estava em casa à noite. Às vezes conseguíamos esperá-lo e ficávamos na mesa enquanto ele jantava. Depois eu e minha irmã [que ele chamava de “bitoco” e “bitoca”] ficávamos fazendo cachos em seus cabelos, que já eram grisalhos. Sua cabeça ficava cheia de pitós amarrados com linha. Gostava que fizéssemos cafuné até que adormecesse. Perto de nossa casa tinha uma linha férrea e um pontilhão enorme. Muitas vezes até brincamos lá. Era conhecida como a linha do trem. Havia uma placa vermelha com as palavras: pare, olhe, escute. Esse trem atravessava a pista de asfalto, e por isso, ocorriam muitos acidentes graves, que logo se transformavam em notícia e movimentava o lugarejo. Um desses grandes acontecimentos foi provocado pelo boato de que a barragem de Tapacurá teria estourado. Foi um inferno em Recife. O radio divulgava informações a todo o momento e povo entrou em desespero. Foi um dos maiores acontecimentos de minha infância. Nem sei o que significava aquilo tudo e muito menos onde ficava a tal barragem. Mas sabia que era uma catástrofe. Minha mãe estava preocupada com meu pai, que só chegou muito tempo depois. Soubemos então que ele precisou atravessar o tal pontilhão em pleno breu. Como os trens haviam parado por causa dos boatos, as pessoas tiveram que voltar para suas casas a pés. Hoje imagino o desespero e o cansaço de tal empreitada, afinal de contas são quilômetros e mais quilômetros do Recife até Camaragibe.

Minha terra encantada [acho que sofro do complexo de Piter Pan] ficava muito longe da cidade. E não se iludam, naquelas épocas, e por muito tempo, chamávamos de cidade apenas a capital. O resto, ou demais territórios eram apenas locais onde morávamos. Tudo acontecia naquele pequeno espaço de terra repleto de matas e ruas de barro que se estendiam por longas estradas. Só para se ter uma idéia de como era desestruturado e distante o danado do lugar, diziam que morávamos “onde o diabo perdeu as botas”. Minha mãe nos dizia em suas histórias que “era onde o vento fazia a curva”. Na verdade por muito tempo não tinha idéia do que isso significava, pois no meu referencial não existiam outras paragens [como diriam os matutos]. Assim, meu mundo se resumia a algumas ruas onde brincávamos até o entardecer e o terreno de minha casa, que na época considerava imenso [talvez minha falta de percepção espacial esteja correlacionada, vai se saber]. O fato é que a infância feliz foi marcada por fatos históricos que recontam a própria história do país. Como já disse anteriormente, sou filho da ditadura, pois nasci em pleno regime militar. A censura era tão grande que até paródias com a música do Roberto Carlos era proibido. Sabe aquela que ele diz: “olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando/ olho prá terra e vejo uma multidão que vai caminhando...“ [?]. Pois é, para nós era bastante divertido mudar a letra e cantarolar: “olho pro céu e vejo uma nuvem negra de urubu, olho prá terra e vejo uma multidão tomando no cu”.

É claro que quando estávamos na frente dos mais velhos, não chegávamos a completar a frase, porque cu era coisa feia. Era palavrão e significava ofensa e falta de educação. Não cabia na boca de crianças inocentes, assim como “essa tabaca”, “essa porra”, “esse cacete”... “Essa buceta” nem pensar. Naqueles anos, no máximo, criança revoltada usava chigamentos como “essa cebola”, “ora pipoca” e coisas do gênero, que sem graça e sem sentido não traduziam nossos sentimentos de raiva. Assim, ao cantar a música proibida à gente completava com a seguinte frase: “... olho prá terra e vejo uma multidão tomando... Brahma chope... Brahma chope...” Em outras situações também podíamos mandar alguém tomar no “Crush” [alguém se lembra disso?]. É que esse era o nome de um antigo refrigerante de laranja que era vendido em uma garrafa de vidro, barrigudinha, onde se lia Crush em letras verdes vazadas. Em nossas bocas o nome da bebida torna-se sinônimo de pornografia e nos servia para ofender a quem nos contrariava.

Também costumávamos dar o dedo. E neste sentido, cada dedo da mão tinha um nome: polegar, indicador, maior de todos, tira bolo e cata piolho. O ato de dar o dedo se traduzia em contrair o indicador e o tira bolo para salientar e evidenciar o maior de todos [está tentando fazer? Tenta que é legal]. Dessa forma surgia em nossa frente uma imagem que Freud denominaria como falo, mas que para nós significava um “caralho”, que era como denominávamos o pênis. Dependendo da intensidade de nossa raiva podíamos dar o dedo e dizer de forma grosseira: “toma prá tu”, ou então, “senta aqui e roda”! E isso era ofensa grave, que muitas vezes justificavam a violência por parte dos adultos que nos batiam na boca.

Quanto às brincadeiras eram criativas e variadas. Podíamos brincar de “pega” que consistia em correr atrás de alguém para torná-lo o perseguidor; ou de “trinta e um alerta”, que consistia em brincar de se esconder. Quem era descoberto ia para uma pilastra ou árvore mais afastada e contava em voz alta de um até trinta e um, enquanto os outros se escondiam. Caso fosse descoberto, tínhamos que nos livrar do perseguidor e correr até o local para gritar: trinta e um alerta. Era a senha que garantia a vitória. Passávamos noites inteiras e consecutivas correndo como loucos pelo quintal, normalmente acompanhados por nosso cachorro Ping. Acho que esse era um animal que se considerava gente, porque mesmo nos atrapalhando participava das brincadeiras, normalmente revelando nossos esconderijos. Também pulávamos academia [ou amarelinha]. Mas era proibido porque dava azar e diziam que o pai da família podia morrer. Por isso mesmo nunca tivemos um pé de pinheiro em nossa casa. Segundo as crendices se o topo do mesmo ultrapassasse o telhado nosso pai morreria no ano seguinte. Na verdade sempre quis colocar em xeque essa verdade absoluta. Não que desejasse a morte do meu pai, mas porque nunca gostei de [ou ser obrigado a] acreditar em algo que não podia comprovar. Acho que era partidário de Santo Agostinho, e por isso, tinha que ver para crer. Na impossibilidade, as brincadeiras de roda se tornavam suficientes e divertidas. “Atirei o pau no gato” era a mais comum e bobinha. O “Pai Francisco” dançava enquanto cantávamos “quando ele vem se requebrando, parece um boneco se desmanchando”. E isso, dependendo de quem o interpretava provocava deliciosas risadas. “Passar o anel” ou a fita, “barra ou bandeira” [que eu chamava de Bárbara Bandeira, imaginando uma mulher importante e poderosa], “esconder a peia”, “garrafão”, “pular cordas” e tantas outras enchiam nossos imaginários.

Lembro também das “bolas de gude” [acho que é assim que se escreve]. Havia verdadeiras competições e quem tivesse a maior bola era considerado esperto e inteligente. As que eram de metal, chamadas de rolimãs, eram super cobiçadas e valiosas. Riscava-se um triangulo no chão e em cada ponto se colocava uma bola dessas, depois com os dedos íamos empurrando até bater umas contra as outras. Quem acertava ficava com a bola do outro e aumentava sua coleção. Normalmente surgiam as brigas, mas as regras sempre eram respeitadas. Lá em casa, no terraço, vivia um sapo de estimação. Desses cururus, que vivia escondido atrás de um vaso de planta. Muitas vezes ele engolia nossas bolas e voltava a se esconder, acabando com a brincadeira. A gente tinha que esperar até o outro dia para ver se o bicho vomitava a bola, que tinha que ser lavada. Quem vigiasse o sapo e conseguisse recuperá-la se tornava seu dono. Muitas vezes eu até me coloquei a esperar, mas o sapo era teimoso por demais e só devolvia a bola quando queria. Também tinha os “espetos”, que eram considerados perigosos por causa dos riscos de se atingir os pés de alguém. Mas a gente nunca se importou e jogava escondido mesmo. “Jogar queimado”, ou “matar-morreu” era outra diversão que aglomerava as crianças e adolescentes do local. Havia um campo [na verdade um terreno baldio] ao lado de nossa casa. Era lá que, sem camisas, a gente queimava do sol e também das boladas violentas. O impacto da bola no corpo suado fazia queimar a pele. Tinha uma menina chamada Tissa [ou seria Tirça?]. De qualquer forma o apelido era referente a tição, devido a sua cor. Vale salientar que naqueles tempos não existiam os movimentos negros para reclamar as ações de racismo. Ela era a melhor e mais forte jogadora. Eu adorava competir e por isso sempre jogava no time contrário. Às vezes ganhava, em outras perdia. Na verdade sempre tive grande adimiração por Tiça. Porém hoje, se a encontrasse na rua provavelmente não nos reconheceríamos. Digo isso porque andando pela Av. Conde da Boa Vista, onde moro a mais de duas décadas, sempre vejo uma senhora que comercializa nas ruas. Tenho certeza que se chama Santana. E lembro que quando era criança, sua mãe a amarrava com cordas aos pés dos móveis para ir trabalhar. É engraçado pensar sobre os caminhos que tomamos, ou destinos que seguimos. Mas voltando, do lado oposto ao tal campo havia outro terreno com um jambeiro frondoso, onde a gente se trepava [ato de subir] o mais alto possível para se livrar das boladas que viam de baixo. Quem fosse atingido tinha que descer e se tornava o bobo.

Dia de praia era uma farra. Na verdade nem sabíamos onde ficava o mar, que pra gente só existia nas histórias mirabolantes do capitão gancho. Lembro que um dia estava marcado o piquenique. Passamos a noite rezando para não chover. Nem sabíamos como se vestir para ir a praia. Só sei que para evitar o naufrágio de nossa aventura era preciso que o caçula [filho mais novo] desenhasse um sol bem grande no quintal. Dessa forma ficávamos na dependência de nossa irmã, que muito nova, não sabia desenhar direito e por isso colocava nosso programa em risco. E é interessante que nossa representação infantil de sol tinha olhos, nariz e uma boca aberta cheia de dentes. No dia seguinte, acordamos cedo [na verdade apenas levantamos da cama porque não tínhamos conseguido dormir], tomamos banho, escovamos os dentes, penteamos os cabelos e sentamos para esperar pela hora de passear. O ônibus era longe e tínhamos que andar a pé até a estrada de asfalto [ou pista, como era conhecida a única rodovia que cortava a cidade]. A companhia que fazia o transporte até Recife era conhecida como Alberto Maia, e acho os dois únicos ônibus só passavam de tempos em tempos, seguindo em sentidos contrários. Ou seja, enquanto um vinha sentido subúrbio, o outro ia sentido cidade.

A gente adora passar pela Avenida Caxangá, que era enorme. Logo depois da ponte que divide os municípios havia uma loja de alguma coisa, que tinha um grande monumento onde existia um pinto dentro de um ovo de concreto. Tenho essa imagem na cabeça até os dias de hoje e mesmo com as mudanças estruturais provocadas pela passagem do tempo sei exatamente onde ficava o dando do pinto amarelo. A viagem até a praia era cansativa. O ônibus lotado, muitas vezes dificultava a acomodação das nossas bóias. Eram câmeras de ar, de pneus de ônibus, que cheias acomodavam várias crianças, e até adultos, que se balançavam nas ondas. Quando o mar estava cheio as crianças ficavam brincando apenas na beira. Era terrível a quantidade de areia que entrava pelos calções. Como era terrível também a quantidade de água salgada que engolíamos quando atropelados pelas ondas fortes. Os garotos mais velhos e alguns adultos se arvoravam de mar adentro. Eles sabiam nadar, pois estavam acostumados com os açudes e rios próximos as nossas casas.Eu nunca me arrisquei. Primeiro porque nunca pude tomar banhos de açude, logo não tinha aprendido a nadar. Depois os adultos alertavam sobre os perigos de tubarão. Diziam que se sentisse cheiro de melancia deveríamos sair correndo. Cheiro de melancia era sinal de tubarão nas proximidades. Mas eu não sabia como era o cheiro de melancia, logo, como poderia me proteger? Não entrava fundo no mar, como hoje ainda não entro. De qualquer forma, o que antes era uma precaução, hoje se transformou em fobia. Só depois de adulto é que vim descobri que não sabia o cheiro da melancia por que não tinha olfato.

Os dias de piquenique era uma danação. Quando a fome batia a gente sentava num canto e devorava tudo que vinha pela frente. Tinha cachorro quente, feito com pão Frances. Pão com carne de lata [Wilson, claro], pão com ovo e pão com doce de goiabada. Tinha também biscoitos com doce e bolachas Cream Cracker. Isso era lanche, porque o almoço mesmo era à base de macarronada [provavelmente fria e engordurada] que se misturava com farinha para render. Quando o vento pegava de jeito era farinha por todos os cantos, olhos, boca, nariz e cabelos. Às vezes surgia feijão e até arroz com carne. As frutas eram muitas e variadas, principalmente as laranjas, bananas e melancias. Passávamos a manhã e parte da tarde no melhor estilo farofeiro. Era divertido enrolar na areia e ficar todo melado, parecendo fatia parida. Ah, essas também entravam no cardápio [dá para acreditar que um dia comi fatia parida em baixo de sol quente, em plana praia de Boa Viagem?].

Em certa ocasião, uma vizinha que nos acompanhou levou até sabonete novo para tomar banho de mar. Hoje imagino a cena dantesca do casal se ensaboando todo e se enxaguando com água salgada. E essa era terrível durante a volta porque o sal impregnado parecia nos furar quando em contato com as roupas. Eu sempre tive problemas com os ônibus. Nada relativo a preconceito ou coisa parecida. Mas é que eu não podia pegar ônibus com cadeiras azuis salpicadas com pontos pretos e cinzas que logo vomitava. As cadeiras de couro vermelho também me provocavam as mesmas náuseas e lá ia eu botando tudo o que tinha comido para fora. Era um vexame, e logicamente também ficava envergonhado. Mas não tinha jeito. Eu precisava viajar olhando para o teto do veículo. E isso até funcionava. Mas se um freio forte ou uma manobra mais irregular me fizesse perder o foco, era vômito na certa. Assim, sair de casa rumo a destinos mais longos se tornava um inferno para mim. Enquanto criança vivia um verdadeiro conflito, uma vez que desejava a aventura ao mesmo tempo em que temia suas consequências e vexames.

Bom, como costumam dizer: relembrar é viver, e talvez por isso a gente termine perdendo a noção das horas. São duas da manhã e preciso acordar cedo para dar andamento ao livro que estou por publicar. De qualquer forma, essa é uma história que não acaba agora e nem tem pressa para ser contada. Assim irei apresentando-a em capítulos, o que me possibilita mais tempo para remover as teias da memória e completar meu retorno ao passado.

sábado, 11 de junho de 2011

DE COSTAS PARA O RECIFE


Familia desasistida no centro do Recife
cotidiano do centro urbano


A GREVE DA ASSISTÊNCIA SOCIAL EM RECIFE

Recife, capital pernambucana, tem aproximadamente 219,493 Km². Seu clima é quente e úmido, e a temperatura média é de 25º. Geograficamente, as áreas planas da cidade ocupam apenas 23% da extensão territorial, onde habitam milhares de pessoas. Pode-se então dizer que Recife é uma cidade cercada por morros, uma vez que estes representam 67% de todo o território metropolitano, onde logicamente habitam outros milhares de pessoas. Possui ainda uma área aquática equivalente a 9,31%, onde inevitavelmente também habitam milhares e milhares de pessoas que ocupam as áreas ribeirinhas e mangues. O resto é lindas praias, que se estendem por 8,6 Km da costa, onde se divertem poucos e trabalham muitos.

O sono dos inocentes
cotidiano do centro urbano
Politicamente, ou melhor, administrativamente, a cidade está dividida em 06 Regiões Político Administrativas. São as famosas RPAs, que podem melhor ser entendidas como “Regiões Politicamente Arrasadas ou Abandonadas”, para quem o prefeito atual costuma dá as “Costas”. Cada uma dessas é formada por uma enorme quantidade de bairros [RPA 1 - Centro 11 bairros, RPA 2 – Norte 18 bairros, RPA 3 – Noroeste, 29 bairros; RPA 4 – Oeste, 12 bairros; RPA 5 – Sudoeste, 16 bairros e RPA 6 – Sul, 08 bairros]. Ao todo são 94 bairros, dos quais 70,2% representam as ZEIS. E não pense João que tal nomenclatura significa o plural de ZEUS, ou ainda a escrita errada do número SEIS. Na verdade são Zonas Especiais de Interesse Social [mas talvez alguém já tenha te falado sobre isso]. Ou seja, a cidade do Recife possui 66 zonas especiais de interesse social. Mas o que isso realmente significa? Será que você sabe João? Traduzindo, essas zonas podem ser entendidas como porções territoriais, prioritariamente destinadas à recuperação urbanística, à regularização fundiária e produção de habitações de interesse social. Neste sentido, inclui-se a recuperação de imóveis degradados, a provisão de equipamentos sociais e culturais, espaços públicos, serviços e comércio de caráter local [deu para entender ou quer que desenhe?].

Moradias improvisadas
cotidiano do centro urbano

Mas aí, a pergunta seguinte será: por quais cargas d´água estamos falando sobre isso? E eu explico. É que segundo o Plano Piloto do Governo, identificar e reconhecer as ZEIS de uma cidade possibilita incorporar a cidade clandestina à cidade legal. Resumindo, o objetivo é associar desenvolvimento urbano à gestão pública, e assim, entender o direito à cidade e à cidadania [simples, não é mesmo João?]. Diríamos que teoricamente é perfeito enquanto estratégia política e de gestão pública. Mas o problema é que em Recife “perfeito” não é sinônimo de “prefeito”. E não é mesmo, João. Até porque perfeição é o Estado do que é perfeito, que vem do latim “perfectu”, e significa “feito até o fim”. Ou seja, perfeito se configura como algo acabado, terminado, algo que reúne todas as qualidades concebíveis. Perfeito é aquilo que atinge o mais alto grau numa escala de valores. Algo incomparável, único, sem-par. Alguma coisa que corresponde precisamente a um conceito padrão ideal, podendo ser classificado como ótimo; excelente e/ou irrepreensível [será que isso lhe diz algo?]. Já “prefeito”, também derivado do latim “praefectu” traduz-se como “posto como chefe”, ou seja, aquele que está investido do poder executivo nas municipalidades.

A realidade cruel de crianças e adolescentes
excluidos - cotidiano do centro urbano

O que quero dizer é que enquanto perfeição [perfectione, do latim] representa o conjunto de todas as qualidades, ou a ausência de quaisquer defeitos; prefeitura [praefectura, do latim] torna-se apenas uma representação da administração municipal. Logo João, extensivamente prefeito representa apenas um cargo ocupado por alguém, por algum período. Resumo da ópera: as pessoas podem sempre ser perfeitas em suas ações, atitudes, comportamentos e atividades, mais não podem ser prefeitas ou “prefeituráveis” para sempre. Assim, se prefeito é a figura de alguém que foi “posto como chefe”, significa que apenas ocupa temporariamente o cargo a mando, ou por decisão de alguém. No nosso caso, especificamente o povo. E este temporariamente nem sempre precisa significar os quatro anos de mandato legal, podendo inclusive ser reduzido ou eliminado. Cabe apenas ao povo [quem se habilita ao movimento de impeachment, que nada mais é do que o processo político, não criminal, que tem por objetivo apenas afastar o presidente da república ou qualquer pessoa do executivo?].

Descaso e omissão pública ns ruas do Recife
cotidiano do centro urbano

Voltando as questões do Recife, João, é preciso considerar que a sua população há dez anos foi estimada em 1.422.905 habitantes, correspondendo a 43% de toda população da Região Metropolitana [formada por 14 municípios]. Destes, 26,16% são de crianças e adolescentes; 67,33% de jovens e adultos; e 6,51% de pessoas idosas. Ainda segundo dados da própria prefeitura, Recife possui apenas 376.022 domicílios particulares permanentes, dos quais 87,96% contam com abastecimento de água; apenas 43% estão ligados à rede geral de esgotamento sanitário; e taxa de analfabetismo beirando os 14% (IBGE, 2000). De quem será a culpa, João? Entendes agora porque estás muito longe da perfeição?

A dignidade vencida pelo cansaço
cotidiano do centro urbano

Muito tenho te falado sobre as desigualdades sociais de nossa cidade, como também há muito tenho apontado a ineficiência da atual gestão. Mas hoje, chamo tua atenção para um fato inusitado, ignorado inclusive pela mídia e imprensa escrita: a greve dos profissionais da assistência social, que resolveram paralisar as atividades dia 30 de maio [Como podes deixar isso acontecer. O povo continua nas ruas, João?]. Segundo e-mail divulgado pela categoria, os educadores sociais do IASC [Instituto de Assistência Social e Cidadania – será que ainda existe?], bem como os assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e auxiliares administrativos dos CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] e do único CREAS [Centro Especializado da Assistência Social] estão em greve por melhores salários e condições de trabalho. Será que você entende alguma coisa do que estamos falando? Por via da dúvida, melhor transcrever a “Carta Aberta à População Recifense” que provavelmente você também recebeu [só não sei se teve tempo ou interesse em ler].

A carta diz o seguinte, João: A política de assistência social em Recife sofre com a total falta de prioridade política e administrativa por parte da Prefeitura do Recife através da Secretaria de Assistência Social deixando, dessa forma, a população está quase que totalmente desassistida. Esta política sofre de um processo de invisibilidade. Legitimada como política pública desde 2004, a Assistência Social ainda está longe de ser implementada com o mesmo status e importância de outras políticas públicas no município. Apesar da gestão atual sempre mencionar que o social é sua prioridade, isso não se evidencia no cotidiano de sua administração. A precariedade na Assistência Social no Recife vem desde a gestão anterior, na qual iniciou os serviços descritos pela Política Nacional de Assistência Social. Desde 2007, os servidores públicos manifestam sua indignação com a gestão municipal quanto à falta de responsabilidade e compromisso com a população que necessita dos serviços da assistência social.

Nesta gestão são evidenciadas diversas debilidades, dentre essas se destaca o número reduzido de Centros de Assistência Social (CRAS) e a não prioridade no município em estruturar esses equipamentos. Recentemente o Ministério Público abriu um inquérito para averiguar a situação dos CRAS e cobrar uma resposta da gestão municipal para a efetivação da política. Esses centros não existem na prática, pois dos 12 (doze) implementados no município apenas 03 (três) funcionam com local adequado para atendimento e, ainda mais para se ter uma idéia do caos, existe CRAS sem assistentes sociais e psicólogos, funcionando apenas com auxiliares administrativos. Há um déficit de profissionais para atender a população e não há outra desculpa para isso a não ser a falta de vontade do prefeito para repor o quadro funcional e convocar os aprovados no concurso de 2007, que ainda está vigente e seu prazo de validade é até dezembro deste ano.

Enquanto isso os serviços são insuficientes para atender a demanda, e os poucos profissionais da Assistência Social estão sendo alocados para cobrir os abrigos com as pessoas atingidas pelas chuvas. Alem disso, não é a toa que adolescentes e crianças estão às ruas ou se envolvendo mais cedo na criminalidade e no trafico de drogas, pois o PROJOVEM Adolescente é quase inexistente e o Programa de Erradicação ao Trabalho Infantil (PETI) é inoperante. Contudo, nos parece que prioridade para a gestão municipal está apenas na fala e em participação de eventos, pois nada se evidencia no dia a dia de uma política tão importante para uma cidade com altos índices de violência e desigualdade.

João, a greve em si mostra-se apenas como resultado de uma situação calamitosa que há muito se arrasta motivada pela tua ineficiência, tua falta de entendimento e de compromisso com a gestão pública. Neste sentido, interessante é observar o texto publicado no próprio site da prefeitura, enfatizando que “o Recife se destaca historicamente pelas suas lutas, envolvendo grande parte da população carente de infra-estruturas e serviços urbanos [você já leu isso?]. continuando, o texto diz que essa tradição se revela forte, desde as lutas libertárias aos conflitos pelas terras urbanas dos mangues e da planície. Outra forte característica do Recife, e que está associada à tradição referenciada, é o seu poder de organização, de reivindicação e de negociação, atribuindo marca emblemática à cidade [não é isso que está se fazendo agora, João?]. Apesar o texto ser quase romanceado, revela fatos importantes como o de possui grande número de organizações e movimentos populares que se fazem presentes nas várias instâncias de poder, procurando influenciar na concepção, formulação, implementação, monitoração e controle das políticas públicas. Portanto, a tradição do Recife é de um povo que se envolve nas lutas pela liberdade e pelo direito à vida, pela democracia, pelo desenvolvimento sem exclusão. Isto revela um forte compromisso com as causas coletivas e assegura o apoio à gestão que tem por base a participação e o controle social.

A exclusão sentida na pele
cotidiano do centro urbano

A grande questão, João, é que ironicamente ao negar condições dignas de trabalho e reconhecimento aos profissionais da assistência social, a tua gestão desmente e invalida todo um histórico de lutas. A contradição emblemática concentra-se exatamente em tua postura autoritária e descompromissada com as necessidades e desejos de seu povo. Na postura omissa de um prefeito que olha a cidade de “Costa”. Oh, João, e quantas vezes já te falamos que não é de Costas que se governa uma cidade como Recife? É preciso que entendas que para se efetivar a garantia de direitos da população, tais profissionais precisam também ter seus direitos garantidos. Isso é elementar. Por isso, volta para a escola, João [mas a pública não, porque para essa você também virou as costas e a comprometeu em qualidade]. Falo da escola das ruas, João. As ruas que estão cheias de famílias desassistidas por tua culpa, ineficiência e arrogância. Mas volta de frente, com coragem de ver e reconhecer o caos no qual você transformou o centro urbano. De frente João, para entender de uma vez por todas que você pode até “estar prefeito”, mas nunca chegará à perfeição necessária ao cargo. Até porque essa se traduz como maior grau de bondade, pureza ou virtude a que alguém pode chegar [o que não se aplica no teu caso]. Porque perfeição representa execução sem falhas, precisão, requinte, esmero [o que não se aplica a tua gestão]. Por fim, perfeição representa apuro, maestria e perícia [o que não se aplica a tua conduta]. Por isso, acorda João e encara o Recife de frente.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

AS QUATRO IRMÃS


QUATRO MULHERES DIANTE DA SANTA.

Era final de tarde e o sol já se apagava em escuras nuvens. Não havia movimentos nas folhas fragilmente presas a galhos sem vida. Não havia raiva. Não havia choros. O tempo parara para as quatro mulheres sentadas em um banco, de frente ao santuário. Não havia sons, apenas cumplicidade. Quatro mulheres vivendo ou revisitando suas dores. Quatro cabeças com negros cabelos já marcados pelo tempo. Não havia descontrole, apenas resignação. Quatro rostos que estampavam tensões. Quatro idades delimitando diferenças. Quatro vidas intelaçadas pela oriegem. Quatro irmãs perplexas diante do inevitável. Quatro órfãos paradas em frente ao altar.

Eram quatro mulheres de costas para mim. Não havia luxo. Não havia vaidades. Mas havia beleza. Uma cena cinematograficamente linda que ficará guardada em minha memória. Eram quatro olhares diferentes sobre um mesmo prisma. Quatro emoções igualmente sentidas. Quatro gargantas sufocadas pelo choro. Quatro mulheres divididas nas próprias [in]certezas. Não havia suntuosidade. Não havia magneficiência. Não havia consolo. Mas havia paciência. Havia a espera. A longa espera que atormenta a alma. Havia complascência com a fatalidade. Havia tristesa. Mas não havia falas.

Pessoas continuavam suas caminhadas nas ruas de pedras. Uma senhora entro chorando em seu veículo. alguém passou por mim sem me ver ou ser visto. A vida seguia seu rumo tranquilamente. Mas as quatro mulheres continuavam paradas em frente ao altar. Não as via de frente, mas conheço seus rostos. Uma espécie de matiz derivada da cor primária. Eram quatro mulheres coloridas em tonalidades e traços degradês. Extensões da primeira mulher. Exemplares fidedignos da genitora velha e enferma. Eram quatro mulheres adoecidas pelo vazio da matriz. Quatro mulheres paradas diante da morte eminente. Quatro mulheres perdidas em pesnamentos. Quatro irmãs unidas num só momento. Eternizado pelas lentes que me cobriam os olhos. Embassado pelas lágrimas que me salgaram a boca.

Eram quatro mulheres diante da Santa. Quatro mulheres a minha frente. Quatro mulheres num banco gélido e sem cor. Quatro mulheres paralizadas num dia cinza e morno. Eram quatro irmãs. Minhas irmãs e eu, diante de uma morte pré-anunciada. Era apenas isso. Solidão, impotência e vazio. Apenas uma linda e cinematografica cena que ficará para sempre nas minhas lembranças. Era fim do dia e o sol já havia ido embora. Era o fim da linha e o vento se recolhera. Era início do breu que cobriria as verdes folhas fragilmente preas a galhos sem vidas. Era o fim da vida. E apenas as quatro mulheres permaneciam silenciosas e quietas, sentadas em um banco, de frente ao altar.

Era apenas isso. Minhas quatro irmãs presas em uma cena plasticamente bela que permanecerá para sempre na minha memória.

sábado, 4 de junho de 2011

A ESPERA DA MORTE

Dona Alice - minha mãe.


À MINHA MÃE COM CARINHO

Era madrugada da quarta-feira e o quarto estava gelado. De repente fui acordado pelo movimento brusco de um corpo que afundava em minha cama. A sensação de pânico provocada pela presença de alguém ao meu lado me paralisou por completo. Não é a primeira vez que isso acontece. Não é a primeira vez que entro em choque. Alguém chorava e eu estava sozinho. E como sempre, fui tomado por um desespero que parece me deixar embriagado. O corpo não responde aos comandos cerebrais e os movimentos desengonçados me desequilibram física e emocionalmente. Não consigo falar, enxergar, mover, mas a audição se aguça e o mínimo ruído gera arrepios. Os momentos de tormenta parecem se prolongar por horas. Alguém chora ao meu lado, mas não existe ninguém no quarto frio e escuro além de mim. A presença não é física. Não vejo, mas sei do que se trata e por isso mesmo me apavoro.

Eram duas horas da madrugada quando senti que minha mãe estava presente. Talvez estivesse se despedindo. Talvez não seja nada disso. Talvez nada disso faça sentido. Mas o fato de sua morte está próximo me desperta um turbilhão de sentimentos e emoções que se revelam difíceis demais para explicar. A racionalidade perde espaço e o choro me lava o rosto. Acho que a morte fragiliza e inviabiliza a coerência. Mas penso que não choramos a morte em si, mas os incômodos que ela nos gera. Na verdade penso que a morte demarca uma despedida. Como numa viagem longa onde duas pessoas seguem caminhos opostos e não se encontram mais, como nos rompimentos de longas relações amorosas ou final de grandes amizades. Neste sentido, milhares de pessoas entram e saem de nossas vidas constantemente. E essas partidas são como mortes sucessivas as quais nos acostumamos com o tempo. Dizem que o tempo cura tudo. E a saudade inicialmente forte e dolorosa vai se atenuando com o passar dos dias.

A morte em si nos impõe mudanças de hábitos, e as vezes até de comportamentos. Penso que este é o motivo maior da nossa dor. A partir daquele momento teremos que agir de forma diferente. Não contamos mais com um elemento importante e precisaremos solucionar problemas a partir de outras perspectivas. Seja no campo das emoções ou no campo das questões físicas e concretas, a morte gera dor porque nos obriga a sair da nossa zona de conforto, que será novamente alcançada após um período de readaptação. E assim as coisas voltam ao normal. Nós humanos tendemos à acomodação até para eliminar o sofrimento e a dor. Buscamos conforto em outros ombros, outros amores, outras amizades. Não digo com isso que esquecemos o ente querido, pois pessoas importantes marcam nossas vidas para sempre. E na minha realidade, a figura materna tem importância e valor fundamental. A dor da perda se transforma e assume outra proporção ou dimensão.

Minha mãe sempre disse que as mães deveriam morrer antes de seus filhos. Que nenhuma delas deveria ter que passar pela triste experiência de enterrá-los. É como se o amor de mãe pelos filhos fosse muito maior que o inverso. E talvez seja verdade. Nós filhos, crescemos e constituímos novas famílias, construímos novas relações de afeto, parcerias conjugais. Multiplicamo-nos através dos nossos próprios filhos. Aprendemos a repartir o amor. Mas o amor de mãe é diferente. Talvez não seja repartido, mas distribuído naturalmente. E neste sentido o papel de mãe é talvez um dos mais importantes e difíceis por requerer abdicação e renuncias constante. Pelo menos essa é a referencia que tenho "do ser mãe". E neste sentido digo que a minha sempre foi uma grande mulher. Firme, forte e convicta em seus propósitos. Uma mulher guerreira que com dignidade gerou, criou e amou seus dez filhos. Uma mulher, que ao seu jeito nos ensinou e impôs as boas regras da vida. Que nos protegeu quando necessário e nos feriu quando devido. Que nos acarinhou e mimou mesmo sem necessidade.

Minha mãe é assim. Dessas mulheres batalhadoras e incansáveis na formação dos filhos. Dizia que estudo era fundamental e por isso batia pernas atrás de escolas, de livros, cadernos. Viabilizava possibilidades de dignidade, por mínima que fosse. Em certos momentos se mostrava compreensiva a ponto de reformular velhos conceitos, a ponto de rever posições e até de omitir opiniões que pudessem machucar. Em outros, se fazia altiva e imperiosa com suas ácidas críticas e comentários até certo ponto maldosos. Mas as mães são assim. E podem ser assim. Até porque, por pior que seja a situação as mães pensam sempre no bem estar dos filhos. E minha mãe sempre foi assim. Um bicho bravo capaz de atacar para defender sua cria. Capaz de dar a própria vida por um deles. Do tipo de pessoa que se fazia presente mesmo estando distante. Que cobrava proximidade. Que exigia notícias. Que reivindicava respeito.

Hoje penso que a dor [ou incomodo] que sinto é muito próxima da que senti quando sair de casa. É uma mistura de vazio e solidão que nunca passa. É um espaço que ninguém preenche. Um lugar que ninguém ocupa. A separação é sempre algo muito difícil. A única diferença é que aquela era um decisão voluntária. A de agora é imposta. Não existe possibilidade de escolhas, de intervenção. Não se pode mudar de planos, refazer as contas e reorganizar as ações. Agora não nos cabe nada. Não nos é perguntado se estamos prontos, ou se pode ser. Apenas é, e pronto. O que fica é a sensação de algo muito importante que foi perdido. Penso então no que perdi ao sair de junto, ao me desvencilhar para crescer. E crescer é algo que também dói bastante. Talvez porque não dar para voltar atrás. O tempo é impiedoso e segue tanquilamente seu curso.

A proximidade da morte de alguém que amamos impõe lembranças. Acho que é uma forma de prenuncio. Uma maneira de nos preparar ou talvez de purgar alguns pecados cometidos mesmo que inconscientemente. Não sei porque mas acho que estamos sempre em dívida com nossas mães. Não sei se falo besteiras. Na verdade não sei dizer o que sinto. Talvez seja novamente a sensação de vazio e solidão que ficará para sempre. A falta de algo que nos incompleta, nos aleija. É como se perdêssemos o elo. Uma espécie de fio que por mais distante que formos não se parte. Uma garantia de pertencimento, afinal somos sempre filhos de alguém. E o elo de um filho com sua mãe é sempre muito forte. E é diferente do elo com o pai. Neste aspecto, relembro que ela sempre dizia que “pai é qualquer um, mas mãe só existe uma”. E logicamente tinha razão. Filho é uma extensão da mãe. É como se ela se dividisse, se multiplicasse em vários.

E agora o meu fio está se partindo. E talvez ela esteja apenas esperando nossa compreensão e aceitação para completar sua jornada. A morte então é o repouso necessário. A recompensa por anos de dedicação e esforços sobre humano. E neste sentido, que ela tenha a certeza de missão cumprida. Que tenha certeza do meu agradecimento eterno. E acima de tudo que tenha o conhecimento do meu orgulho em ser seu filho. De ter aprendido tanto, de ter recebido tanto. Do meu agradecimento por ter contribuído para que me tornasse a pessoa que sou hoje. Penso que tenho tantas coisas que gostaria de dizer. Mas na verdade acho que os filhos nunca falam tudo. Talvez essa seja nossa principal dívida. Mas talvez não seja preciso. E de qualquer forma nunca daria tempo para contar ou falar tudo. Assim, que sua espera não seja longa. Pode partir em paz, pois que as lembranças sempre te farão presente. Um abraço, um beijo e boa viagem.

Boa noite minha mãe.