segunda-feira, 12 de julho de 2010

A HISTÓRIA DA MINHA VIDA - A Vida Adulta





















Auto Retrato/2006

Capítulo V – A Dor das Mudanças Necessárias

Ainda em meados da década de noventa me transformei num pequeno empresário. Fomos convidados a desenvolver uma campanha institucional voltada à orientação dos funcionários de uma grande empresa de bebidas sobre os riscos das DST/AIDS. A principal exigência de nossa primeira contratante era que fosse algo inovador e que possibilitasse a participação e interação com os empregados, favorecendo o processo de ensino aprendizagem. Optamos pela utilização do teatro como ferramenta didática e assim formamos uma cooperativa composta por seis amigos, sonhadores que na época buscavam a consolidação de suas carreiras artísticas e logicamente a conciliação do reconhecimento público e a possibilidade de viver das artes. Devo salientar que Pernambuco tem uma história antiga com as artes cênicas, o que nos anos oitenta nos fazer aparecer no cenário nacional como terceiro pólo da cultura brasileira. A produção local era efervescente e frenética. Tinham-se espetáculos em todos os teatros. Mas éramos amadores e buscava-se a profissionalização, processo que pude acompanhar até a criação e consolidação do sindicato.

Na época me tornei um dos primeiros atores do estado a retirar o registro como ator profissional no Ministério do Trabalho. Era preciso a elaboração de um currículo, juntar os comprovantes através de recortes de jornais, certificados de cursos de qualificação e três cartas de recomendações assinadas por diretores reconhecidos na cidade. Tinha apenas um espetáculo, porém consegui com o velho jeitinho brasileiro (lembram?), causando certo mal estar e falatório na cidade. Permaneci fazendo teatro por um período de mais ou menos dez anos e acho mesmo que essa experiência em muito contribuiu para que desenvolvesse outras habilidades que iam além da interpretação. Aliás, neste sentido, confesso que nunca me considerei um bom ator. Faltava-me algo que considero fundamental, a aptidão e/ou talento inato. Não que desconsidere a capacidade de desenvolvimento das outras competências, mas um ator técnico sem aptidão não consegue convencer ninguém. É uma outra forma de talento, se é que me entendem. É preciso aliar técnica a vocação. Mas, de certa forma, especificamente no caso do teatro, acredito que se nasce para ser ator. O que não era o meu caso, e acho mesmo que de certa forma, nasci na verdade para ser psicólogo.

O importante é que me considerava, e acho que todos também, apenas um ator medíocre, como muitos outros que se deixam levar pela vaidade. O ator é narcisista por natureza e muitas vezes se perde no reflexo de suas próprias imagens. Mas a mediocridade vocacional não se torna uma particularidade das artes cênicas (alguém discorda?). Logo, reconheço o quanto é difícil a autocrítica que nos impede o reconhecimento de uma auto-incapacidade ou falta de talento para uma determinada atividade ou profissão. Mas considero também que se trate de algo extremamente importante para que não perdamos tanto tempo investindo em algo que não poderá nos dar o retorno esperado ou desejado. Bom, mas isso é apenas meu ponto de vista e logicamente não pretendo considerá-la ou transformá-la em verdade absoluta.

Bom, mas depois do primeiro trabalho bem sucedido, começamos a buscar novos clientes. Assim inseri o teatro em um evento institucional de uma multinacional na qual trabalhei. Era o inicio de nossa empreitada. Passei a escrever os textos e de certa forma a dirigir os trabalhos, e assim funcionamos mais ou menos por um ano. As relações grupais se tornavam cada vez mais difíceis ao passo que as solicitações aumentavam. A experiência se consolidava, mas o espírito amador do grupo e os egos aflorados impediam a ampliação dos negócios. Talvez nem fosse amadorismo, apenas a velocidade e lógica de quem trabalha com arte. Acho que neste sentido sempre falei de um outro lugar, de uma outra realidade, outra experiência e formação, e consequentemente outra lógica. Vinha da área organizacional e a única experiência que tinha com teatro advinha de minha vivencia escolar e da prática que adquirida à duras penas em espetáculos de que tinha participado. Mas, para aquelas pessoas parecia realmente difícil conciliar arte e lucro, ou seja, transformar o teatro que fazíamos em algo rentável. Nuca aceitei a idéia de que pagamento de ator é aplauso. Para mim são duas coisas bem diferentes. Aplauso é fruto do reconhecimento e de aprovação da parte de quem paga. Cachê é reconhecimento financeiro pelas horas de trabalho, que vão desde o processo de construção até o fechar das cortinas. Mas nossas visões tornavam-se a cada dia mais diferentes, assim como também nossos objetivos. Eu analisava as coisas sobre outra perspectiva e conseguia entender que se existe quem pague, evidencia-se a existência de um cliente, que nesse caso se denomina público. Logo, a encenação transforma-se em produto pelo qual se paga para consumir. Se existe cliente e produto é porque existe uma relação econômica e financeira que estabelece as bases de contratos. Para mim isso sempre foi lógico, mas acho mesmo que aquelas pessoas só conseguiam perceber um espaço para o exercício teatral e experimentação das teorias aprendidas no curso de formação. Rompi com o grupo e anunciei que me tornaria profissional no sentido restrito da palavra.

Formei uma parceria e assim meu casamento deixava de ser apenas uma relação afetiva para se tornar também uma relação comercial. Passamos a formar um triangulo amoroso, com o envolvimento de uma pessoa chamada “jurídica” e que muitas vezes se mostrava implacável e extremamente racional. Assim a antiga cooperativa deu origem a nossa empresa, com visão mais ampla e abrangente. Minha experiência em gestão de pessoas também me mostrava que o ator, apesar de se constituir enquanto ferramenta valiosa, não deixa de ser um profissional como outro qualquer, e logicamente poderia também ser contratado para desenvolver trabalhos pautados em determinados objetivos institucionais. Afinal não fazíamos teatro, realizávamos treinamentos de capacitação e qualificação profissional. O teatro é ferramenta, é o meio pelo qual atingimos o objetivo, e não o fim. Em minha concepção sempre fomos uma consultoria especializada em teatro para empresas, e nunca uma companhia teatral. Esse era meu negócio e esse era meu foco. Quanto às antigas amizades? Foram desfeitas e os buchichos e acusações recíprocas, extremamente comuns a classe teatral, se tornaram inevitáveis. Talvez por imaturidade, talvez por lidarem sempre com a emoção a flor da pele, é inegável que os artistas são temperamentais e intempestivos em excesso. Mas, em geral são grandes gênios que considero mesmo abençoados com um dom mais que divino (no sentido dionisíaco).

Falar do teatro e da arte de interpretar exigiria um capitulo a parte, porém considero injusto não registrar momentos tão brilhantes e significativos de minha vida. Nesta época vivia duas paixões, e uma era o teatro. Com elas comecei a expandir meus horizontes. Viajei para fora do estado pela primeira vez com o primeiro espetáculo de minha simplória carreira. Tudo era novidade, as farras, a abertura para se falar de tudo e sobre tudo, e logicamente sobre todos também. Estava numa espécie de lua de mel, pois que também pela primeira vez ficaria fora de casa e longe do olhar da família. Já com o teatro, meu grande desafio era e acho que ainda é a inibição. Por mais que desconsiderem confesso-me extremamente tímido. Sou de suar frio e sentir a distonia me escorrer pelas mãos e me molhar os pés ao falar em público. Lembro de uma situação bastante constrangedora devido a tal dificuldade. Estava em cena aberta e era inicio do espetáculo. Tinha uma frase que precisava ser dita e que se resumia mais ou menos a algo como: “no filho já existe o velho”. Sempre tive problemas com as letras “V” e “F”. Acho que devido a algum tipo de dislalia que nunca procurei descobri ou cuidar, mas que é causada por lesões em órgãos externos responsáveis pela fala. Acho, porém, que deva ser resquício da gagueira que tinha quando criança e que segundo lembro fiquei curado com uma colherada de pau que minha mãe me deu na cabeça em certa ocasião. Mas isso é passado agora e vamos voltar a minha segunda estréia. O teatro estava lotado e os demais atores proferiam suas falas com entonações empostadas. Eu tremia mais que vara verde como diria meus pais, e quando chegou minha hora a língua enrolou. No meio da frase, no exato momento de dar sequência ao texto, as duas letrinhas embolavam na minha boca e não me deixavam respirar. Voltei a gaguejar e tentava pronunciar palavras que naquele momento me pareciam estranhas e desconexas. Eu trocava sucessivamente “vilho” e “felho” ao invés de “filho” e “velho”. E por mais que entenda que a situação foi rápida para mim se deu numa eternidade de tempo que não conseguiria descrever. Resolvi a situação engolindo o resto do texto, ao passo que o ator seguinte cobriu minha voz. A distonia me tomava o corpo e eu precisei fazer força para me manter em pé durante todo o resto da cena. E o pior era imaginar que o espetáculo terminava do mesmo jeito que começava, uma forma encontrada pelo diretor para demonstrar os ciclos da vida, nossas idas e vindas a momentos e situações semelhantes. E durante toda a encenação tentei me controlar e preparar para o grande desfecho. Não podia errar e repetir a situação absurda, nem tão pouco poderia omitir tal trecho do texto. Sei que respirei fundo e consegui proferir as tristes letrinhas que me infernizaram a aquela noite. A experiência me rendeu uma terrível crise de labirintite, daquelas que fazem as paredes do quarto rodar em espiral.

Penso que o teatro também me ajudou a superar mais esse problema, pois raramente voltou a me acometer e quando sinto que estou muito nervoso, converso em tom de brincadeira com o público e assim consigo descontrair. Acredito que superamos problemas e dificuldades não quando os negamos ou tentamos esconde-los, mais quando os reconhecemos de fato e decidimos conviver da melhor maneira com os mesmos. Outras situações relativas aos vexames teatrais sucessivos se referiram à rouquidão que sempre me acometia após os espetáculos. Minha voz sempre foi meio rouca e como nunca soube respirar pelo “diafragma” como me aconselhavam os mais experientes atores, terminava os espetáculos quase sempre meio afônico. Acho que com todos esses problemas não conseguiria ir realmente muito longe. Sempre fui péssimo com as músicas e acho que até hoje assassino as letras em arranjos e entonações equivocadas que lembram qualquer outra melodia, menos a que estou realmente pretendendo cantar. Tanto que em outro espetáculo, após várias aulas de canto em repetidos e exaustivos ensaios, a diretora musical me aconselhou a dublar em silêncio. Ou seja, teria que fingir que estava cantando com todos, ao passo que deveria apenas bater a boca. Acho que aquilo foi demais para mim, e até afirmar que ela teria sido a grande responsável por me afastar dos palcos. Acho que as pessoas de bom senso devem lhe ser agradecidas até hoje. Mas, brincadeiras a parte, confesso que ali desistir de tentar me tornar um ator respeitável. Era preciso ser consciente e acima de tudo respeitar meus limites (e o do público também, lógico).

Outra coisa que sempre me despertou interesse, e dessa vez na área da psicologia, é o fato do ator conseguir entrar e sair dos personagens com uma facilidade magistral. Considero mesmo um processo meio esquizofrênico que te faz acreditar que durante um curto período de tempo se pode viver uma outra vida, totalmente diferente da sua (será?) e depois sair da experiência sem grandes consequências. É como se lhe fosse permitido mentir para uma multidão, fazendo-a acreditar que não é você quem está ali naquele momento. E assim, considero que levar o público a se emocionar, a chorar e rir em situações opostas ou semelhantes, ter o domínio de platéia e desfrutar de toda a riqueza possível ao exercício da interpretação é coisa para poucos, e só os genuinamente talentosos o conseguem. Mas não posso negar que toda essa experiência tenha me trazido grandes benefícios na vida pessoal e profissional. Se permitir a loucura, mesmo que por pouco tempo e em território do autorizo, é mesmo uma das formas de se manter a sanidade em dia (que me desculpem os psicanalistas discordantes).

Posso dizer que de certa forma desisti dos palcos, mas não do teatro. Afinal nos o tinhamos transformado em ferramenta de trabalho e fonte de renda com a nova empresa. Em relação às velhas amizades, posso dizer que nada melhor que o tempo para arrumar as coisas e que até alguns membros do antigo grupo passaram a integrar nosso elenco fixo. Sempre acreditei que a definição clara de papeis e responsabilidades contribuem de forma efetiva para o estabelecimento de relações adequadas e saudáveis. Assim conseguimos conquistar o mercado e ampliar nossa atuação, estendendo nossos serviços para outros estados. Lembro por exemplo de um trabalho que realizamos para uma grande empresa brasileira durante a implantação de seu programa de qualidade total. Em uma semana viajamos de Fortaleza a Recife com apresentações itinerantes em todos os postos de perfuração de petróleo e unidades de controle de processos. Foi uma extraordinária possibilidade de conhecer o nordeste em sua extensão e diversidade territorial, cultural e social. Era uma verdadeira aula de geografia, daquelas que não se tem nos cursos de formação. E era acima de tudo a confirmação da máxima que diz que “o artista tem que ir onde o povo está” (é do Milton Nascimento). E sempre me foi incrível poder ir aonde o teatro tradicional e nem mesmo a televisão chegam. Levar conhecimento, cultura e lazer pra uma gente que nunca teve o direito e acesso a informação e diversão.

E neste sentido, posso dizer que tais experiências me proporcionaram as possibilidades que sempre busquei para falar a milhões de pessoas. Em quinze anos de mercado, acredito que as quilometragens que percorremos dariam para dar uma volta ao mundo. E é gratificante perceber que a través das centenas de personagens que criei consegui levar minhas mensagens, opiniões e minhas idéias para várias populações diferentes, em diferentes regiões e diferentes territórios. E o mais surpreendente e gratificante disso tudo é poder ver alguém transmitir o teu pensamento. É tua fala, tuas idéias e ideais na boca do outro. E quando o ator consegue captar a essência de tua criação, dando vida e movimentos, na exata medida e sintonia com sua concepção original, a experiência torna-se orgástica. Em cena, o criador junta-se a sua criação, e assim, tornam-se indivisíveis e inseparáveis. Penso em quantos dramas, quantas situações cômicas e hilárias puderam ser criadas. Em quantas vezes pude transformar o trágico em cômico, inventando situações melodramáticas, com o único objetivo de fazer rir? E ri das tragédias pessoais é um grande antídoto contra a dor e os males que delas possam vir. E isso não se aprende nas escolas, apenas a vida ensina.

Penso também em quantas reflexões pude e posso levar as pessoas e em quantos questionamentos consigo e consegui suscitar através desses seres fantásticos que são as personagens, que também sou eu, pois que cada cria herda um pouco de seu criador. Quantos temas foram abordados, entre programas de qualidade total, acidentes no trabalho, garantias de direitos, violência contra as mulheres, doenças sexualmente transmissíveis, violência no trânsito, exploração sexual de crianças e adolescentes e situações do cotidiano específicas a comunidades dispares, como por exemplo, as quilombolas? E as informações e assuntos abordados junto aos empregados, em canteiros de obras, refeitórios, setores de trabalho, gerências e diretorias? E quantas instituições e organizações dos mais diversificados segmentos e mercados? Do ramo petroquímico ao de marketing, do de alimentação ao de coleta seletiva ou do metalúrgico ao hospitalar, nos inteiramos e damos vida a produtos, que por vezes permanecem por logos períodos nas lembranças dos espectadores. E cada espaço, cada ramo de atividade, cada empresa e cada missão e filosofia organizacional me ensinava e ensina, contribuindo para ampliação de conhecimentos, informações e pontos de vista. Acho que em todos esses anos já escrevi não apenas um, mas vários livros, pois que estes são feitos de histórias, e isso é o que aprendi e sei fazer: contar e recontar histórias, e através delas criar vidas. Penso que assim, de certa forma, terei começado a marcar minha passagem na terra (será mesmo?).

Mas nem tudo foram flores naqueles anos. No final daquela década nova mudança de residência. Dessa vez para uma das principais avenidas que cortam o centro da cidade. A terceira pessoa do nosso triangulo amoroso, a jurídica, exigia cada vez mais espaço e autonomia. Impunha sua existência e muitas das vezes nossas conversas tornaram-se debates comerciais. Em pouco tempo deixaríamos de ser amantes para nos reconhecer como sócios. Era pagamento, contratação de novos atores, fechamento de propostas, consolidação de imagens. Nosso guarda-roupa cedia espaço a figurinos e adereços, e no banheiro um armário ficou restrito as suas necessidades. Como trabalhávamos em casa, não havia horário certo para reuniões, não havia horários definidos para ensaios e estudos, e logicamente, não havia privacidade para uma vida intima. Nossa relação se alargava a cada dia e a cada novo projeto que fechávamos. Nossa casa tornou-se um ponto de encontro e era um entra e sai de elencos, que de certa forma me sentia um estranho, uma espécie de invasor de meu próprio ninho. Mas acho que não percebíamos, ou talvez não quiséssemos perceber. Acho também que era o inicio do desgaste da relação que antes da metade do novo século completaria vinte anos. Era mais da metade de minha vida e chegava à constatação de ter passado mais tempo casado do que solteiro. Aliás, acho que nem cheguei, a saber, o que era verdadeiramente, e de fato, ser solteiro. Entraria no ano de 2000 com trinta e quatro anos de idade e dezesseis de casamento.

Tínhamos construído uma vida e tantos foram os momentos de felicidade, cumplicidade, harmonia e descobertas. Momentos que se tornam e serão inesquecíveis, mesmo com o passar dos anos e mudanças da vida. Mas o tempo torna-se implacável e parecia me relembrar que tudo tem um começo, um meio e consequentemente um fim. O apartamento se tornara cada vez menor para nós dois, os momentos a sós pareciam evitados e o trabalho se tornava um grande aliado por possibilitar desencontros, cansaços e todos os tipos de desculpas necessárias para não se machucar alguém de quem verdadeiramente gostamos. Os dias pareciam se arrastar, evidenciando um desgaste percebido por todos. As discussões já não eram harmoniosas, os posicionamentos pessoais se diferenciavam a cada dia e a troca de afeto cedia espaço às criticas e censuras que machucavam e pareciam envenenar o pouco de respeito que tentávamos de uma forma ou de outra preservar. Penso nesse momento em como se pode deixar uma relação descambar para o incômodo e desassossego. Penso também em que momento a quebra se dá e normalmente não se percebe, e logicamente, penso se não seria tudo mais simples aos humanos, se aos primeiros sinais fossemos maduros o suficiente para sentar e conversar um fim amigável e racional. Mas como falar de racionalidade se o amor é um sentimento que muitas vezes se mostra visceral e possessivo? E como entender que após duas décadas de compartilhamentos não conseguiríamos não nos tolerar mais e que na verdade já não tínhamos tanto em comum? E neste ponto, talvez a dúvida seja um dos sentimentos mais cruéis que existem e podem ser experimentados pelo homem. Digo isso, porque a certa altura a situação vai se tornando tão insuportável e tão esmagadora que chegamos a questionar se realmente algum dia tivemos pontos em comum. E é claro que tivemos, e estes foram muitos.

Digo apenas que qualquer separação é dolorosa e como tudo na vida precisa de tempo para maturar. Acho mesmo que o novo século deu uma guinada de 360º em nossas vidas, e não falo apenas de mim, mas de muitos amigos que passaram pelo mesmo processo. Lembro-me que éramos vários casais, com longas jornadas de vida em comum. E que a cada período não maior que seis meses iam se desfazendo. Assim, vivemos a primeira metade dessa nova década sempre em alerta. Não sei ao certo, mas acho que minha irmã iniciou as cisões. Depois casais amigos, um a um, cada um há seu tempo e a seu modo. Em comum apenas as dores e os estragos emocionais decorrentes dos desenlaces amorosos, que posso afirmar são muitos e intensos.

Tinha voltado às organizações e nesta, precisava viajar a cada trimestre, o que me possibilitava respirar novos ares e de certa forma reorganizar sentimentos e emoções. Lembro-me de uma das crises por qual passamos, talvez a maior de todas, em toda a relação, mesmo considerando que os mal entendidos se tornavam cada vez comuns e frequêntes. Em uma dessas viagens resolvi permanecer distante e curtir pela primeira vez meu próprio aniversário sozinho. Lembro ainda o quanto dancei ao som de músicas altas e flashes de luzes coloridas de uma determinada boate. E logicamente relembro o sentimento de liberdade que me invadia e do medo que a noite acabasse. Que de uma hora para outra despertasse e tivesse que regressar a vida real. E logicamente assim aconteceu. Talvez estivesse na tão falada crise dos trinta, mas sabia que precisava tomar uma decisão, e que, como em muitas vezes arcaria com as responsabilidades. Mas sabia também que seria a decisão mais acertada para nos dois, ou pelo menos, assim entendia. Sabia o que era preciso ser feito, só não sabia como. No caminho de volta, o avião ficou pequeno para tanta angustia e medo que sentia naquele momento. Medo que se justificava pelo receio de machucar alguém que sabemos nos amar. Angustia por não saber como encarar a situação e principalmente os olhos do outro. De decepcionar, de fazer sofre e de imaginar como seriam nossas vidas a partir daquele momento. Mas estava decidido e repassava na cabeça todo o discurso. Eram os preparativos para o início do fim.

Quando cheguei em minha casa a porta estava fechada e por um breve momento agradeci por não me sentir totalmente preparado. Ao abrir a porta, pra minha surpresa, várias pessoas amigas com chapeuzinhos infantis na cabeça, daqueles dos sete anões, me esperavam em uma festa surpresa. Foi um banho de água fria e o desespero me tomou o corpo. Não sabia como reagir, o que dizer e principalmente o que pensar. Lembro até hoje o quanto detestei o “dunga” que ria feliz e ilustrava o chapéu que me puseram. Foi uma das noites mais longa e pesada de minha vida. O que era para ser felicidade tinha se transformado em decepção. Havia sido traído por uma pessoa que como eu, não sabia naquele momento como enfrentar a situação de frente. Perdoei tanta fragilidade, que de certa forma era minha também e assim não tive coragem para seguir em frente. Entendi que quando ameaçados adotamos ou definimos estratégias que nos possibilitem êxitos aos nossos intentos. Era preciso respeitar, pois tinha aprendido que cada pessoa tem seu tempo e sua hora. Não se pode apressar o rio dos outros.

E assim, se foram mais cinco anos de tentativas. Buscávamos resgatar o que o tempo não trás de volta. Era como se quisesse me mostra mais uma vez sua relatividade, pois que cinco anos representa meia década, porém parecia insuficiente para administrarmos um desfecho tranqüilo e saudável, como acho que tem que ser todos os rompimentos afetivos. Tempo suficiente também para transformar um grande amor em amizade sincera. Era como se o que sentia tivesse assumido nova forma, se reconfigurado para se ajustar as novas necessidades e possibilidades. Éramos talvez mais que irmãos, mas jamais voltaríamos a ser enamorados e amantes. Em 2005 realizamos a maior e ultima festa de casamento. E foi como se inconscientemente comemorássemos o fim dos vinte e um anos de comunhão, pois que ironicamente tínhamos chegado à maior idade (como se dizia antigamente aos jovens com a mesma idade). Seria o fechamento de um ciclo de nossas vidas. De uma relação, que como diria Vinicius de Moraes, foi eterna enquanto pode durar. Uma relação que tiveram altos e baixos, que enfrentou desafios e preconceitos, dificuldades, que nos proporcionou experiências e descobertas e acima de tudo tantas alegrias. Duas décadas que marcaram nossas vidas e que fizeram de nossas histórias uma espécie de sonho encantado, onde tudo podíamos e onde tudo seria para sempre e eterno. Uma convivência que nos ensinou a sermos fortes e corajosos, a lutar e construir nossos futuros. E que acima de tudo nos ensinou as concessões necessárias, como também as intransigências comuns a vida a dois. Uma relação que por fim, apenas não conseguiu resistir ao tempo e a sequência natural da vida, que transforma a tudo e a todos sem distinção. E que a cima de tudo nos mostra que as mudanças são necessárias, pois que nada é eterno (ou como diria Elizabeth Taylor, só os diamantes o são).

Percebo nisso tudo que o mais difícil do final de uma relação, talvez não seja a constatação sobre as mudanças de sentimentos, mas a dificuldade de se desvencilhar e traçar caminhos contrários. É a velha história da zona de conforto na qual tentamos nos manter. E que por mais desconfortável que esteja, ainda assim nos gera uma espécie de conforto e comodidade. Naquele mesmo ano tivemos talvez a mais difícil das conversas. Era o fim do ano e também da relação. Meu rio novamente me levaria para outros mares, desconhecidos e assustadores. Se desvencilhar é sempre muito difícil, principalmente quando se mantém o mesmo espaço de convivência e habitação. Mas é preciso se deixar levar pela correnteza e ver onde iremos ou conseguiremos chegar. É preciso se perder nos mares até chegar a um novo porto seguro. E foi neste mar revolto que me pequei sozinho e perdido, sem saber de certa forma como cuidar de mim.

Eram outros tempos, e novos contratos de convivência precisaram ser estabelecidos. Relembro que uma das grandes dificuldades era pagar minhas próprias despesas. Não sabia nem ao certo a data dos cartões de crédito, não sabia comprar minhas próprias roupas, não sabia do que gostava, nem sair sozinho ou o que fazer com meu tempo. Não me restaram muitos amigos e outros tantos queriam apenas maiores detalhes para especulações em grandes rodas de conversas. Exercitavam o lugar de juízes e se outorgaram detentores das verdades absolutas, definindo réus e inocentes. Criavam suposições e teciam comentários maldosos e infundados. Mas acima de tudo esqueciam apenas, ou mesmo desconheciam por falta de experiência, que em uma vida a dois os acordos, contratos de convivência e cumplicidades se estabelecem a dois. E que os demais, serão sempre externos e apenas figurantes num enredo que não lhes cabe. Lembro que chegaram a argumentar que a não proximidade ou afastamento se dera apenas por me considerarem forte e seguro o suficiente. Mas penso que na verdade forte nunca foram as amizades que um dia julguei verdadeiras. E acho que ali entendi o quanto medíocre a humanidade pode se mostrar. Pois que para muitos a preocupação se restringiria exatamente ao futuro da terceira pessoa da relação, que por ser jurídica também estabelece seu destino.

O que aprendi é que as relações de amizade nem sempre são suficientemente fortes a ponto de sobreviverem a seus próprios interesses. E que também mesmo sendo considerado, ou me considerando forte, em algum momento da vida todos se sentiram frágil ao ponto de não saber sobreviver sem o amparo e a companhia de que sempre se desfrutou. Naquele momento, que era só meu, permaneci por um bom tempo sem saber ao certo quem era. Como se não soubesse quais os mesmos sapatos, as minhas camisas e objetos pessoais. Na relação que tive a oportunidade de vivenciar não existia o meu e o teu, mas o nosso. E esse é talvez o maior dos riscos das relações simbióticas. Pois que ao fim nos sentimos amputados. Sentindo a falta de uma parte que não sabe qual, pois que esta não é corporal, como também não é a dor que se sente. Mas que se traduz na falta da amizade, do companheirismo, daquele que pra mim tinha se tornara irmão, no sentido real da palavra. E assim, quantas foram às vezes que desejei chorar em seu ombro, buscar um abraço confortador, sentar, sorrir, contar de meus medos, como sempre fizemos? Mas nessas situações de fragilidade lembrava que aqueles eram momentos difíceis e delicados para ambos e não poderia me permitir tal egoísmo.

Aos poucos acho que resgatamos nossas próprias personalidades. E com o tempo reconstruímos nossas vidas e nossos próprios caminhos. Que mesmo distintos, hoje me da a certeza de que nunca irão deixar de se cruzar. Afinal de contas, acredito que o amor que se transforma é o mesmo que se perpetua para sempre. Não mais no campo dos amantes, pois que não é mais carnal, mas em uma dimensão muito maior e mais forte, a da irmandade espiritual.

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