quinta-feira, 21 de abril de 2011

EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE MENINOS - A INVISIBILIDADE DO MASCULINO








O LUGAR DOS MENINOS NOS ESTUDOS BRASILEIROS SOBRE EXPLORAÇÃO SEXUAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES


Este texto é parte integrante do artigo: a Invisibilidade do Masculino nos estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes, não podendo ser reproduzido, integralmente ou parcialmente, sem prévia autorização.


Epitacio Nunes de Souza Neto - Mestre em Psicologia pela UFPE.
Normando José Queiroz Viana - Mestre em Psicologia pela UFPE.

Em estudo realizado em Recife, no qual buscamos analisar o processo de construção e estruturação das performances de gênero entre os homens que se prostituem nas ruas, pudemos identificar a emergência de outro fenômeno social aparentemente invisibilizado pela sociedade e academia científica: a inserção de meninos no mercado do sexo. Tal fenômeno parece nos remeter a um novo segmento da prostituição masculina, configurando-se como modalidade da exploração sexual de crianças e adolescentes.

Ressaltamos que, como “prostituição masculina” deve-se entender a prática do sexo comercial desenvolvida exclusivamente por homens adultos. E que, a manutenção do exercício de tal atividade, parte de uma “decisão” autônoma e consciente por parte de sujeitos capazes de decidir seus destinos. A partir dessas premissas entende-se ainda, que as crianças e adolescentes por serem considerados sujeitos em desenvolvimento não podem ser denominados prostitutos(as), mas sim prostituidos(as). Contudo, destaca-se que neste artigo utilizaremos as denominações “prostituição de meninos” e “meninos que se prostituem” como categorias referenciais para os adolescentes que se inserem, ou encontram-se inseridos na prostituição por diversos motivos, não exclusivamente relacionados à pobreza, dificuldades socioeconômicas e conflitos familiares, configurando assim uma decisão “voluntária” por parte desses. Salientamos ainda, a utilização da terminologia “meninos” em referência direta as crianças e adolescentes do sexo masculino, envolvidos tanto na prostituição, quanto na exploração sexual, fato que parece invisibilizado nos estudos sobre exploração sexual de crianças e adolescentes.

Partindo dessas explicações preliminares, fundamentais a melhor compreensão de nosso discurso, bem como, a fim de evitar mal entendidos relativos ao uso inadequado de terminologias e classificações cientificas, salientamos a urgência de maior investimento no que se refere ao desenvolvimento de estudos que possibilitem a escuta dos próprios meninos. Torna-se ainda pertinente, a análise das dimensões e sentidos atribuídos por esses, aos desejos e prazeres, não só de caráter sexual, envolvidos e/ou possíveis nas, e por tais práticas, ainda pouco exploradas em estudos com crianças e adolescentes em situação de exploração sexual. Acreditamos que a análise discursiva desses sujeitos em muito poderá contribuir para a construção de respostas à problemática, possibilitando a implementação de políticas públicas de proteção social e de garantia de direitos mais eficientes e eficazes.

Devido à incipiência desses estudos, muitas das observações e concepções analíticas aqui apresentadas partem das investigações e impressões que vemos desenvolvendo há certo tempo sobre o universo da prostituição e o envolvimento de meninos no mercado do sexo. Como observado em Recife, os sentidos e dimensões atribuídos aos desejos e prazeres, na perspectiva dos meninos que se prostituem, têm se revelado como elementos constitutivos e importantes para o processo de permanência voluntária na prostituição. As incursões noturnas nas ruas do centro da cidade, ao longo dos anos que compreenderam nossas pesquisas de mestrado, nos possibilitaram melhor conhecer e analisar as trajetórias de vida sexual dos boys de programa , constatando certas tendências no que se refere ao processo de inserção e iniciação desses no universo da prostituição masculina.

Em sua maioria, oriundos dos subúrbios e municípios circunvizinhos, se encontram na faixa etária de 18 a 26 anos. Residem em comunidades populares e sofrem com a falta de infra-estrutura adequada comum às grandes aglomerações demográficas e, consequentemente, com a falta de acesso aos bens e serviços, tais como saúde e educação de qualidade. Muitos não concluíram o ensino fundamental, e talvez por isso, não consigam vislumbrar grandes oportunidades profissionais. Imersos num processo de exclusão estigmatizante, muitas vezes a prostituição parece se apresentar senão como única, pelo menos, como imediata e concreta alternativa às possibilidades de ganho, e também de acesso (Souza Neto, 2009).

Entrevistas e conversas informais evidenciaram o fato de se iniciarem, ou serem iniciados, nas práticas sexuais comerciais ainda na infância ou pré-adolescência, por volta dos nove aos dezesseis anos de idade. Marcados pelo mesmo contexto socioeconômico que faz com que as meninas sejam ingressas, ou ingressem no mercado do sexo, revelam semelhanças e especificidades quanto ao “protocolo de iniciação”. Em muitas situações, as curiosidades sobre o sexo, bem como, as possibilidades das descobertas dos desejos, prazeres sexuais e a vivência concreta de suas sexualidades, quando vinculadas às oportunidades de ganhos e/ou acessos, apareceram como fatores determinantes e motivacionais para o engajamento na prostituição.

A Invisibilidade dos Meninos nos Estudos sobre Exploração Sexual

Realizando uma revisão na literatura brasileira, verifica-se a unanimidade no entendimento conceitual da prostituição como modalidade da exploração sexual de crianças e adolescentes, assim como, relativo à indignação social diante da crueldade e requintes de violência que caracterizam suas práticas. A partir do I Congresso Mundial de Combate a Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, realizado em Estocolmo, Suécia, em 1996, tal modalidade passou a se constituir como violação dos direitos infanto-juvenis, por tratar meninos e meninas explorados como objetos sexuais ou mercadorias. Todavia, constatamos que apesar de diversos estudos reconhecerem o envolvimento de meninos, estes muitas vezes aparecem como sujeitos coadjuvantes nos cenários da prostituição infanto-juvenil, tráfico de seres humanos e turismo sexual. Sejam através de pesquisas e artigos científicos, estudos do governo ou reportagens de jornais, o discurso recorrente mostra-se centrado, quase que especificamente na exploração sexual de meninas que se dará, quase sempre, através de uma rede composta por pessoas adultas que estabelecem uma relação comercial com seus corpos.

Assim, para melhor acompanhar as mudanças nos discursos, ou ainda, a falta destas, estabelecemos um panorama cronológico referente ao período de 1998 a 2008, por considerá-lo como de maior efervescência para as pesquisas nesta área. Assim, tomaremos como base o artigo de Marcel Hazeu e Simone Fonseca, que em 1998, ao abordarem a problemática no Estado do Pará, destacam que “com a decadência dos garimpos da Região Norte o fluxo de mulheres e meninas diminuiu, mas não acabou”. Para os autores, a cidade de Santarém se apresenta como principal município de origem de meninas e mulheres que estão no garimpo, onde, entre as quais, se evidencia a existência de adolescentes, “que por sua fase de vida e fatores econômicos e sociais estão entre as mais procuradas, e entre as que mais procuram a prostituição”.

Ao analisarem o processo de desenvolvimento do Estado, destacam os impactos causados pelos garimpos como consequência da desigualdade social instalada na Região, bem como a dominação masculina, que se pauta numa cultura social patriarcal. A prostituição surge como consequência direta destes dois fatores: desigualdade social e poder masculino, abrindo espaço para a consolidação do mercado do sexo. Neste ponto, propõem uma maior reflexão sobre a inserção de adolescentes neste mercado. Contudo, como poderemos verificar, o termo adolescente será sempre utilizado exclusivamente para denominar as meninas.

[...] Será que o corpo é o único “instrumento” da mulher pobre que é visto pelo mercado moderno? O adulto em vez de ser referencial, dar apoio, aproveita-se deste momento de fragilidade e de busca do adolescente. Os riscos deste mercado de sexo são muitos como a gravidez precoce, abortos, doenças sexualmente transmissíveis, assim como a dupla exclusão social, quando não atendem mais as exigências do mercado do sexo (Hazeu e Fonseca, 1998:36).

Mesmo considerando o maior fluxo das adolescentes envolvidas, nos é difícil imaginar a não existência ou constatação de meninos explorados sexualmente nas regiões de garimpos. Porém, em nenhum momento da análise essa participação é destacada e, por sua vez, o masculino aparece apenas nas figuras dos clientes e agenciadores de meninas. No entanto, quando partem para a análise dos dados relativos à cidade de Belém, capital do Estado, esses revelam a existência da prostituição juvenil masculina, fato que parece constantemente divulgado através dos jornais locais.

[...] Os jornais locais chamam regularmente a atenção para a problemática. Relatam casos de prostituição juvenil nos shoppings ou casas de luxo, como também da existência da prostituição juvenil masculina (Hazeu e Fonseca, 1998:38).

Apesar do registro, verifica-se que a informação aparece de forma tão insignificante entre os tantos destaques para os casos envolvendo as meninas, que poderia passar despercebida a um leitor menos atento. Neste sentido, tal referência parece figurar como nota de roda pé, ou seja, um complemento informativo que não alteraria ou modificaria em nada a lógica do texto.

Já no artigo sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de indicadores, publicado também em 1998, Vicente de Paula Faleiros destaca que no Brasil a temática é sempre evidenciada pelos jornais e revistas. Neste sentido, chama a atenção para o risco do sensacionalismo adotado por alguns programas televisivos, ao mesmo tempo em que destaca a importância de se reconhecer a seriedade de alguns profissionais da mídia ao tratarem o tema em questão.

[...] Há, no entanto, trabalhos sérios, como a reportagem de “O Estado de São Paulo” de 23 e 24 de novembro de 1997 [...] Estudos do IML de São Paulo, presentes na reportagem, feitos por Carlos Alberto Diêgoli mostram que das “2.043 queixas de abuso sexual feitas em 1995, 69,77% envolvem garotas menores de 18 anos. [...] O mesmo pesquisador coordena o setor de atendimento do PAVAS (Programa de Atendimento às Vítimas de Abuso Sexual da Faculdade de Saúde Pública da USP). Das 150 meninas atendidas entre agosto de 1996 e setembro de 1997, 57, 4% tinham de 11 a 15 anos. Dos casos, 55,9% eram estupros, 14,9% atentado violento ao pudor, 10,9% tentativa de conjunção, 5,8% sedução, e 6,6% suspeitas. Dessas 150, 5 estavam grávidas e 1,6% tinha o HIV positivo. Segundo o pesquisador, 7,94% dos atendimentos são de meninos (Faleiros, 1998:7).

Note-se que também neste caso, o percentual de meninos vitimizados surge apenas como nota complementar na reportagem. Assim, além de não especificar o quantitativo em números estratificados, a exemplo das meninas, a nota de registro parece surgir como um apêndice entre os demais dados, talvez evidenciando certa irrelevância ao fato, por parte do pesquisador ou ainda, pelo jornalista.

Em 1999, o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes – CECRIA, ao lançar o Relatório Final – Brasil, sobre a Exploração Sexual Comercial de Meninos, Meninas e Adolescentes na América Latina e Caribe, destacou o fato de que os Anais do Seminário sobre Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, realizado em 1996, já evidenciavam que no Brasil a idade das crianças e adolescentes submetidas à exploração sexual oscilava entre 10 a 19 anos, e que estas, tanto poderiam ser do sexo feminino quanto masculino, de todas as classes sociais e etnias. Porém, ao analisar os dados, observaram a grande incidência de casos de exploração sexual envolvendo adolescentes mulheres, provenientes das classes populares de baixa renda e que vivem na periferia dos centros urbanos, nos garimpos e outros lugares similares (CECRIA, 1999).

Em 2005, Luciana Rachel Coutinho ao analisar os territórios da prostituição feminina em Boa Viagem, bairro nobre da zona sul de Recife, destaca que entre as mulheres que “batalham” nas ruas, é possível observar a presença de meninas. Segundo ela:

[...] Em Boa Viagem a atividade da prostituição, se inicia informalmente e de forma desarticulada, ou seja, ocorre através de meninas que frequentam as praias em busca de estrangeiros, transitam em frente aos hotéis do bairro, além de circularem em bares e danceterias da área em busca de clientes (Coutinho, 2005:55).

Coutinho revela ainda, que os territórios de prostituição apresentam-se subdivididos por categorias entre as prostitutas, travestis e garotos de programa. Especificamente entre as adolescentes, ela acrescenta:

[...] Com relação à faixa etária das mulheres que trabalham em Boa Viagem foi possível, através das observações em campo, constatar que a maioria tem idade máxima de 25 anos, apesar da existência de meninas de 14 anos e até de mulheres com mais de 40 (Coutinho, 2005:114).

Mesmo considerando o recorte de sua pesquisa, não se verifica a evidencia de meninos envolvidos na dinâmica da prostituição masculina que, como sabemos, batalham junto aos boys de programa na Av. Beira Mar (Souza Neto, 2009) e, em algumas situações, junto às prostitutas nos demais espaços identificados.

Ainda sobre Recife, a dinâmica da prostituição no centro da cidade é destaca pelo jornalista Eduardo Machado, que em reportagem publicada em 27 de janeiro de 2005, no Correio Sindical Mercosul revela que o Estado de Pernambuco lidera os números de casos de prostituição envolvendo adolescentes.

[...] Elas começam a chegar por volta das 14h, na Avenida Artur Lima Cavalcante, em Santo Amaro. São pelo menos oito meninas, duas delas com apenas 17 anos. Cobram R$ 20,00 por um programa, que na maioria das vezes, é consumado ali mesmo, na beira do Rio Beberibe. Esse exemplo de prostituição infantil, em plena luz do dia, no caminho entre a Prefeitura do Recife e a Vice-Governadoria, demonstra o descaso com a situação que alçou Pernambuco ao posto de Estado do Nordeste com maior número de municípios onde crianças e adolescentes são exploradas sexualmente, segundo pesquisa divulgada ontem pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH (Eduardo Machado, 2005).

Mais uma vez, percebe-se a invisibilidade dada também pela imprensa, ao envolvimento de meninos na prostituição, através da denominação crianças e adolescentes “exploradas sexualmente”.

Maria Lucia Pinto Leal (2007) ao analisar a participação e importância das ONGs sobre as ações de enfrentamento à exploração sexual revela que em Manaus a pobreza transforma milhares de crianças e adolescentes em grupos vulneráveis a exploração sexual e a outros tipos de violência.

[...] Em Manaus, muitas das meninas envolvidas nesta situação de exploração sexual, são motivadas, devido às condições de extrema miséria em que vivem. Esse tipo de prostituição é muito parecida àquela que se desenvolve nas estradas brasileiras. Os consumidores geralmente são os caminhoneiros e outros rodoviários (Leal, 2007).

No mesmo texto é destacada a atuação de algumas organizações não governamentais voltadas ao atendimento de meninas vitimizadas. No entanto, nenhuma referencia é feito em relação ao atendimento de meninos. Assim, parece que também a sociedade civil organizada não se encontra preparada, estruturada, e/ou talvez sensibilizada a ponto de oferecer e propiciar o suporte, atendimento e a garantia de direitos deste segmento da população juvenil.

No mesmo sentido, destacamos ainda, que em reportagem do jornal Imprensa Tribuna, datada de 27 de novembro de 2008, foi registrado o crescimento da violência sexual contra meninos.

[...] O 3o Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes começou ontem, no Rio de Janeiro, com duas constatações: é crescente o número de meninos violentados no Brasil e é cada vez menor a idade de crianças vítimas desses abusos. A informação foi dada pela psicóloga e gerente de projetos sociais da ONG Terra dos Homens, Valéria Brahim (Imprensa Tribuna, 2008).

Observa-se que Valéria em entrevista, apesar de evidenciar o crescente número de meninos vitimizados “entrando nessa relação comercial com o sexo”, foca seu discurso única e exclusivamente sobre as meninas. Assim, ela destaca que:

[...] A idade tem diminuído, crianças de 9 a 12 anos já são vítimas da prática ilícita. A partir dos 12, 15 anos, a incidência é maior. O número de meninos violentados também é crescente. Existe um contingente cada vez maior de meninos entrando nessa relação comercial com o sexo. [...] Temos a idéia que a menina explorada sexualmente deseja esse ato. Uma idéia errada, porque ela não tem condições, pela sua idade, de saber o que é certo ou errado (Imprensa Tribuna, 2008).

Por fim, Nils Kastberg, Diretor Regional do UNICEF para a América Latina e o Caribe, analisa que apesar de ter se passado mais de uma década de esforços mundiais, o número de casos de exploração sexual continua crescendo e, que, cada nova tecnologia criada é seguida por novas formas de explorar crianças.

[...] Vários países contam com um plano de ação para erradicar a exploração sexual de meninas e meninos e quase todos prevêem penalidades em relação à pornografia infantil [...] A cada hora, 228 meninos – e principalmente meninas – são explorados sexualmente em países da América Latina e do Caribe. Só no Brasil foram registrados, em média, cinco casos por dia entre 2003 e 2008 (UNICEF, 2008).

Os vários estudos e documentos aqui analisados apontam crianças e adolescentes do sexo feminino como principais vítimas, muitas vezes, prostituídas em diferentes regiões do país através das redes de exploração sexual e subjugadas aos interesses e prazeres dos adultos. Mesmo considerando os fatores gênero, etnia/raça e classe social, que se configuram como marcadores de diferenças fundamentais para a análise do fenômeno da prostituição e, consequentemente, maior incidência de mulheres, negras e pobres em situação de vulnerabilidade à exploração sexual, pouco se fala da violação e/ou vitimização de meninos, e menos ainda sobre as características e modalidades dos abusos sofridos por estes.

Mesmo entendendo que as categorias analíticas “crianças” e “adolescentes” são abrangentes, tornando-se sinônimos para meninas e meninos, é preciso considerar que ambas, muitas vezes aparecem prioritariamente adotadas como designação do feminino. Tanto que, a partir do final do século passado, parece existir uma maior tendência a adoção de especificações e especificidades através do uso das categorias “meninos”, “meninas” e “adolescentes” nos estudos sobre a exploração sexual

Salientamos que, certamente a revisão aqui apresentada não esgota, e muito menos abrange o quantitativo de pesquisas e estudos relacionados ao tema. Esclarecemos também que não é nosso objetivo reivindicar ou reclamar um espaço de destaque para os meninos em situação de prostituição e/ou de exploração sexual. Muito menos, pretendemos alegar que tal modalidade seja mais grave e/ou cruel que outra. Pretendemos apenas, destacar, como já mencionado, a recorrente invisibilidade dada ao fato de meninos serem tão vítimas nesses processos quanto às meninas. E ainda, chamar atenção sobre a necessidade de se refletir, se esta ausência ou omissão, não está pautada em dificuldades pessoais e/ou profissionais, ou ainda, em preconceitos fundamentados por uma cultura machista que tenta negar um lugar de subjugação, que também se estende ao masculino quando relacionada a uma prática e problemática social reconhecidamente como do feminino.

Judith Ennew (2008) destaca que a separação da infância ideal de todas as questões sexuais tem se mostrado como característica de muitas sociedades humanas, o que dificulta falar sobre determinados assuntos. Nesta premissa, o sexo enquanto normativo social (Rubin, 1983) impõe regras que impedem a discussão e/ou favorecem, para que quando estas ocorram, mostrem-se cheias de eufemismos, gírias vulgares e palavrões, mitologias, tabus e ignorância. Em nossa sociedade, os meninos são criados de forma a aprender e apreender o poder. Precisam desenvolver estratégias que possibilitem subjugar o outro, e não ao contrário, serem subjugados. Assim, esses se tornam vitimas do próprio sistema cultural machista.

Para Ennew (2008) tais dificuldades foram e, ainda são motivadas, também e, possivelmente, pelos debates acalorados em torno da terminologia prostituição. Neste sentido, consideramos que a temática fica mais difícil quando essa prostituição se relaciona de forma direta com o masculino, não no lugar de agenciador que detém o “poder” para explorar, mas ao contrário, no lugar de vítima, explorado e subjugado. Ainda para a autora, a “exploração” também tende a se apresentar como tema de debates prolongados para as ciências sociais onde se apresenta uma tendência à simplificação, englobando-a em apenas dois significados relacionados: fazer o lucro desleal e tirar partido das desigualdades de poder e/ou econômica. A utilização de ambos os sentidos com relação às crianças na prostituição configura a exploração como resultado das ações de clientes e intermediários. Porém, dentro dessas premissas, muitas vezes tende-se a desconsiderar os interesses, ainda que involuntários, das crianças e adolescentes.

Trechos de uma das entrevistas realizadas nas ruas do Recife com os boys de programa revelam que os desejos de acesso parecem configurar certa autonomia e protagonismo de alguns adolescentes em relação ao ato de se prostituir.

Tem gente que começa com 10, 09, 08 anos fazendo programa. Eu conheço muito “pirraia” que começa com 09, 10 anos e faz programa, porque às vezes não tem as coisas que ele queria ter e a mãe não pode (Fábio, 26 anos, moreno claro; In. Souza Neto, 2009).

É preciso considerar que apesar do fator socioeconômico da família se apresentar como principal justificativa, as possibilidades de acesso via prostituição revelam outros fatores, muitas vezes não diretamente relacionados à subsistência. Por isso, destacamos que no Brasil a temática referente ao enfrentamento à exploração sexual ainda se apresenta pautado numa visão mais restrita, entendo-a em sua forma como crime, através das redes organizadas que agenciam ou facilitam o contato entre crianças/adolescentes e adultos, ou ainda como uma forma de trabalho (Ennew, 2008). Também numa perspectiva mais restrita, tende-se a considerar que as três formas de exploração sexual comercial – prostituição infantil, turismo sexual e pornografia infantil, estão extremamente interligadas. Evidencia-se com isso, nossa carência em pesquisas que busquem compreender os diversos significados implicados na prática da prostituição, bem como a urgência na ampliação da construção de conhecimentos científicos sobre como a exploração sexual é vivenciada e percebida pelos próprios adolescentes nela inseridos.

Ao se refletir sobre a prostituição, ainda que como modalidade da exploração sexual, torna-se necessário evitar a recorrente idéia, construída culturalmente, relativa à simples comercialização do corpo feminino, que se justifica única e exclusivamente por dificuldades socioeconômicas. Em pesquisa realizada com adolescentes do México, Ennew, estratifica em tabela, 25 categorias de variáveis que se transformam em motivos para suas inserções na prostituição, entre as quais, “meninas e meninos que vivem com suas famílias e que participam ou implicitamente aceitam que estão sendo explorados”.

Com base nestes estudos, e na mesma perspectiva, Tatiana Savoia Landini (2009) vem desenvolvendo sua pesquisa de mestrado, na qual apresenta seis categorias que revelam a diversidade de formas de envolvimento dos adolescentes com a exploração sexual, entre as quais destacamos três, como forma de evidenciar a subjetividade envolvida na prostituição juvenil, também observada em nossos estudos sobre os pequenos boys de programa: 1) meninas que fazem programas sexuais quando querem dinheiro para comprar roupas, presentes ou para ir a festas; 2) meninas que fazem programa na busca de um relacionamento afetivo; e especificamente em relação aos adolescentes masculinos, 3) meninos que fazem programas para exercer sua homossexualidade livres de discriminação.

Salientamos que é preciso ainda considerar outros fatores envolvidos no processo de inserção na prostituição, tais como: autonomia na definição de horários e honorários; possibilidades de acesso; liberdade; variedade de parcerias sexuais; além dos desejos, prazeres e possibilidades para as descobertas sexuais e vivências das sexualidades, proporcionadas pelo sexo pago (Souza Neto, 2009; Queiroz Viana, 2010). Por isso, e sem desconsiderar as diferenças entre crianças, adolescentes e adultos, acreditamos que o mercado do sexo não pode ser reduzido à simples noção do fazer programa (Adriana Piscitelli, 2005). Faz-se necessário reconhecer as diversas motivações para o envolvimento dos sujeitos nesse mercado, bem como as também diversas percepções dos adolescentes sobre suas próprias inserções nesse (Queiroz Viana, 2010). E, nesse prisma, considerar que os meninos também possuem vontades, desejos e medos que se traduzem em subjetividades. E mais ainda, que seus valores morais, muitas vezes, são diferentes dos nossos valores enquanto pesquisadores. Acima de tudo é preciso entender que ignorar essas subjetividades e valores morais só contribuirá para definições mais fechadas sobre o fenômeno da prostituição e exploração sexual de crianças e adolescentes.


EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE MENINOS EM PERNAMBUCO








PROJETO HISTÓRIA DE MENINOS

A muito me atenho em revelar as nuances e especificidades da violência urbana que tem se instaurado e instalado na cidade do Recife. Com certeza minha prática enquanto pesquisador e técnico da assistência social em muito tem contribuído e influenciado para a concentração de esforços na busca por respostas relativas a um fenômeno que tem se mostrado crescente, e que vem se diversificando no requinte das agressões perpetradas contra as mulheres, sejam elas idosas, adultas, jovens, adolescentes ou crianças. Desta forma, partimos do ponto de que para se analisar a violência é preciso entendê-la enquanto fenômeno social por demais complexo por conjugar aspectos sociais, culturais, econômicos, históricos, políticos, jurídicos e éticos de nossa sociedade. Neste aspecto, salienta-se a violência sexual como fruto de relações de dominação e produto de relações sociais construídas de forma desigual.

Em um sentido mais amplo, dentro de uma sociedade estruturada a partir das desigualdades como a nossa, torna-se impossível pensar a violência sexual desconsiderando as relações de gênero. Durante minha vivencia e experiência na assistência social, seja na coordenação de projetos de inserção social, seja na coordenação técnica de equipamentos que integram o sistema de garantia de direitos, tenho observado que essa modalidade de violência encontra-se respaldada, muitas vezes, em preceitos construídos socialmente ao longo dos tempos objetivando a consolidação e afirmação do poder do masculino sobre o feminino. Tanto que culturalmente no Brasil a violência em si tem se traduzido nessa hierarquização do poder, onde as mulheres foram reduzidas a condição de objetos de serventia e posse dos homens. De forma concreta a violência sexual tem se tornado uma extensão previsível, quase que naturalizada, da subjugação do feminino pelo masculino, fato já bastante revelado em estudos acadêmicos e científicos.

Porém a violência sexual, como todo fenômeno, apresenta-se em várias formas e revela nuances que nos chama a atenção para além do lugar comum. É neste aspecto que considero importante e relevante analisar o lugar do masculino não só enquanto executor, mas também enquanto alvo e/ou vitima da violência sexual. Assim tenho proposto a ampliação das discussões para se [re]pensar e se refletir sobre o homens “coisificados”, tanto quanto as mulheres, quando vitimas de abusos e exploração sexual. Durante o período que compreendeu minha pesquisa de mestrado, onde busquei analisar as performances de gênero dos homens que se prostituem nas ruas do Recife, pude constatar nas ruas da cidade a consolidação de um novo fenômeno social comum aos grandes centros urbanos - a inserção cada vez mais frequente de meninos no universo do sexo pago.

Tal constatação, confirmada nos estudos e pesquisas do também psicólogo Normando Viana (2010) nos levou a ver que, antes vista como atividade restrita e exclusiva do feminino, a prostituição vem se mostrando muitas vezes como meio viável para o acesso a espaços e possibilidades também por parte de homens jovens. Observa-se então a reconfiguração de uma das atividades mais antigas do mundo, agora subcategorizada em modalidades específicas que compreendem a prostituição feminina, exercida por mulheres e travestis; e, a prostituição masculina, exercida por homens héteros e homossexuais. Mas não é da prostituição enquanto atividade comercial exercida de forma consciente que pretendemos nos ater neste momento, mas sobre a prostituição enquanto modalidade da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que se caracteriza enquanto crime e violação dos direitos humanos fundamentais.

Apesar de não desconsiderarmos o aspecto socioeconômico enquanto motivador a inserção de crianças e adolescentes no universo da prostituição propomos a reflexão sobre outros aspectos relacionados que parecem contribuir para a submersão “quase que voluntária das mesmas” no mercado do sexo. Sugerimos uma análise não só sobre as formas de inserção forçosa que se dará através das redes de exploração, mas, principalmente sobre os fatores e aspectos envolvidos no processo de sedução que parecem fazê-las integrar-se a um universo de falsas promessas de soluções imediatas a problemas que se dão para além das esferas econômicas e da subsistência, e que envolvem questões mais subjetivas relacionadas a descoberta e vivencia da sexualidade.

Especificamente entre os boys de programa, autonomeação comum aos homens que se prostituem tanto em espaços públicos quanto em espaços privados na cidade do Recife, evidencia-se a inserção e atuação de crianças e adolescentes do sexo masculino dividindo espaços e clientes entre os boys adultos. Os mesmos, em sua maioria, residem em comunidades localizadas nos subúrbios da cidade, não concluíram o ensino fundamental, não vislumbram grandes oportunidades profissionais e encontram-se imersos num processo de exclusão estigmatizada e estigmatizante, o que evidencia a influência de fatores socioeconômicos como uma das principais justificativas, porém não única, para suas inserções no mercado do sexo ainda durante a infância ou pré-adolescência, por volta dos nove a dezesseis anos de idade (SOUZA NET0, 2009; VIANA, 2010).

Também nas ruas do centro da cidade torna-se fácil a constatação de que meninos interagem e circulam com a desenvoltura de gente grande próximos aos espaços privados de prostituição. Tal fato tem revelado a consolidação de verdadeiras redes de exploração sexual comercial de meninos, bem como a estruturação de um forte mercado sexual homoerótico que vem se estabelecendo em vários territórios de prostituição. Neste mercado, salienta-se que o comercio formal, que inclui entre os estabelecimentos estruturados para o exercício da atividade sexual comercial masculina, as saunas, cinemas pornôs, pensões e boates; abre-se espaço também para uma grande variedade de comerciantes informais que instalam suas barracas de comidas e bebidas em pontos estratégicos e que servem, muitas vezes, como pontos de encontro e concentração dos meninos (VIANA, 2010).

Outro aspecto que tem nos chamado atenção relaciona-se a invisibilidade da exploração sexual de meninos em estudos acadêmicos e dados estatísticos oficiais. Fazendo-se uma breve verificação nos documentos e publicações científicas relativos ao tema constata-se que os mesmos, quando mencionados, aparecem quase como simples figurantes inseridos num fenômeno protagonizado por meninas e adolescentes do sexo feminino. Mesmo entendendo que estatisticamente as meninas representam o maior percentual de casos de abusos e exploração sexual, torna-se necessário e urgente o registro e contabilização dos casos envolvendo os meninos a fim de se implementar políticas públicas voltadas ao enfrentamento do fenômeno de forma mais ampla e inclusiva.

Partindo deste princípio, bem como, considerando que atualmente a exploração sexual de meninos também é observada nos grandes centros urbanos de municípios localizados fora da Região Metropolitana, resolvemos discuti-la a partir das experiências dos meninos objetivando redesenhar o panorama da exploração sexual de crianças e adolescentes em nosso estado. A partir de nossa inquietação, partimos para ações mais concretas, o que nos motivou a buscar patrocínio para a efetivação do projeto Histórias de Meninos – panorama da exploração sexual de meninos no estado de Pernambuco, que visa instrumentalizar e capacitar técnico e metodologicamente os gestores e técnicos da Política Nacional da Assistência Social dos 185 municípios, possibilitando a identificação e registro dos casos que servirão como material de análise e contribuirão de forma significativa para posterior ampliação da construção de conhecimento.

Registre-se que o projeto é uma iniciativa da Superegus Produções e Consultoria, especializada no desenvolvimento e execução de projetos sociais, educação e cultura, com patrocínio da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – CHESF; e que nosso ponto de partida deu-se no dia vinte e três de março, com o lançamento oficial na Região de Desenvolvimento da Mata Norte, composta por dezenove municípios. Destacamos ainda, que tal empreitada só tornou-se possível através da parceria com o Laboratório de Estudos da Sexualidade Humana – Lab-ESHU, no qual integramos o grupo de pesquisadores; com o Centro de Apoio Social e Arte Educação – CASA, organização não governamental que atua na perspectiva da inserção social através do exercício e vivência da arte e cultura; e, do apoio do Governo do Estado de Pernambuco, através da Gerencia de Proteção Social Especial – GPSE/SEDSDH.

Com a pretensão de dividir e trocar experiências, e antecipando parte de nossas ações registrando a partir de agora algumas de nossas reflexões pessoais sobre esse novo desafio que se apresenta como marco para nossas carreiras acadêmicas. Esperamos contribuir de forma efetiva para ampliar a discussão, bem como consolidar um movimento acadêmico, científico e social que tem como principal objetivo retirar da invisibilidade a temática da exploração sexual comercial de meninos.

domingo, 10 de abril de 2011

O LUTO PELA MORTE DE UM AMIGO

HOJE UM AMIGO MEU FOI ESTUPIDAMENTE ASSASSINADO

Hoje um amigo meu foi morto a pedradas. Hoje não sei o que dizer. Um amigo meu foi acuado e barbaramente assassinado sem direito a defesa. Desprotegido e indefeso num matagal qualquer. Hoje fui pego de surpresa e fiquei sem saber o que fazer. Estou sem saber o que pensar. E o mais absurdo da situação é que apenas três dias depois soubemos da tragédia. Encontraram seu corpo nos matos. Hoje, ainda estou bêbado demais para falar sobre violência. Não consigo concatenar as idéias e muito menos os pensamentos. Não consigo organizar os sentimentos. Não consigo esquecer a pessoa que conheci.

Hoje estou fragilizado por demais para ser lógico. Para ser racional. Me sinto revoltado com tudo e com todos para fazer análises e reflexões impessoais. Estou em carne viva. Sangrando pela injustiça humana. Estou naqueles momentos em que se perde a esperança. Hoje, simplesmente não sei o que dizer e muito menos o que pensar. Não quero pensar. Na verdade queria esquecer. Acordar e descobrir que tudo foi apenas um pesadelo. Que tudo foi um trote. Que nada ocorreu. Voltar no tempo e evitar a tragédia. Queria tanta coisa. Não queria nada demais. Apenas reescrever a história e mudar o final. Queria não sofrer. Queria ter a certeza de que ele não sofreu. Não sentiu dores, medo e angustia. Queria gritar a dor que sinto. A dor que talvez ele não tenha gritado. Queria estancar a minha dor que machuca e embaça os olhos. Alienar-me de tudo. Apagar a imagem que atormenta minha alma. Queria me ausentar de qualquer sentido, pois que sentido é que menos existe na situação e o que menos importa neste momento.

Na verdade tenho evitado falar sobre a morte, apesar de ela me ser presente nos últimos dias. É difícil tratar da morte quando a mesma se faz tão próxima. Mesmo entendendo-a como natural ao homem, mesmo sabendo não poder evitá-la. Num sentido mais amplo, não é morte que machuca, mas a forma como se apresenta. Dizem mesmo que a morte só precisa de uma desculpa, pois que nossos dias estão contados e nosso destino traçado. Talvez isso justifique as banais situações. Talvez isso nos conforte. Talvez nos amenize o sofrimento. Mas não creio em destinos. Não acredito em carma. Acredito em pessoas boas e ruins. Em pessoas sadias e insanas. Pessoas perversas que funcionam como animais selvagens. Acredito no desequilíbrio humano. No fracasso da sociedade.

Não encontro explicações para o que sinto ou penso. Talvez porque não existam, talvez porque não se façam necessárias. A morte é simplesmente a morte e ponto final. O final de vidas repletas de sonhos. Final de uma história que poderia ser [e foi] feliz. Final na crença da bondade humana. É isso. Não somos puros. Não somos seres equilibrados e politicamente corretos. Somos animais e por isso agimos pela irracionalidade. Somos bárbaros e por isso nos tornamos predadores. Criamos uma selva disfarçada a quem aprendemos a chamar de sociedade. Abatemos o mais fraco e bebemos sangue. Matamos por instinto.

Não é morte em si que maltrata, pois que a mesma apenas cumpre seu papel. A morte não é boa nem má. Terrível é a forma como se morre. Sem aviso prévio, sem possibilidades de negociação, sem grandes justificativas, sem prorrogações. Como diz o velho poeta, “viver não é preciso”, e não é mesmo, pois que não se controla a vida e muito menos o seu fim. Porque não se pode calcular os atos alheios. Não se pode impedir o desvario e a sandice do outro. O mal não está na morte, mas nesse outro que às vezes acreditamos conhecer tão bem. A perversidade às vezes é amiga. A crueldade se torna companheira de sua presa. A morte é apenas o meio para o abate e iniquilamento. E assim morreu um amigo meu. Abatido como um animal. Destituído da dignidade. Sozinho no escuro da noite. Indefeso e injustiçado pela sorte. Não é a morte que me incomoda, mas o que fazemos depois. O esquecimento e anulação do significado da vida. Daquela vida. De tantas outras vidas que tiveram o mesmo fim. Incomoda-me a banalização da situação violenta. Não é o primeiro amigo, ou conhecido [e também desconhecidos] que morre assim. Já tive amigo estrangulado. Já tive amigo baleado. Já tive amigo estraçalhado. Já tive amigo enforcado. Já tive amigo torturado até a morte. O mesmo fim para quem vive na clandestinidade. O mesmo fim para as minorias obrigadas a se esconder no anonimato de relações perigosas.

O desconforto vem da vulnerabilidade imposta socialmente. Dos riscos inerentes a quem vive vidas semi-ocultas. Da não possibilidade de lutar contra a falsa moral. Do medo em transgredir a norma. Do receio a rejeição. Da impossibilidade de se mostrar diferente. A dor vem do fato de saber que este não é apenas um caso isolado, que se deu em uma pequena cidade afastada. A revolta vem da omissão por parte do poder público. Da falta de políticas públicas mais eficazes que garantam o direito de igualdade para todos. Do descaso com determinados segmentos da população. Do descompromisso com a vida, que tem resultado em mortes consecutivas. Morte das quais não se fala claramente. Mortes envolvidas em mistérios e vergonhas. Mortes que estampam diariamente os jornais. Mortes que escancaram o malogro social e colocam em cheque os modelos rigidamente estabelecidos em detrimento de uma maioria falso burguesa.

Não é a morte que espanta, mas a violência característica. O requinte de crueldade comum aos crimes dessa natureza. Não é morte que assusta, pois que nestes casos a mesma se torna insuficiente. Pois que nestes casos é preciso anular a existência. É preciso apagar os vestígios da diferença que ameaça e amedronta por expor semelhanças. E que podem evidenciar desejos negados e relegados ao escuro e ao oculto. É preciso não apenas matar, mas destruir para nulificar o outro que me revela e me coloca também no lugar de excluído. O lugar que não se quer, pois que a exclusão é quem mata, viola e aniquila. Não é a morte que inquieta, mas a certeza de que nestes casos não é apenas o agressor quem mata. Mas todos nós que insistimos em manter o falho modelo social pautado na desigualdade. Essas mortes desassossegam por saber que não existe um único culpado. Perturbam por nos jogar na cara nossa parcela de responsabilidade.

Não é a dor da morte que choramos, mas nosso próprio sentimento de fracasso diante do que é previsto por todos. E não é a partida dessa pessoa em si que lamentamos, mas a de muitas outras que também sofreram, e sofrerão, do mesmo jeito, do mesmo modo, as consequencias de nossa omissão. Acho que estou bêbado demais para reflexões racionais. Cansado demais para ressignificar a dor que sinto. Vazio demais para chorar a perda do outro. Resta-me apenas soluçar pelo meu próprio fracasso. Lamentar minha fraqueza e lastimar também minha culpa. Acho que estou bêbado demais para dormir. Ainda bêbado demais para acordar. e principalmente, envergonhado demais para encarar o espelho.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

MASSACRE NA ESCOLA CARIOCA - Cenas de Ficção ou Realidade Social?


REFLEXOS DA BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA.

O que aconteceu? “Um psicopata matou doze crianças em uma escola do Rio de Janeiro”. Dizia uma voz angustiada ao telefone. Foi assim que recebi a notícia bombástica sobre o massacre na escola carioca. “Está em todos os jornais e televisão. Estão transmitindo ao vivo. Muita criança morta e tem sangue por todos os lados. O assassino deu um tiro na cabeça e tem miolos espalhados pelas paredes e corredor. É um verdadeiro filme de terror que está acontecendo lá”, continuava a voz rouca, num relato entrecortado por soluços e lágrimas que pareciam misturadas a certa euforia e excitação. Era algo novo. Nunca visto e nunca presenciado com tanta minúcia de detalhes. E em tom frenético a voz relatava o passo a passo do que se via na TV. O que dizer em uma hora dessas? E principalmente como explicar que aquelas cenas tão cinematográficas agora faziam parte de nossa realidade?

Na verdade não precisei acompanhar as notícias veiculadas na imprensa. Os relatos chegavam de todos os lados, em uma velocidade alucinante. Foi o assunto do dia. Será o tema da semana que se prolongará em intermináveis documentários jornalísticos. Estava há mais de 150 quilômetros de Recife, em uma ação de treinamento quando recebi a informação pelo celular. Na era da tecnologia avançada a informação se mostra tão rápida quanto as ações que compõem os fatos. Tudo é imediato. Todas as emoções se mostram imediatistas. Como imediatas se tornam nossa comoção e necessidade de respostas. Todos buscam explicações e por isso as informações se tornam precipitadas e controversas. É como se ao encontrarmos uma hipótese, qualquer que seja, pudéssemos diminuir a dor e a perplexidade diante da brutalidade que nos choca. É preciso explicações que nos convençam sobre a anormalidade do fato. Porque somos humanos, logo racionais, o que implica na desnaturalização do ocorrido. Tanto que a pergunta que mais se ouvia era: “como uma pessoa normal pode fazer uma coisa dessas?” Para logo em seguida complementarem suas próprias indagações duvidosas: “Isso é uma coisa de monstro.”

Na verdade não é o que se espera de um cidadão pacato e comum, como tantos que convivem e habitam os mesmos espaços que costumamos frequentar. E talvez seja esse o principal motivo para tão grande angustia e incômodo. Fomos pegos de surpresa? Talvez sim. Mas não poderíamos acreditar na tola utopia de que fatos como esses não chegariam até nossa sociedade, nossas cidades, nossas vidas. Na verdade os requintes de violência comuns a esses tipos de crime não nos são estranhos, ou mesmo desconhecidos. Será que já nos esquecemos do “Caso Nardoni”, onde os pais jogaram uma criança da janela de um apartamento? E do “Caso Bruno”, onde o corpo da vítima provavelmente foi devorado pelos cães famintos? Quanto tempo faz que a jovem Suzane Von Richthofen efetivou o assassinato de seus pais durante uma noite sombria? E em quantos pontos o “Caso Eloá” aumentou o ibope das emissoras de televisão?

Será que junto com a velocidade da informação também não nos acostumamos a assistir e acompanhar tais crimes como filmes de cinema e novelas de TV? Não é fato concreto que levamos a violência para dentro de nossas casas e assim perdemos a capacidade de diferenciar ficção e realidade? Será que não é fato também, que este caso em específico, se mostra semelhante aos tantos casos que assistimos junto aos nossos filhos, mas que talvez não tenhamos julgado tão importantes ou graves por que se deram em outros países? Será que não existia, de certa forma, um prenuncio de algo que poderia nos atingir? Será que esse alucinado e doentio acesso a informações tão bem detalhadas não inspiram e motivam a réplica ou imitação?

De qualquer forma, acho que nos acostumamos a fechar a porta apenas depois de roubados. Essa tem sido nossa política. Ou melhor, este nos é um bom exemplo da ausência de políticas eficientes e eficazes no enfrentamento a violência. Nossas escolas, públicas e privadas, estão repletas de casos de violência cotidianamente sofrida e promovida por estudantes, professores e agentes de educação. Hoje o país se esforça para combater o Bulling. E isso claro, é louvável. Mas se bem me lembro, quando criança e ainda quando jovem também fui vítima de bulling. E na época não existia tal classificação para essa modalidade de violência, e muito menos estratégias de enfrentamento e combate. Quanto tempo se esperou para se começar a enfrentar a homofobia nas escolas? E a para combater a discriminação e o preconceito étnico/racial? Assim, o que tenho me perguntado nos últimos dias, é até que ponto estávamos realmente inocentes e desavisados.

Parece que mais uma vez a vida imitou a arte. Não foi assim que o estudante de medicina Mateus da Costa Meira disparou tiros de submetralhadora sobre a platéia que assistia ao filme “O Clube da Luta”, exibido em uma sala do Morumbi Shopping, em São Paulo? Não é fato também que em todos esses casos a perplexidade coletiva parece ter se tornar passageira? E que passageira também parece se torna nossa memória por deletar tais experiências com a mesma velocidade com que a imprensa muda de foco e reportagens? Não é verdade que banalizamos a violência ao nos acostumar apenas a chorar e nos comover diante da tela? Mais uma cena forte. Apenas mais uma novela com trama macabra. Ficção e realidade que se misturam e causam emoções. Mas no caso da ficção, talvez seja interessante refletir porque os vilãos nos têm marcado muito mais do que os bons mocinhos. Talvez porque a violência gere mais ibope do que o mal fadado romantismo. Talvez até pudéssemos pensar se não existe, ou se ainda não temos alimentado ferozmente uma verdadeira indústria da violência.

O problema é que nestes casos a preocupação maior parece se concentrar não nas estratégias de prevenção e enfrentamento, mas única e exclusivamente, em traçar o perfil do assassino. É preciso encontrar respostas a uma sociedade revoltada. É preciso delegar culpas a alguém. Até porque tais situações expõem nossas fragilidades e coloca em cheque a eficácia do Estado. Por isso forma-se um batalhão de profissionais e especialistas que apressados concentram esforços em justificativas de deleguem a culpa ao acaso e ao imprevisto. Busca-se por laudos técnicos e pareceres especializados sobre as psicopatologias humanas. E mais uma vez recorre-se a medicina para justificar o que é social e político. O vilão precisa ser eliminado, não apenas metaforicamente, mas de forma concreta e imediata. Afastado o risco, busca-se por motivos que expliquem comportamentos doentios. E neste contexto, a classificação de psicopata parece a melhor solução. Existe mesmo, de certo modo, uma verdadeira fascinação coletiva acerca da psicopatia. Sobre esses misteriosos seres que invadem nossos inconscientes despertando o medo, a curiosidade e até a admiração.

Voltando a televisão veremos que na verdade aprendemos a torcer pelas milhares de “Lauras”, “Ivones” e “Floras” da vida. Também na vida real é assim. Perigosos assassinos e bandidos são transformados em falsos heróis instantâneos. E em quanto será que temos contribuído para isso? É neste sentido que penso no quanto a psicopatia, também conhecida como sociopatia, tem sido associada aos assassinos que matam em série. Mas neste sentido talvez seja viável pensar que nem todo assassino é psicopata. E que o oposto também se mostra verdadeiro, pois que nem todo psicopata chega a cometer assassinatos ou se revelam fisicamente violentos e perigosos. No entanto, revela-se uma tendência a percebê-los enquanto bode expiatório, ou bola da vez. Voltamos à caça as bruxas. Talvez porque assim se consiga amenizar nossas próprias culpas e responsabilidades. Talvez porque assim se explique nossa ineficiência diante do inesperado e do imprevisto. Talvez porque amenize nossa dor. Talvez porque nos faça acreditar que o ocorrido foi apenas fruto do incontrolável. Lavamos as mãos diante do sofrimento alheio. Comentamos o fato até a exaustão para facilitar o esquecimento. E assim ficamos até que o caso ou fato se repita. Até que mais uma situação escancare nossa incapacidade de lidar com nossas falhas e faltas. E o quanto agimos como os verdadeiros psicopatas, agindo com a mais clássica ausência de culpas.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

PORQUE EM DIAS DE JOGO NÃO SE DESCE ÀS RUAS.

Helicóptero sobrevoa a avenida.



UM CAMPO DE BATALHAS NA CONDE DA BOA VISTA

03 de abril de 2011 – O dia que ficará para sempre na memória do Recife. Era exatamente 18:30 e os bandos se aproximam da trincheira. Soldados se armavam e o barulho das ruas invadiu minha sala. O zig-zag de hélices metálicas se faz ensurdecedor. Tinha um helicóptero sob minha cabeça e dele vinha uma luz azulada que a todos iluminou. Um facho que bailava em minha janela e como relâmpago clareava o interior de minha privacidade. Funcionou como flashs de máquina potente, hora acendendo, hora apagando, provocando sombras que dançavam nas paredes dos edifícios a minha frente. Me sentir cercado e coagido. A algazarra aumentava e as pessoas corriam amontoadas pela avenida sem destino certo. De todos os lados vinham comboios de carros patrulhas com sirenes que gritavam a reivindicação da ordem. Eles formaram barreiras no meio da rua, e hora por outra arranhavam o asfalto cantando pneus. Milhares de motos pilotadas por homens de preto berravam estridentemente à presença severa da polícia. Era o batalhão de choque. Era preciso reprimir a multidão que se aglomerava e avançava em sinal de conflito. Policiais formaram barricadas e paredões, preparados para o ataque. Voltava à gritaria e vozes se atropelavam em tons de defesa e de acusações. Eram dois times em lados opostos, eram dois povos. Um de frente ao outro. Ambos uniformizados, cada um ao seu modo. Cada um defendendo sua ideologia [se é que existe alguma neste tipo de coisa]. Não existiam bolas. Mas existiam balas.


A tensão aumentava e tomava conta da cidade. Mais uma batalha se iniciara diante dos olhares perplexos e incrédulos. Ônibus superlotados, veículos desviando pedestres que invadiam a pista, edifícios acesos com janelas repletas de curiosos. Todos inocentes, desesperados sem saber o que fazer para se proteger da melhor forma possível. Todos encadeados pela luz azulada que vinha do céu. Quando pedras começaram a voar pelos ares, abrigos das paradas de ônibus e portas metálicas de lojas se tornaram alvos e sofreram as consequencias. Pedra e metal reverberando a intensidade e insanidade da violência urbana. Repetia-se o quebra-quebra insensato e ensandecido de todos os dias de clássicos. Por isso não se pode descer as ruas nos dias de guerra, a não ser para fazer parte da briga. E mesmo sem motivos, ou ainda sem tomar partidos, nos tornamos prisioneiros em nossas próprias celas gradeadas. Não existe paz nos dias de jogo e por isso mesmo até os pombos, brancos ou pretos, fogem em revoadas para os pontos mais altos da selva de concreto armado [e armada]. O helicóptero que acompanhava as multidões também denunciava seus [e os nossos] movimentos. Era a invasão sem distinção dos espaços públicos e privados. Acho que a partir de agora, nos dias de jogo o esplendoroso e onipotente pássaro metálico sobrevoará nossa avenida, alto e inatingível. Fiscalizará as galeras e as nossas vidas facilitando a ação dos camburões de homens armados. Neste dia que entrará para a história do Recife, alguém ditava ordens de comando através de um megafone e fileiras em cor preta davam um passo à frente. Eram soldados preparados para abater caso preciso. De outro lado alguém ditava comandos com voz firme e muitos corriam para o recuo. Avanço e recuo. Hora um. Hora outro. Eram estratégias de guerra que visavam à ocupação de espaços, em pleno centro da cidade.
Av. Conde da Boa Vista
Eram momentos de baderna [como nos muitos dias de clássicos] que transformavam, mais uma vez, a Av. Conde da Boa Vista em cenário de combate. Bem poderia ser um filme de terror, daqueles onde os americanos adoram demonstrar seu poderio bélico. Tudo era muito parecido. Tinha as armas, o fogo nos olhos de homens raivosos e dispostos a lutar. Tinha criança e velhos pagando pela insanidade alheia. E alheios são sempre os inocentes que se tornam, na maioria das vezes, vitimas do destino. Porque é preciso aprender que em dias de jogo não se sai às ruas. É preciso se limitar as janelas e constatar que não há ficção. Pelo contrário, são sempre os mesmos personagens reais perdidos em um roteiro mal escrito e sem direção de arte. Porque não existe arte na violência. E neste dia que marcará nossas vidas, lá estavam eles novamente interpretando seus papéis de vilões e mocinhos, em pleno campo de batalha que se dá no cruzamento diante de minha janela. Nesse roteiro de ação repetitiva, restava-nos apenas a figuração e por isso ficamos inertes e impotentes, apenas compondo a cena. Até porque era apenas mais um dia de hostilidades na Av. Conde da Boa Vista! Mais um dia em que as torcidas organizadas saiam às ruas do centro para extravasar suas glórias ou derrotas. E neste sentido não importa qual o time que ganha, pois que todos perdem porque as mesmas situações sempre se repetem. Confronto entre torcidas organizadas virou modismo em Recife. Talvez seja apenas uma imitação barata de uma realidade que vem do sul. Talvez seja uma realidade nossa a partir de agora. Talvez o helicóptero seja incorporado a nossa paisagem cotidiana. Talvez a gente se acostume tanto quanto os cariocas.

 Penso então, no fato de precisarmos copiar modelos para nos sentir tão fortes quanto, ou quem sabe, tão comprometidos quanto? Será que nos sentiremos mais seguros? De qualquer forma, o importante é que na verdade não entendo de futebol. E muito menos de segurança pública. Acho que nem mesmo entendo dos novos fenômenos que se fazem em plágios sociais. Não sei se tem valor ou se tem sentido. Não sei se tem lógica. Não a imitação pela imitação, mas o uso da violência como instrumento da afirmação de identidades e consolidação dos lugares de poder. Não entendo realmente dessa modalidade esportiva, mas acho que a violência não faz parte do jogo. Ainda acredito na tola convicção de que não se combate violência com mais violência. Mas no caso específico das torcidas organizadas, talvez até tal insensatez se justifique por um processo de catarse coletiva pelo qual se deseje demonstrar a garra e a força dos que não competem em campo, mas se tornam extensões dos jogadores ao assumirem o passivo papel de torcedores. E por isso, o campo se transfere para as ruas onde o gramado e duro e cinza.
Av. Conde da Boa Vista

Mas, independente das besteiras que possa pensar ou falar a respeito prefiro acreditar que como qualquer fenômeno social, emergente ou não, a guerra entre torcidas organizadas merece estudo e análise. Na verdade penso se essa manifestação não está diretamente atrelada a outros fatores, também sociais, como desigualdades. Não que estas diferenças estejam tão visíveis nos campos. Mas nas ruas, não se torna necessário o potente refletor de um helicóptero para evidenciar tais dissimilitudes. Talvez a algazarra e o quebra-quebra se justifiquem pelas faltas que afetam os subúrbios e comunidades populares que se espremem as margens do Recife. Talvez não seja o sentido ou sentimento de vitória ou derrota que está em jogo. Pelo menos nesse jogo. Mas a raiva motivada pelo sentimento de injustiça e pelas faltas de possibilidades de mudanças em curto prazo. E neste sentido, penso na importância de se pensar no quanto de tempo representa este tão proclamado curto prazo. Será o tempo de uma partida? O tempo de uma batalha? Ou o tempo de uma curta vida, aspecto peculiar aos que se encontram as margens. Quem nasce marginal, vive nas beiras e consome as sobras. Para estes não existe a representação do longo, médio ou curto prazo. Aliás, não existem prazos, pois que o tempo é urgente e emergente. O tempo é o agora porque a fome, a sede e as falta de condições dignas são presentes e cotidianas.

 Talvez se quebre portas, janelas, ônibus, vitrines e abrigos como desforra sobre uma sociedade que nos quebra a vida, a honra e a dignidade. Talvez nem seja nada disso, mas apenas uma incosequente demonstração de descontentamento pela falta de perspectivas a longo, médio e curto prazo. Talvez sejam apenas devaneios de um tolo que busca compreensão no incompreensível e inexplicável. Mas fato é que o centro da cidade tem evidenciado cotidianamente momentos de extrema violência. Por isso dia de jogo não se desce as ruas. Para não correr o risco de ser agredido ou espancado, mesmo que sem justificativas ou motivos concretos. Dia de jogo fica-se em casa, trancafiado e acuado porque sem as ruas não se chega a lugar nenhum. Porque nesses dias o espetáculo não se dá nas telas de TV, mas ao vivo e a cores na frente de nossos olhos admirados. É o jogo das multidões que se espalha pelas ruas e avenidas. Jogo com regras diferentes, mas onde todos vestem uniformes e todos agridem e são agredidos, sejam bicolores, tricolores ou simplesmente em cores pretas. Jogo iluminado por tecnologia aérea que aumenta as sombras do medo. Jogo das tecnologias mecânicas de motores potentes que arranham asfaltos e cantam pneus. Jogo que põe a vida em jogo. Não só as dos torcedores, mas também as dos juízes que apitam a obediência e as dos inocentes que sem arquibancadas ficam expostos em meio às agressões e riscos.
Av. Conde da Boa Vista

Talvez existam motivos lógicos. Mas talvez nem exista lógica que justifique os motivos. Pode ser fúria, raiva ou revolta reprimida. Pode ser combate as desigualdades, as injustiças, as diferenças ou afirmação de identidades. Pode ser inconsequência juvenil. Pode ser consequência da falta de perspectivas e políticas públicas eficazes para a juventude e infância. Pode ser ausência de filosofia ou inexistência de ideologia de vida. Por fim, pode ser um pouco de tudo, ou um muito de nada. Talvez nem exista probabilidades de mudanças a longo, médio, e principalmente, em curto prazo. Talvez o helicóptero volte a zumbir sob nossas cabeças. Talvez a gente agradeça por se sentir seguro e protegido. Talvez o “batalhão” nos dê um choque de consciência. Talvez tenhamos banalizado a violência. Talvez a gente se acostume...

Talvez a gente aprenda que em dia de jogo não se desce as ruas para não ser atingidos por bolas [ou balas] perdidas. Até porque, nos dias de jogo, talvez o único “tiro de meta” seja o que lhe derrube no campo [de batalha]. Talvez valha a reflexão! Talvez não.


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 2 de abril de 2011

UM GESTOR QUE DÁ AS COSTAS PARA SEU POVO


Av. Conde da Boa Vista



ACORDA JOÃO E VEM VER O RECIFE DE FRENTE

Acorda João e vem ver o recife de frente. Tem gente passando fome e necessidade. Tem gente dormindo ao relento. Verdadeiras famílias que fazem das ruas seus espaços de convivência e moradia. Não que as ruas sejam indignas, mas porque nelas habitam os animais! Não que as ruas inviabilizem a vida, mas porque elas estão sujas! Não que as ruas não se mostrem como alternativas, mas porque estão desprotegidas e abandonadas, como as famílias que nelas vivem! Nossas ruas estão desprovidas das condições mínimas para abrigar crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, João. As ruas comprometem o desenvolvimento saudável, princípio básico dos Direitos Humanos. Corrompem a moral, afetam a auto-estima e destituem o homem do seu lugar de sujeito de direitos. Elas coisificam meninos e meninas, homens e mulheres, velhos e velhas senhoras. Mas talvez você não saiba por que nunca conseguiu ver o Recife de frente.

Ah, João! Não se pode olhar as ruas de costas. Quantas vezes já te alertamos? Elas nos desafiam a todo instante. As ruas escondem segredos e às vezes se fazem misteriosas só para nos intrigar. Também revelam surpresas que podem não nos ser agradáveis. Sim, as ruas são públicas, João. E por isso mesmo és o principal responsável. Se elas estão sujas, a culpa é tua por não gerenciar a cidade de forma adequada. Se elas estão violentas, também é tua a responsabilidade por não investir em prevenção. E não estamos falando no tradicional método do “vigiar e punir”. Mas em estratégias de governo que garantam educação, saúde e moradia digna. Estamos falando de garantias básicas e de igualdade em direitos. Mas você sabe do que estamos falando, não é mesmo? É claro que sabe, ou pelo menos deveria saber. Afinal de contas você nos prometeu em campanha. A questão é saber apenas se você lembra.

Av. Conde da Boa Vista
É preciso mudar a posição, João. Rotacionar o corpo para ficar de frente. É assim que se deve encarar as ruas. Até por que às nossas costas fica o passado. O que já se foi e não vimos ou não demos a devida importância e atenção. As nossas costas, de certa forma, invisibilizam fatos e situações que reencontraremos mais a frente. Nelas ficam nossos erros e equívocos, nossa insensatez e descompromissos. Mas é preciso entender que nossos desvios de conduta, sejam morais, éticos ou políticos só podem ser corrigidos se analisados de frente. Por isso, nunca dê as costas para as ruas João. Pois elas, provavelmente farão o mesmo com você nas próximas eleições.

Av. Conde da Boa Vista

Por tudo que temos te falado, acreditamos que o Recife não precisa de mais um prefeito que dá as costas para as necessidades urgentes e dos emergentes. Porque estamos órfãos e carentes de políticos que atuem nas linhas de frente. Que arregacem as mangas e que justifiquem nossas escolhas. Precisamos de gestores que se façam presente. Que saiam de seus gabinetes e cheguem às ruas onde se encontra seu povo. É verdade João. O povo está nas ruas. Ou melhor, o povo continua nas ruas. O mesmo povo analfabeto funcional que você ajudou a formar e deixou prá trás. O mesmo povo faminto, de quem você retira a comida e a dignidade, permanece esperando que cumpras com tuas obrigações. E para o povo João, promessa é divida. E dívida se paga com ações concretas e eficientes.

Av. Conde da Boa Vista

Não se dá as costas ao povo João! Principalmente quando se vive do voto alheio. E não estamos falando de trocas ou escambos. Mas de justiça e sabedoria popular. E pode até lhe parecer piada de mau gosto João, mas apesar de você negar educação o povo não é burro. Mesmo você negando saúde, o povo sempre vai encontrar força para fazer valer seus direitos e vontades. E mesmo negando assistência o povo manterá a voz firme. Porque aprenderam nas mesmas ruas que você mantém sujas e fétidas, que muitas vezes é no grito que se ganha uma batalha. A luta travada diariamente pelo povo que vive nas [e das] ruas impregnadas de seus dejetos os fez transformar subsistência em sinônimo de sobrevivência. E é essa resistência que sempre vai denunciar os descasos de sua gestão.

Av. Conde da Boa Vista

É preciso acordar cedo para vir às ruas. E olha João, não precisa ser todos os dias não, para não prejudicar seu sagrado sono que se dá em lençóis macios. Basta uma vez ou outra, para poder ver com teus próprios olhos a sujeira que você deixou se espalhar pelos contos e recantos da cidade. É sua a responsabilidade manter as ruas limpas. Só falta você fazer sua parte, porque a nossa já fazemos pagando os altos impostos. Acorda João porque não estamos te pedindo favores, estamos apenas te cobrando às responsabilidades assumidas e inerentes ao cargo que ocupas. Não objetivamos com isso perturbar as noites tranquilas de tua família, mas apenas minimizar os pesadelos cotidianos de quem não tem onde dormir. E isso não é pedir muito porque é tua obrigação. Não estamos te pedindo grandes esforços ou sacrifícios, e muito menos tua piedade. Não, não é nada disso. Reivindicamos apenas que conheças melhor as ruas do Recife. E isso não se faz de costas. Tem que ser de frente. Tem que deixar o estômago embrulhar ao ver crianças dividindo alimentos com animais. Tem que chorar ao ver a dor e a miséria tomar conta de corpos frágeis e indefesos. Perceber a doença comendo a pele e desfigurando gente. Tem que se sensibilizar ao ver pessoas destituídas da condição humana.

Av. Conde da Boa Vista
João, um dia desses tive dificuldades em diferenciar um menino de um animal rabugento. Era uma cena tão grotesca que não consigo esquecer até hoje. Ele não andava mais e se espremia em um canto agarrado a um tubo com cola. E não era noite. Eram exatamente oito horas da manhã. Mas que pena João, acho que você ainda estava no café da manhã com seus filhos e por isso não teve tempo para ver. Pena maior é saber que mesmo que já estivesses a caminho do trabalho também não verias. Porque você não anda por essas ruas. Não, você não anda. E também não sabe do que estmos falando porque no bairro onde você mora não tem população em situação de rua. Lá a policia não deixa, João. Lá tem segurança e por isso as ruas estão sempre limpas e arrumadas de acordo com o que vocês entendem por arrumação e limpeza.

Av. Conde da Boa Vista

Talvez na próxima campanha eleitoral você resolva passar por aqui. Mas também, talvez seja tarde porque não precisaremos mais de você para manter as ruas seguras e tranquilas. E olha João, não estamos falando da adoção de modelos higienistas a que políticos como você está [mal] acostumado, mas das possibilidades e direitos que garantam a dignidade humana. Estamos falando das condições mínimas e necessárias ao desenvolvimento saudável de toda pessoa humana. Não é misturado a cachorros, ratos, baratas e vermes que se desenvolve um cidadão sadio e consciente de seus direitos e deveres. Não é negando o sono seguro que se forma um homem. Não é dando as costas à população em situação de rua que se resolve as injustiças e desigualdades sociais. É preciso compreender João, que não é o povo das ruas que contribui para o aumento da violência que você e os seus tanto temem. É a violência social que contribui diretamente para o aumento significativo deste segmento da população. E isso também é responsabilidade sua.

Av. Conde da Boa Vista
Não é só policiamento e câmeras que garantem segurança João. Até porque esses recursos não servem e nem atendem a população de rua. Além do mais, segurança é um conceito mais amplo que é perpassado pelo sentido de bem estar, saúde, educação de base, alimentação saudável, assistência e moradia digna. Não sei se você estudou, mas segundo a teoria de Maslow, a necessidade de segurança vem depois da satisfação de nossas necessidades básicas. Isso é elementar,meu caro João!Ou seja, é preciso rimeiro saciar a fome e a sede, garantir o sono tranquilo, garantir e exercício da sexualidade. Isso é básico ao pleno desenvolvimento humano. Fortalecer a auto-estima restitui a dignidade das pessoas João.

Resgatar a dignidade do povo das ruas. É isso João. Era sobre isso que queríamos te falar. Mas acima de tudo, te falar também sobre a necessidade urgente do resgate da tua própria dignidade enquanto pessoa e enquanto político que não tem se mostrado sério e responsável. Mas isso é um processo individual. E neste aspecto, acho que não podemos te ajudar muito porque implica em conceitos morais e éticos que são pessoais e se aprende [e se apreende] desde cedo. Pensamos que talvez não tenhas prestado à atenção devida as aulas ética e compromiso social, o que comprometeu tua formação cívica e política. Ou talvez tenhas aprendido desde cedo a dar às costas as coisas [e causas] importantes. De qualquer forma, João, não é de costas que se respeita um povo. Assim esperamos, quem sabe, que na próxima eleição entendas melhor do que estamos falando.