quinta-feira, 8 de julho de 2010

A HISTÓRIA DE MINHA VIDA - A Adolescência





















Auto Retrato/2007

Capítulo III - LEMBRANÇAS DE UM ADOLESCENTE DIFERENTE

No final da década de setenta sai finalmente do subúrbio limitado para descobri a tridimensionalidade da capital. Fui estudar em uma escola do Recife, junto com uma de minhas irmãs. Inicialmente a escola exclusiva para meninas, passou a aceitar meninos e tornou-se mista. Curioso relembrar, que mesmo sendo uma escola estadual e logicamente mantida com nossos impostos, era basicamente uma instituição religiosa. Descobri que o Estado não era laico, mas isso também só se tornaria constitucional em 1988. Anexa à igreja da Soledade, a escola seguia os ditames da fé cristã e os alunos precisavam ser católicos apostólicos romanos. Certo dia, uma freira entrou na sala e questionou quantos dos alunos já tinha feito a primeira comunhão. Do total, apenas uns cinco responderam negativamente, entre os quais, eu e minha irmã. A partir desse momento fomos inseridos num cursinho de catecismo, que acontecia depois das aulas, e onde aprendemos os mandamentos da igreja e as várias histórias fantasiosas da bíblia.

Se soubesse que mentir não era um pecado tão grande e que não nos levaria ao inferno, pois que digam os políticos, teria omitido tal fato a “irmã”, e assim, evitado todo aquele suplicio enfadonho. Tivemos também que assistir as sucessivas missas para nos preparar para o grande momento. Tinha uma amiga que, na época, não tinha os dentes da frente. O que era muito comum, pois que éramos um país dos desdentados. Ela era “banguela”, e logicamente a apelidei de “vampira”. Digo logicamente porque é muito comum as pessoas discriminadas também discriminar. A gente termina replicando as normas e regras estabelecidas, e eu não seria diferente. Logo, se me sentia fraco e menor, precisa menosprezar alguém para me sentir superior. Mesmo que fosse um grande amigo. Não é o mesmo processo que relatei anteriormente? As pessoas me rejeitavam porque gostariam de saber o que sabia e assim, poderem se sentir iguais a mim. Não é assim que se dá o processo de inclusão, onde buscamos nada mais, nada menos, do que a aceitação do outro e do grupo? Mas disso também me vem à reflexão que na verdade sempre desejamos o que é do outro. É assim até hoje e acho que sempre será. E olha que segundo a bíblia isto é um dos sete pecados capitais: cobiçar o que é do outro. Mas, essa é a mola mestra do mundo capitalista, onde se vale pelo que se tem. Neste sentido lembro até de um comercial que dizia: Sabonete “Phebo”, vale quanto pesa. Alguém lembra? Sim, sou da época do sabonete Phebo (com ph mesmo) e também do “Alma de Flores” e do “Solemar” (um sabonete a base de limão que deveria ser um terror). Acho que a filosofia phebo se tornou regra, porém como sempre fui diferente preferi acreditar desde muito jovem que ao contrário, na vida se vale o quanto pensa. Sim, porque quem pensa, cria, desenvolve e evolui.

Bom, mas voltando ao sabonete, e neste momento peço mais uma vez desculpas pela quantidade de devaneios. Mas justifico que ao relembrar o passado torna-se difícil, e por não dizer impossível, estabelecer uma relação cronológica exata dos fatos. Lembro apenas, que em um dos meus aniversários ganhei de presente um sabonete. E isso, pasmem, era presente que se dava naquela época. Como lá em casa tudo era para todos, claro que meu querido sabonete, que tinha um enorme valor sentimental (acho que devido ao fato de meus outros irmãos não terem um sabonete só deles), foi parar no banheiro. Vai explicar o sentido de coletivo a uma criança chata e metida como eu. Percebo agora que desde pequeno já era meio egoísta. Pensando hoje, acho que essas situações demarcam o inicio de processo de individualização, quero dizer, não individualismo, mas o processo pelo qual descobrimos que somos uma pessoa separada das outras. Se antes pensávamos que éramos todos iguais, naquela linha meio os três mosqueteiro: um por todos e todos por um, a partir de algum momento descobrimos que não. Que não somos tão iguais, e assim começamos a demarcar nossos territórios. Penso também, se não seria a partir desse momento que começamos a nos sentir sozinhos. Será esse o inicio da solidão humana? Aquele sentimento que nos invade de vez em quando, e que temos a sensação de que mesmo rodeados de muita gente, estamos sós?

Mas voltando a escola, ou melhor, ao grande momento religioso de minha vida, lembro que durante as missas ficava intrigado com o corpo dos santos. Sim, porque corpo de sento é feito pé de cobra, quem ver morre. Já repararam que as imagens sacras estão sempre bem vestidas, arrumadas e com um ar de perfeição? Bem, como era curioso, queria saber se os santos eram iguais a mim e a todos os mortais. Queria ver se eles tinham pernas, barriga, peito, bunda e logicamente, se eles tinham pênis e vagina. Certo dia, depois que a missa terminou e todos saíram, voltamos a igreja, eu e minha amiga, e começamos a levantar as roupas dos santos. E para nossa surpresa e decepção, não havia nada. Ou melhor, não havia corpo, apenas uns cavaletes de madeira que uniam cabeças e mãos de gesso. Logicamente fiquei decepcionado. Mas confesso também que minha descoberta me rendeu certo status de corajoso. Afinal, quem teria coragem de cometer uma obscenidade daquelas com os santos da grande igreja?

Durante as missas ficava extremamente irritado quando tínhamos que ficar de joelhos para rezar. Aquela posição, além de incômoda, me lembrava dos castigos que sofríamos nas escolas. Sim, porque sou de um tempo, onde alunos mal comportados ficavam de castigo. Muitas vezes, passávamos as aulas inteiras de joelho ou ainda virados para a parede. Realmente penso que o Brasil evoluiu muito a partir da definição dos conceitos relativos a direitos e cidadania. Como se poderia imaginar, que a escola, que seria um local de aprendizagem, inclusive sobre nossos direitos e deveres, seria também um espaço de tortura e maus tratos? Acho mesmo, que na época já fazia esses tipos de questionamentos, tanto que sempre tive certa dificuldade com regras muito rígidas e também com figuras de autoridade. E isso devia ser um conflito enorme em época de ditadura militar.

Bom, mas ainda nas missas, também me irritava não poder receber a hóstia (é com h?). Ficávamos naquelas filas enormes e quando chegava nossa vez tínhamos que sair pelos lados com a boca vazia. Tinha vontade de gritar para o padre que a igualdade é para todos. Mas tinha que concluir todo aquele ritual para finalmente me tornar cristão, ou pelos menos, passar a ser reconhecido como tal. Minha primeira hóstia foi na comunhão. Criei uma expectativa enorme, confesso que fiquei até nervoso. Era a primeira vez que receberia a graça do Senhor, pelas mãos de seu representante. Sei que fechei até os olhos, acho que estava esperando ver Jesus, tolinho que eu era. Quando senti aquele gosto de farinha, que se dissolvia em minha boca pensei: que coisa ruim. É esse o corpo de Cristo? Fiquei olhando a cara das pessoas e todas pareciam satisfeitas e felizes. Estavam saciadas com o Senhor. Porém, não sentia nada. Só uma coisa grudenta que ficou colada no meu céu da boca e que tive que decolar com a língua. Finalmente o negócio desceu de goela a baixo e nunca mais quis saber de hóstia, de missa e de todos aqueles mandamentos.

Mas surpreso fiquei ao ver, dias depois, que nada havia mudado em minha vida. Eu continuava o mesmo e sofria as mesmas perseguições e brincadeiras que tanto me faziam sofrer. E pior, não acontecia nada. Mas como? Eu não era agora filho de Deus? E como ele não me ajudava e nem me amparava? Acho que foi aí que comecei a questionar sua existência e também se ele era justo. Por outro lado, pensava que talvez meu sofrimento se desse pelo fato de não ter sido aceito por ele. E aí, me revoltava, pois se me diziam que o reino de Deus era dos justos, porque não tinham me aceitado? Teria sido por violar a intimidade dos santos? Ou seria porque o paraíso nunca existiu, e se existia era tão injusto quanto o mundo real? Quero salientar, que falando assim, podem até me taxar de herege ou mesmo um pecador. Mas confesso que não e digo que até tenho uma relação muito boa com o divino. Apenas descobri o meu próprio deus, que logicamente não podia ser tão intransigente, bravo e ameaçador como aquele divulgado pela igreja.

Lembrei agora, minha indignação com o padre que fumava. Ficava pensando que se fumar era pecado, como aquele homem que era representante dos céus podia cometer tal heresia? Comecei até a duvidar que ele realmente acreditasse em Deus. Coitado do pobre padre. Terminou sendo julgado pelo simples fato de ser tão viciado quanto sou agora. O que fica da lição é que não devemos julgar para não sermos julgado. Viram só como eu aprendi? Só sei que a primeira comunhão só me fez mais confuso. Digo isso, porque como nunca gostei muito de “histórias da carochinha”, e na época já questionava alguns dogmas, como por exemplo, a virgindade de Maria. Achava aquela historinha da serpente tão fantasiosa que não conseguia entender como Adão e Eva poderiam ser tão tolos. Outra coisa que me preocupava e despertava a curiosidade era o seguinte raciocínio: Se Caim e Abel eram filhos do primeiro e único casal criado por Deus, e se todos nós somos seus descendentes, como se deu o processo de procriação no mundo? Quantas vezes a Eva teve que engravidar para super populacionar o planeta? Eles tiveram filhas? E essas, engravidaram de seus irmãos? E depois, o processo foi se dando primo com primo? Mas como, se o encesto era um pecado abominável? Acho que a partir deste momento se tem uma pequena idéia da amplitude e complexidade de divagações e questionamentos que transbordavam em minha cabeça de “adolescente diferente” e inquieto.

Como a velocidade de resposta das escolas era menor que a minha necessidade de explicações e justificativas para uma quantidade enorme de divagações, para as quais não conseguia soluções concretas, me enveredei nos livros. Foi uma das melhores fases de minha vida e reconheço o valor fundamental para minha formação e por que não dizer, paz de espírito. Descobri que não estava sozinho e que já não era tão diferente o quanto imaginava. Outras pessoas também pensavam de forma diferente, como eu. E também pareciam sofrer ao buscar por respostas, que muitas vezes contrariavam verdades consolidadas cientificamente ao longo dos séculos. Imaginava por exemplo o quanto seria tolo da parte de “Deus” criar um universo tão extenso, com nove planetas flutuantes e soltos no ar, onde só em um existiria vida. Também não me satisfazia à idéia de termos vindo do pó. Preferia a descendência dos macacos. E olha que nem conhecia o Charles Darwin e sua teoria da evolução das espécies. Isso não se falava nas escolas. Acho que era considerado revolucionário demais, e revolução era coisa de comunista.

Certo dia ao contemplar a mansidão do mar e perceber que um navio ia em direção ao horizonte pensei: por onde ele seguiria? Na minha visão o mundo acabava ali. Então, descobri nos livros que o mundo era redondo e que o horizonte representa apenas o limite de nossa capacidade visual a partir de uma determinada perspectiva. Mas como o navio não afundava? Depois, como um avião tão pesado se tornava mais leve que o ar e conseguia alçar vôo e cruzar os ares levando pessoas de um lado para o outro? Como ligar um equipamento em uma tomada elétrica e visualizar uma imagem, um fato, que acontecia há milhares de quilômetros? Foram os livros que me mostraram que para tudo existe uma lógica e uma teoria, que baseada em cálculos numéricos precisos tornava o homem capaz, inclusive de chegar à lua 9foi em que ano mesmo?). E eu que pensava que os bebes eram trazidos por cegonhas bondosas, e que papai Noel cruzava os ares num carrinho de trenó. Quanta inocência será que cabe na cabeça de um adolescente?

Acho que comecei minhas leituras por alguns clássicos da literatura moderna. Admirável Mundo Novo me deixou perplexo com a teoria dos clones. Para mim, era um livro revolucionário e a frente de seu tempo. Depois vieram Eram os Deuses Astronautas, que confirmou minha suposição em relação à vida em outros planetas; tentei ler O Capital de Max e percebi que não estava preparado, pois não tinha base suficiente. Voltei às ficções científicas, entre elas, Cavalo de Tróia, que conta outra história de Jesus. Segui pelos romances “água com açúcar” e elegi Sidney Sheldon meu autor favorito (não é o que fazem hoje com o Paulo Coelho?). O Outro Lado da Meia Noite é inesquecível e confesso que de certa forma me identifiquei com a Noele Page. Tanto que achava que quando me casasse e tivesse uma filha, ela teria o mesmo nome. É engraçado como a gente cresce achando que seguirá os mesmos caminhos dos pais e adultos próximos. Assim, cresci também achando que um dia me casaria com uma linda jovem e que com ela teria filhos. Imaginava até que iria trabalhar para sustentar a família e viveríamos felizes para sempre. Hoje tenho a certeza de ter entendi o conceito de construção social. Mas, voltando as minhas “mil e uma viagens submarinas” (é de Júlio Verne, não é?) depois li Um Estranho no Espelho, Nunca é Para Sempre, O Céu Está Caindo, A Herdeira, e tantos outros, até perceber a regularidade da escrita e recorrência do estilo fácil utilizado pelo meu querido autor (coincidência novamente com Paulo Coelho?). Assim, enveredei pelos mistérios e crimes de Ágatha Kristie e seu detetive infalível “Poirot”. O Caso dos Dez Negrinhos, para mim é o melhor, depois O Martelo Amarelo e mais um bocado que adquiri e formei uma considerável coleção. Dela, fui para Harold Hobbins e sua 79 Park Avenue. Pense no dramalhão, só não era mexicano porque se passava nos Estados Unidos. Mas tirando a velocidade da escrita, em muito se parecia com o Sidney Sheldon (ou com Paulo Coelho?).

O interessante da leitura é a possibilidade de conhecer o mundo. E sob várias óticas, dependendo do autor. Começava a gostar de perceber como cada pessoa podia ver um mesmo local de forma diferente. Enquanto alguns salientavam a boemia e a riqueza arquitetônica de uma Roma ou Veneza, por exemplo, outros por sua vez, às vezes salientavam as sujeiras e a falta de organização de uma mesma cidade. E assim, percebi que tudo na vida depende do ponto de vista de quem ver e descreve determinado fato. Encontrei nos livros as possibilidades que precisava e dispunha para rodar o mundo e conhecer novos horizontes. E isso é extremamente fantástico e disponível a todos (será mesmo? Talvez seja melhor perguntar ao Ministro da Educação ou ao Secretário de seu estado, de sua cidade...).

Depois de toda essa canseira, correndo com os personagens por países distantes e nunca visitados, resolvi voltar e conhecer meu país através da nossa literatura. E assim me deliciei com a Iracena dos lábios de mel, Senhora, O Tronco do Ipê e A Alma de Lázaro, do José de Alencar. A Mão e a Luva, de Machado de Assis, era uma excelente crônica, porém detestei A Morte de Brás Cubas e sua frase celebre: aos perdedores as batatas. Menino de Engenho e Fogo Morto, de José Lins do Rego, deve ser lido por todos. Devorei algumas obras de Jorge Amado, entre as quais Tocaia Grande, Tereza Batista Cansada de Guerra, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Capitães de Areia. Considero esse, excelente e fundamental para quem é da área social, e que, aliado as obras do pernambucano Nelson Rodrigues, entre os quais Bonitinha Mas Ordinária, O Beijo no Asfalto e Perdoa-me Por te Trair, proporciona uma excelente reflexão sobre a hipocrisia da sociedade e da família brasileira burguesa.

Também li O Cortiço, de Aluisio de Azevedo e Maria, Maria, que não relembro o autor. De Raquel de Queiroz, As Três Marias. E era engraçado ver depois esses romances em forma de novela. Muitas vezes os personagens que imaginava em nada se pareciam com os da ficção, e mais uma vez me confirmava a teoria do ponto de vista individual. Retornei aos autores estrangeiros com Volte Para Casa Piter e Querida Mamãe, que também não relembro os autores, mas que eram autobiografias; O Mundo Transparente, de Irving Wallace; O Maior Vendedor do Mundo, de O.G Mandino; e o inesquecível Retrato de Dorian Gray, do Oscar Wilde, me foram livros inesquecíveis. Também conheci alguns que classifiquei como de auto-ajuda e melodramáticos, tais como Pollyanna e O Menino do Dedo Verde; o livro das misses, O Pequeno Príncipe, é quase obrigatório porque afinal “somos responsáveis por aquilo que cativamos”. Fernão Capelo Gaivota, com seu vôo cada vez mais alto até se espatifar nas pedras, trás uma bela mensagem de perseverança e desafio aos limites (por favor, não me levem a sério), e por fim, para fechar a coleção, o Deus Negro, do Neimar de Barros. Este último de uma estupidez absurda e princípios morais equivocados. Os livros também têm esse poder de proporcionar pontos de vista totalmente diferentes dos nossos. Hoje entendo como positivo, mas confesso que na época suas colocações excludentes me causaram grande desconforto. Alguém conhece esse livro? De qualquer forma aconselho a não perderem seu tempo com tal leitura. Garanto que vocês sobreviverão melhor sem ele, mas lógico, isso é o meu ponto de vista

Outra coisa importante que aprendi com os livros foi formar minha própria opinião sobre determinadas coisas e fatos. Quantos livros li questionando determinados posicionamentos e colocações dos autores. Em determinados momentos chegava mesmo a duvidar do relato ou ainda pensar outras formas de resolver os problemas. Isso nos leva a pensar e pensar é sempre positivo e enriquecedor (lembrem que a gente vale o quanto pensa). Sei que também adorava os livros de terror e suspense. O que mais me marcou foi “Damein, a Profecia”. Eram três livros que contavam a história do filho do anticristo. Lógico que li os três. Acho que tenho uma queda pela vilanice. Fiquei tão impressionado, e fascinado ao mesmo tempo, que procurava ver no espelho se tinha o símbolo 666 no couro cabeludo. Imaginava que como tinha nascido no dia seis do ano de sessenta e seis, poderia ter também o número da besta. Legal, não é? Mas, de modo geral como me achavam metido à besta, terminei por me satisfazer de certa forma.

Na verdade acho que todo esse período me foi de extrema riqueza, contribuindo inclusive, para facilidade que acredito ter na escrita. Ah, por fim, não poderia esquecer nosso escritor maior, o Paulo Coelho! Sentiram firmeza na exclamação? Será que alguém poderia me explicar a febre que se deu depois do Alquimista? Acho que só isso realmente justifica tanto sucesso. Ou será o nível da educação brasileira? E olha que eu, como todo bom brasileiro, já li também Verônica Decide Morrer e Cinco Minutos. Tentei até lê aquele que fala do caminho de Compostela, mas confesso que no meio da estrada me deu um enjoou que até pensei que estava grávido. Para evitar maiores celeumas prefiro não tecer maiores comentário e apenas me limitar a dizer que não gosto do estilo. Talvez se perdesse menos tempo lendo aquelas coleções tipo Sabrina e tantas outras que existem ou existiram por aí. Mas tudo bem, o que importa é que ele é membro da Academia Brasileira de Letras e isso já o torna um grande escritor, não é mesmo? Mas, por outro lado, se considerarmos que o José Sarney também é titular de uma daquelas cadeiras... Bom, é só meu ponto de vista. Melhor parar por aqui, afinal não sou nenhum especialista em literatura e espero que entendam que falo apenas como leitor.

Já nas aulas, detestava matemática, mas me virava como podia. Gostava de português e ciências. As descobertas me fascinavam. Em determinados momentos começo a rir ao lembrar que fazíamos provas para passar em disciplinas como religião, moral e cívica, OSPB. E viva os militares. Hoje entendo que não podia ser diferente e agradeço aos coronéis e todas as patentes do poder, por terem, de certa forma, tentado destruir o trabalho que meus pais e irmãos tiveram em me fazer aprender a pensar por mim mesmo. A disciplina era ensinada pela força e acredito que nunca houve realmente interesse do Estado em educar a população. Não estamos vivendo esse mesmo processo nos dias atuais? Manter o povo não informado garante a manutenção do poder burguês, não é mesmo? Mas felizmente a ditadura acabou (Será?). Mas deixemos as conjecturas políticas e sociais para outro momento. Lembro apenas que éramos um país de futuro. O Brasil sempre foi “um pais que ia prá frente”, como já dizia a canção, mesmo sem nunca ter saído do lugar (passamos quanto tempo mesmo sendo classificados como país em desenvolvimento?).

Não liguem, acho mesmo que devo ter sido um adolescente muito chato. Talvez por isso, minha diferença também tenha se destacado na nova escola. Agora eu era um adolescente fresco demais e que só conversava com as meninas. Acho que em toda a escola só existiam cinco alunos do sexo masculino. Dois deles eram maiores que eu, mais fortes que eu, e logicamente menos inteligentes que eu. Eram os lideres da bagunça e não tinham vindo em busca de novos conhecimentos, mas sim, transferidos de outras escolas que os expulsaram. Tinha um garoto mais novo que eu e com um nível de educação compatível com o que julgava necessário para estar numa escola como aquela. Não esqueçam que tinha vindo do limitado e subalterno mundo dos subúrbios. E por mais que não me enquadrasse no modelo de subjugação, tinha introjetado alguns traços de submissão e inferioridade em relação à burguesia. E olha que o Brasil é um país para todos e que todos somos iguais perante a Lei (já leram isso na Constituição? E acreditaram?). Para mim, aqueles garotos eram burgueses, logo, de certa forma, se encontravam acima de mim. Eram superiores em tudo, inclusive na esperteza e malandragem. O quarto garoto era como se diz no popular, “tapado de pai, mãe e madrasta” e não conseguia me relacionar com ele. Só me restaram o garoto mais novo e as meninas.

Meu inferno começou a mudar no final daquele ano. Os dois grandões foram reprovados e ficariam em outra turma. Segui com meu pequeno companheiro para a turma mais elevada. Aqueles já não tinham tanta superioridade em relação a mim. Sabiam menos que eu. Precisava de aliados, por isso ensinava a meu amigo as matérias e assuntos que não conseguia aprender. Na verdade não só por isso, mas porque também gostava realmente dele, e hoje me pergunto qual terá sido seu destino. Engraçado é que o seu nome era Jerry e eu pensava que era por causa do desenho. Depois concluir que seus pais deveriam ser fãs do Jerry Adriano, que era cantor. No segundo ano, novos alunos e novas amizades. Definir as pessoas de quem me aproximaria. Tinha uma garota carioca. Não sabia como eram os cariocas e achava que o rio de Janeiro era muito distante e muito desenvolvido e rico (coisa de nordestino). Como ela era diferente, parecia confirmar minha hipótese. Era moderna e comunicativa, criou um grupo de teatro e começou a ensaiar Os Saltimbancos, obra de Chico Buarque. Ia aos ensaios, muito mais interessado na carioca do que no teatro. Era a primeira vez que me apaixonava. Era o tão falado amor platônico dos tantos livros que li. Queria estar perto dela e logicamente fazer parte daquele grupo.

Aos poucos fui estabelecendo contatos e quando precisaram de uma substituição, entrei no elenco. O espetáculo foi sucesso na escola. Descobrir o valor dos aplausos e definir que queria aquilo para mim. Mas a carioca era centralizadora e liderava o grupo, sem grandes possibilidades de troca ou negociações. Não haveria grandes espaços para mim e logicamente não queria ser apenas um integrante de elenco. Outra integrante tinha escrito um texto. Não lembro bem o enredo, mas acho que era sobre uma tribo indígena. O grupo forçou uma votação e mesmo sabendo que não me restaria personagem, pois que todos eram femininos, votei contra a carioca. Queria desafiá-la e consequentemente destituí-la de um lugar que desejava. O novo texto foi aprovado e ela reduzida a um papel secundário. A autora tornou-se a diretora do espetáculo e tornei-me seu melhor amigo. A essa altura já achava a pequena carioca insuportável e pedante.

Em seguida sugeri a montagem de Monica e Cebolinha no mundo de Romeu e Julieta, texto de Ziraldo. Interpretei meu primeiro grande personagem principal, o Cebolinha Romeu. Fazia agora, parte do primeiro elenco. Destacava-me na escola e despertava a admiração de algumas professoras e também de alguns alunos. Eu era conhecido e reconhecido. Mas não só por causa do teatro, é que também diziam que eu desenhava bem. Cresci de certa forma ouvindo isso. Lembro que até pintei um painel enorme, com uma imagem sertaneja, com a oração de São Francisco por cima. Isso a pedido da temida vice-diretora de olhos violetas. Depois montamos O Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado, e dividi a cena com a carioca. Estávamos no mesmo patamar. Éramos os personagens principais, sendo que agora era também co-diretor. Foi o auge. Descobria que conseguia chegar onde queria. Fazia-se necessário apenas ser paciente e estratégico. E isso eu estava aprendendo aos poucos.

Acho que deixei tomar pela vaidade e no ano seguinte fui reprovado. Tive que refazer meus planos e precisava recuperar meu status de inteligente, que por hora estava ameaçado. Montei um segundo grupo de teatro, e agora tínhamos uma competição. O primeiro grupo porém, foi desfeito e alguns integrantes se incorporaram ao meu, menos a carioca, claro. Seria demais para ela. A partir daí me tornei não apenas o diretor do grupo, mas o próprio dono. Escrevia os textos, dirigia e logicamente protagonizava os espetáculos. Fiz do teatro escolar meio reino. Ninguém mais me incomodava, afinal, eu me tornara referencia e ganho o jogo. Agora dava as cartas e mantinha sobre controle os inexperientes e jovens atores. Penso que na verdade teria sido um excelente aprendiz de ditador.

Aquela escola foi especial para mim. Foram quatro anos de coisas boas e de muita aprendizagem. Foi onde me apaixonei sucessivamente pela garotas mais fortes de minhas turmas e onde também dei meu primeiro beijo de boca. Sempre tive atração pela força (será que isso é simbólico?). Descobertas a parte, nunca poderia pensar que minha vida seria tão diferente daquela imaginada naqueles anos. Tantos planos, tantos sonhos vividos juntos, com tantos amigos. Promessas de amizades eternas. Nunca mais reencontrei nenhum deles, e acho mesmo que hoje não os conseguiria reconhecer. São os rios das vidas de cada um que correm em destinos opostos. Uns em maiores velocidades, outros em águas mansas. Acho que naquele final de ano, meu rio correu novamente em alta velocidade e me levou mais uma vez pra longe. Fui aprovado na Escola Técnica e fechei um ciclo coroando uma história de sucesso. História que aprendi a escrever com minhas próprias mãos, e que como eu, se fazia mais uma vez diferente da história de tantos outros.

A escola técnica federal representava outro mundo, outra história. As aulas eram mais elaboradas em conteúdo, os professores mais bem preparados. Era educação de qualidade, salvo as exceções de alguns profissionais, que sem querer ofender, correspondia perfeitamente às representações sociais que se tem do funcionário público. Tinha-se certa liberdade para decidir sobre quais disciplinas pagar em cada período. O ensino era moderno, as salas amplas e se podia sair da aula sem precisar pedir permissão. Fui bolsista e de certa forma ingressei no mundo profissional. A partir daquele momento comecei a desejar a independência. Estava pronto para ser dono do meu nariz e tinha ansiedade em me “profissionalizar”, sonho de todos daquela época.

A curiosidade agora não era só cientifica, mais também sexual. Como dizem os grandes estudiosos, que para tudo encontram justificativas biológicas, os hormônios gritavam e a sexualidade era um terreno desconhecido a ser explorado. Antes dos quinze anos fui violentado. Descobrir as dores que acompanham as descobertas práticas. As teorias são sempre mais fáceis, porém menos didáticas, pelo menos era no que acreditava. Confesso que hoje tenho outra percepção e compreensão a respeito dos abusos sexuais. Na época não existia estatuto da criança e do adolescente, e não se tinha como fazer denuncias. Também, como denunciar? Para quem contar? Não se falava de sexo, e a noção de pecado se referia diretamente as práticas desviantes. Mas o que eram mesmo práticas desviantes? Independente disso, o que fica realmente da experiência é o peso que a vitima é obrigado a carregar e a suportar. A dor física e momentânea parece dilacerar não só o corpo, mas principalmente a alma. O sentimento de culpa por ter procurado por algo “errado”, para o qual, com certeza não se estava preparado; o medo de ter cometido um pecado e por isso ser condenado a queimar nas chamas do inferno; a dor abafada e sufocada pela vergonha; o sentido de desonra; e acima de tudo, a revolta por ter sido violado, subjugado e reduzido ao nada, já seriam bastante para acabar ou desmoronar uma pessoa madura.

Mas o que pensar de um adolescente despreparado e imaturo? Sei que a dor física é passageira, pois que o corpo encontra formas para a cura. Mas quando falo de dor, me refiro a uma sensação que se traduz num misto de ansiedade, angústia, medo, tristeza, impotência e solidão que se transforma em sofrimento profundo. Uma dor que não cessa. Uma dor que ressurge a cada nova lembrança. Dor que se intensifica toda fez que pensamos ou desejamos novas experiência sexuais ou afetivas. Uma dor que não passa com remédios e não se cura em curto prazo. Só a maturidade te leva ao perdão, primeiro de você próprio e por último do agressor. E confesso que só esse perdão foi capaz de diluir a mágoa que me acompanhou por anos a fio. Neste sentido, acho que mágoa é um sentimento extremamente nocivo. É muito mais forte que o ódio, que ao menos te motiva a vingança. A mágoa ao contrário parece te afundar num poço de impossibilidades e incompetências.

Descobri de uma forma cruel que nem todas as pessoas eram boas em essência e que no mundo do sexo, o jogo de poder muitas vezes gera muito mais prazer do que o próprio ato em si. Foi assim que descobrir as emoções e aprendi a controlá-las. Acho que isso me levou a racionalidade e hoje consigo perceber que de certa forma tal experiência se tornou fundamental para o meu crescimento pessoal. Não que a considerasse positiva, mas porque era uma parte da minha história que não poderia ser apagada. Não teria como negar para mim mesmo, então passei a vê-la e tratá-la como simples tragédias da vida, das quais não estamos livres. Assim, encontrei formas de sobreviver, de me manter integro e inteiro, e dessa forma, me preservar. Sabia que o rio estava prestes a mudar novamente o rumo de minha vida. Tinha um futuro de felicidades e descobertas, menos ou talvez igualmente dolorosas pela frente. Então descobri que podia inventar minha própria correnteza. Iniciei o curso técnico e dois anos depois me apaixonei verdadeiramente por alguém com quem convivi por vinte e um anos de minha vida. Uma das pessoas mais belas e importantes em toda a minha vida. Foram anos maravilhosos e de grande aprendizado. Acredito que também pude ensinar muito, afinal, qualquer relação se estabelece na troca.

Tornei-me adulto antes do tempo. Claro que fiz grandes amizades, chorei as despedidas dos que ficaram atrasados, e refiz promessas de novas amizades eternas. Sempre fazemos isso e depois de um tempo esquecemo-nos de cumprir. Lá não fiz teatro, mas pratiquei esportes. Participei de jogos escolares e cheguei mesmo a ganhar medalha de prata nos quatrocentos metros rasos. Incrível imaginar que de vez em quando reencontramos grandes ex-amigos e percebemos não ter mais algo tão incomum, e que cada um seguiu seu rio. Ao terminar o curso técnico comecei a trabalhar e passei a ser definitivamente responsável por mim mesmo. Era a tão sonhada autonomia. Era adulto e agora acessaria outros mundos. Faria novas descobertas e viveria novas experiências. Conheceria milhares de pessoas com quem trocar conhecimentos.

Em poucos meses me tornei chefe pela primeira vez. Não tinha ainda completado dezenove anos e assumir talvez um dos maiores desafios de minha vida. Comandei um grupo com mais de vinte homens adultos, casados e moldados numa cultura machista. Não admitiam o fato de ter que responder a um garoto. Mas eu já era adulto, só eles que não percebiam. Eu tinha certeza disso. E precisava ter. Eu era diferente, lembram? Era preciso crescer rápido e me tornar cada vez mais forte para enfrentar os desafios da vida. E assim, se foram os três primeiros anos de minha vida profissional.

Apresentei meu primeiro trabalho científico num seminário internacional, relatando a experiência institucional da campanha de prevenção a AIDS. Estávamos no inicio dos anos oitenta e a “peste gay”, como proclamavam os católicos fervorosos e evangélicos desinformados, se tornava epidemia. Fui convidado por uma empresa concorrente, e lá assumi novo cargo de chefia. Não havia coordenadores de áreas, era-se reconhecido como chefe. Isso gerava status. E por isso, as pessoas matavam e morriam, trapaceavam e investiam todos os seus esforços. Era época de altas inflações, economia desequilibrada e inicio da era da informatização dos processos. Com a década de oitenta o pais passou, talvez, pelo maior processo de transformação que já si viu. Abertura política, queda da ditadura, eleições diretas, movimentos sociais e estudantis, greves sucessivas, mudanças de moedas e a chegada da qualidade total, que trouxe a reengenharia e tantos outros modelos e programas de eficiência que precisavam ser absorvido com um atraso de pelo menos dez anos.

Findava também a minha juventude, pois que chegaria aos anos noventa com vinte e quatro anos. Começaria “os melhores anos do resto de minha vida”. Assistiram a esse filme? Talvez então entendam o que quero dizer. E naquele momento, acho que pela primeira vez me questionei se realmente queria, ou ainda, gostaria de me tornar um adulto. Acho que também pela primeira vez me pesou a falta da juventude real. Diziam que todo mundo passava pela crise dos trinta. Talvez a minha tenha chegado antes. Não sabia quem eu realmente era e o que realmente queria. Faria vinte e quatro anos e já estava casado a sete. Fazia faculdade, e em menos de cinco anos de vida profissional tinha chegado ao cargo de Gerente. Penso hoje, que talvez tenha corrido demais, corrido na velocidade de um rio descontrolado e desgovernado, que avança exigindo mais espaço e abrindo fronteiras. Acho que minha vida sempre foi acelerada. E talvez por isso tivesse a sensação de que tudo tinha sido tão fácil, e que talvez por isso não tivesse sido tão prazeroso. Não sei. Talvez, achasse naquele momento, que simplesmente tinha cansado decorrer tanto, sem nem mesmo saber o real motivo para tanta pressa.

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