quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O RECIFE QUE NÃO SE MOSTRA


UM RECIFE QUE NINGUÉM VÊ

Com uma câmera na mão e uma idéia em mente resolvi me aventurar pelas ruas do Recife. Era manhã quando iniciei minha jornada, que só findou com noite de lua, quando em fim resolvi retornar para casa. E confesso que meu cansaço se mostrou muito mais emocional do que físico. Durante o dia o sol acorda a cidade, e seus raios parecem avisar que se tem pressa. Porém nem todos se guiam pela mesma lógica, pois que é exatamente a hora de se entregar ao cansaço do sono mal dormido. Somente com o raiar do sol dorme-se vigiado pelo povo, e assim corre-se menos riscos. A noite, não se dorme na rua. É preciso se proteger para manter-se vivo. E dormir para muitos significa tornar-se presa fácil da irracionalidade ou perversão alheia. Afinal de contas, vivemos em um país onde se toca fogo em gente que dorme nas ruas. A dinâmica da violência noturna possibilita invasões de corpos, por outros corpos que buscam ou anseiam por prazer e/ou satisfação erótica. É preciso trocar a noite pelo dia, quando tudo se vê, e por isso, sentir-se ilusoriamente mais protegido.

É a noite a cidade torna-se dourada pela lua que parece anunciar a chegada da primavera. Para muito apenas mais uma estação que revela, sobre tudo, a passagem do tempo que não mais se conta. Quem vive nas ruas não soma ou subtrai os dias, pois que isso cabe a quem tem futuro. São dois tempos, dia e noite; são dois mundos, o público e o privado; que habitam uma mesma cidade. Realidades opostas que cruzam vidas (ou sub-vidas) de crianças, adolescentes, homens, mulheres e idosos. Assim é Recife. Assim são, ou estão, suas ruas.

E talvez por acreditar que as imagens falem mais que simples palavras, ou ainda na tentativa de reforçar meu discurso no sentido da urgência na implementação de políticas públicas mais dignas voltadas a garantia de direitos da população em situação de rua, resolvi mostrar o que as lentes de milhares de câmeras que vigiam a cidade, instaladas como medida de prevenção a violência, não registram. Revelar histórias de vidas que não se contam nos jornais ou revistas. Expor a realidade de pessoas que não são vistas, pois que os olhos sociais estão velados de indiferença e ignorância. E por fim, tentar mostrar um Recife que não se divulga ou se fala, mas pelo contrário, se renega a escuridão das noites e do esquecimento.

Proponho então, a todos, um passeio diferente. Pelo mundo dos diferentes e diferenciados. Recife pelas margens, não de seus rios caudalosos, mas pelas margens sociais que se configuram em retratos vivos de exclusão e negação dos direitos humanos. A todos, prazer, pois como bem diz o slogan da atual administração: "A CIDADE É A GENTE QUE FAZ".

Avenida Conde da Boa Vista, principal corredor do Centro do Recife/2010































Um novo olhar sobre as ruas. Av. Conde da Boa Vista, Centro do Recife/2010.







Praça de Alimentação na Rua José de Alencar, que corta a Av. Conde da Boa Vista - Centro do Recife/2010.




Residências de paredes insólitas e tetos invisíveis que se multiplicam pela Av. Conde da Boa Vista, Centro do Recife/2010.



Inicio do dia para os catadores que invadem a cidade. Av. Agamenom Magalhães, Centro do Recife/2010.


Saída para a Rua da Aurora. O mercado informal se institucionaliza como meio de vida e exploração da força de trabalho humano. Centro do Recife/2010.

Homens de tração animal em dignidades de papel. Centro do Recife/2010.







































Pontes e viadutos que não ligam a lugar nenhum, e onde os asfaltos se tornam vias de exclusão. Viaduto da Av. Norte - Miguel Arraes, sobre a Av. Agamenom Magalhães.Centro do  Recife, 2010.

Caos de misérias ou Cais José Mariano, coreedor que se liga a Rua da Aurora. Recife/2010.




Rua do Sol, onde se dorme no escuro. Saída da Ponte Imperador Pedro I (Ponte de Ferro). Recife/2010.



Rua da Matriz, ao lado da igreja da Rua da Imperatriz. Centro do Recife/2010.


Pátio de Santa Cruz, em frente a Igreja Católica. Centro do Recife/2010.

Casarões assombrados e abandonados que não servem de abrigo, mas se transformam em moradias permanentes. Av. Manoel Borba. Centro do Recife/2010.

A noite vigiada. Rua Dom Bosco, onde se localiza o Batalhão de Polícia. Centro do Recife/2010.





O lixo que se recicla é o mesmo que alimenta. Rua Dom Bosco, ao lado de um grande supermercado. Centro do Recife/2010.

O lixo nosso de cada dia e a fome de cada um. Saída para a Av. Conde da Boa Vista, ao lado de uma Rede de Lanchonetes. Centro do Recife/2010.

A fome que ameaça quem chora a noite. Frente da Rede de Lanchonetes, ao lado da Igreja Prebisteriana, na Av. Conde da Boa Vista. Centro do Recife/2010.











Lixo social ou lixo urbano? O que se joga nas ruas. Parada de ônibus na Av. Conde da Boa Vista. Centro do Recife/2010.

O sono "embalado" pela exclusão social. Av. Conde da Boa Vista, abaixo da marquise de meu prédio. Centro do Recife/2010.

Um dia não termina nunca. Av. Conde da Boa Vista, abaixo de meu prédio. Centro do Recife/2010.


O sono dos justos em territórios de grandes injustiças sociais. Av. Conde da Boa Vista, Centro do Recife/2010.

Ps. Minha dificuldade em lidar com as novas tecnologia, ainda me impede de corrigir e atializar as datas digitais.
FOTOS: Epitacio Nunes - 22.09.2010.




terça-feira, 21 de setembro de 2010

POPULAÇÃO DE RUA - VÍTIMAS DO DESENVOLVIMENTO E MISÉRIA HUMANA



















Noite na Av. Conde da Boa Vista, Recife-PE/2010

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CENTRO DO RECIFE: Até Quando?

São vinte e duas horas e a cidade se arruma para dormir. Aos poucos e lentamente eles chegam carregando suas casas. São nômades, como os antigos ciganos. Homens desfigurados, maltrapilhos e sujos. Mulheres bangelas e despenteadas. Adolescentes desnudos vagando aéreos. Crianças soltas no mundo. Emaranhados de restos humanos aglomerados em calçadas frias e sujas. Sombras de almas amontoadas sobre caixas de papelão. Resíduos de uma sociedade insana e injusta, que jogados a sarjeta, habitam as noites do Recife. Como ratos se alimentam dos restos, vasculham lixos em busca das sobras. Homens velhos e jovens, mulheres lesadas de beleza e crianças condenadas pelo asfalto.

A população em situação de rua configura-se hoje como um dos maiores problemas sociais do Recife, e do Brasil. Não é diferente por onde passei. Em São Paulo, a Praça de República mostra-se como exemplo de incivilidade; Nas ruas paralelas ao Copacabana Pálace, no Rio de Janeiro, as diferenças sociais gritam aos olhos; nos bancos da Praça 15 de Novembro, em Santa Catarina, bancos viram camas duras e incomodas. De norte a sul, ou como queiram do Oiapoqui ao Chui, milhares de pessoas fazem das ruas seus espaços de convivência e sobrevivência. Então, pensaram muitos, não é só no nordeste que existe fome? Não, porque a desigualdade social é o mais cruel retrato de uma sociedade. E exclusão social não tem naturalidade, mas nacionalidade. Não é natural de uma região, e nem fruto de classes sociais menos favorecidas economicamente. Exclusão e segregação social são resultados da desigualdade resultante da mau administração, gestão e aplicação dos recursos públicos.

Nos últimos vinte anos tem se verificado crescente preocupação com as questões da violência na sociedade brasileira. Tem também se percebido que os acelerados processos de industrialização e urbanização, ocorridos no final do século XIX trouxeram em seu rastro a eclosão da violência urbana. Neste sentido, registros sobre a década 1920 já evidenciavam grande inquietação social diante da violência através das ações e intervenções públicas voltadas ao combate da marginalidade dos pobres (Rabelo; Melo & Campos, 2006). E aqui, marginalidade não se traduzia como margem, onde habitamos ainda hoje os excluídos, mas como perigo oferecido pelos tantos e quantos “vagabundos” que agrediam a sociedade burguesa.

Mas há de se entender que com o passar dos tempos, o recrudescimento da miséria, o aumento vertiginoso do desemprego e a crise de valores em nossa política, contribuíram de forma direta ou indireta para a criação de uma espécie de “bode expiatório” pelo qual se justificaria as mazelas do país. Para Sarti (2005), era preciso outorgar a um outro, estranho e diferente, nossas responsabilidades pela violência. Ao Estado faltavam respostas nas quais pudesse esconder sua ineficiência enquanto gestão de direitos e vivencia garantida da democracia. E foi neste contexto, quase que “naturalmente” o pobre passou de forma automática a ocupar um lugar central nas discussões acadêmicas e dos governos, possibilitando a definição de um perfil para os agentes da violência (ADORNO, 2002). A concepção de pobreza tornou-se sinônimo de marginalidade, que passou a ter cara, nome, endereço e identidade. Estudos estatísticos, embora em sua maioria não oficiais, divulgaram as características do “sujeito marginal” a ser combatido: adolescentes e/ou jovens do sexo masculino, pobres, e em sua grande maioria negros ou mestiços que habitam as ruas, comunidades e favelas dos grandes centros urbanos.

Uma reflexão mais atenciosa no entanto evidenciará que o fenômeno da violência urbana apesar de não ser fato recente em nossa sociedade, vem a muito contribuindo para a estigmatização e exclusão social de um grupo específico, formado por crianças, adolescentes e jovens, de ambos os sexos, que sem grandes possibilidades, ou dificuldades no processo de inserção relacional, encontram nas ruas as possibilidades e espaços de sobrevivência. Robert Castel (In Contijo e Medeiros, 2009) salienta que  é preciso entender a situação de marginalidade vivenciada por diferentes indivíduos e grupos sociais de forma dinâmica, através dos eixos do trabalho e da inserção relacional. Dentro dessa premissa, no referente às crianças e adolescentes em situação de rua, evidencia-se uma reflexão do processo de intensificação da vulnerabilidade a que estão submetidas, e que culmina num processo de desfiliação verificado entre milhares de famílias brasileiras vitimas da extrema desigualdade social, classificados e reconhecidos como pobres.

Para Piter Spink (2006) a denominação ou categorização social “ser pobre” é uma expressão infeliz, e carrega em si o risco de transformar a pobreza, que é um processo complexo e que agrega, ao mesmo tempo, aspectos econômicos, sociais e políticos, em um atributo individual e focal. Por isso, é preciso entender a pobreza não somente como resultado das situações de insuficiência de renda ou de meios para adquirir gêneros e bens de consumo. Antes, porém, é preciso pensá-la numa perspectiva de ausência de serviços imprescindíveis ao bem-estar social, tais como: acesso a educação de qualidade, atendimento médico-hospitalar, moradia digna, água potável, coleta de lixo, trabalho e segurança pública. Para o autor, num sentido mais amplo, a pobreza se relaciona diretamente ao campo dos direitos – inclusive direitos constitucionais – e se traduz, assim, na igualdade de oportunidades e de acesso aos bens e serviços, sejam eles públicos ou privados.

Nóbrega e Lucena (2004) salientam que no rastro do equivocado e pernicioso entendimento coletivo, a categoria "meninos de rua" foi forjada na modernidade, passando a circular nos anos 80 como marco teórico para a classificação de um grupo social emergente nas grandes metrópoles de países da América Latina, incluindo-se Brasil, México e Colômbia. E uma vez, utilizada como código de comunicação social, estabeleceu a identificação de um novo foco para estudos nas áreas da psicologia, epidemiologia, social, história, entre tantas outras, que geraram não apenas mudanças de nomenclaturas, mas de explicação histórica do fato (Nóbrega e Lucena, 2004). Tanto que em 1981, o então assessor sobre questões relacionadas a crianças abandonadas e sem famílias, do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, Piter Taçon, publicizou mundialmente, pela primeira vez, uma estimativa aproximada em torno de cinquenta milhões de crianças nas ruas das grandes cidades da América Latina, que classificou como “descendentes do milagre econômico e da miséria Humana”.

Foi na década de noventa, porém, que Rosemberg (1994) introduziu pela primeira vez no Brasil uma mudança considerável na terminologia "menino de rua", substituindo-a por "crianças em situação de rua", propondo a desfamiliarização de tal processo de exclusão. Consolida-se assim, o entendimento de que o fato de “estar na rua” não se configura enquanto questão natural ao ser humano, mas ao contrário, apresenta-se como fator situacional. Ao substituir o “de rua” por “situação de rua” nega-se e invalida-se o recorte pautado na origem do sujeito, tão comum nos estudos e políticas públicas, para evidenciar-se uma situação momentânea, logo, passível de mudanças.

Num mesmo sentido, recorro mais uma vez a Abramovay (2002) para reafirmar que é preciso entender que “somente a partir da associação da vulnerabilidade com a desigualdade social e a segregação juvenil, tem-se conseguido esclarecer cenários das complexas nuances de relação juventude e violência”. E digo mesmo, ser preciso aceitar e conceber essa relação como produto de dinâmicas sociais que se respaldam em desigualdade de oportunidades, segregações, inserção deficitária na educação e no mercado de trabalho. A violência então pode ser compreendida como resultado direto da ausência de possibilidades de lazer e formação ética e cultural pautadas nos valores de solidariedade e de cultura de paz. É preciso criar novos parâmetros para a  educação de nossos jovens, distanciando-nos dos modelos que vinculam esforços a êxitos. 

Nessa mesma perspectiva, Castel (2005) avalia que as condições de vida, ou modos de existência social dos diferentes indivíduos e grupos sociais, são determinadas pela associação entre o trabalho e a inserção relacional. Assim, o trabalho tem se configurado para os sujeitos como referência econômica, psicológica, cultural e simbólica na estruturação de suas existências, tornando-se suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Além do trabalho, a inserção relacional também determina as formas de existência social dos sujeitos. E por inserção relacional deve-se entender o processo pelo qual os vínculos estabelecidos pelos sujeitos com os grupos familiar e social, mais próximos, possibilitam o fortalecimento da percepção e do sentimento de pertencimento a uma determinada comunidade.

É preciso então, entender que política pública não pode se configurar como “política para pobre”, como muitas vezes tem se apresentado dentro de uma lógica do “pão e circo”. Acima de tudo é preciso pensar as políticas na perspectiva de condições igualitárias de acesso e direitos. E por isso ínsito que nossos jovens não precisam de “oportunidades” restritas em sentido e significados relacionados a favores ou chances oferecidas pelo Estado, tão comuns nos discursos de gestores públicos e políticos brasileiros. Precisam ter possibilidades de garantias a educação de qualidade, saúde e capacitação profissional para inserção no mercado formal. Igualdades de direitos é o pilar da democracia, e por isso torna-se regra para resolução de conflitos sociais. Educar para não violar, não violentar e mutilar milhares de vidas como as que se espalham e se amontoam nas ruas sórdidas e fétidas de Recife e do Brasil.

Neste sentido, mais uma vez, proponho aos políticos, gestores públicos e sociedade brasileira, refletirem sobre se o que fazemos é política pública, ou na verdade, apenas politicagem com dinheiro público.




sábado, 18 de setembro de 2010

NOVA REFLEXÃO SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM RECIFE

Visão de Minha Janela - Recife/PE, 2010

A POPULAÇÃO DE RUA NO RECIFE: VÍTIMA DO CAPITALISMO?

Andando pelas ruas do Recife, pode-se facilmente observar um grande contingente de pessoas em situação de rua. São verdadeiras famílias que fazem das marquises espaços de proteção e convivência social. De minha janela, torna-se impossível não se indignar com o descaso e falta de atenção para com esse segmento da população. Em plena Av. Conde da Boa Vista, abriga-se uma senhora, talvez na faixa de quarenta a cinquenta anos de idade, negra e obesa, que em meio a papelões, jornais velhos e entulhos enfiados em sacos plásticos parece estabelecer seu espaço de moradia. Enquanto pesquisador, tal referencia torna-se material primoroso para se avaliar a subjetivação envolvida na construção de certas representações sociais. Basta para isso, um olhar mais cuidadoso no que se refere ao comportamento dos transeuntes, onde cada um a seu modo esboçará reações de repulsa, compaixão ou indignação. Mas alheia aos olhares e julgamento, a negra senhora mostra-se indiferente ao tumultuado vai e vem da cidade. Provavelmente possuidora de algum tipo de transtorno mental, parece muitas vezes, agir e reagir como "um animal", que abandonado vaga pelas ruas. Pois que de certo modo essa é aparência que tal situação lhe impõem, ou impôs durante os sucessivos anos em que tem habitado as ruas da cidade. Mas, fato é que certa forma, aquela criatura já mostra-se incorporada ao cenário urbano. Passou a fazer parte do cotidiano recifense e por isso sua situação tornou-se socialmente banalizada.

Então penso, através de que processo incorporamos determinadas situações não comuns e impróprias como aspectos “naturais” e socialmente aceitáveis? Porque conseguimos neutralizar nossa capacidade de se indignar com situações de violência social, a ponto de nos mantermos “inteiros” e passivos diante das condições de degradação humana? Acredito, logicamente, em nossa capacidade natural e humana de adaptação, mesmo às situações adversas e contrárias a nossas ideologias e concepções de justiça e sociedade. Porém imagino que em casos como esse o incômodo social só se torna claro quando nos atinge diretamente. Tentando explicar melhor, diria que, caso essa senhora negra irrompesse algum ataque contra um de nós, ao cruzarmos seu caminho, provavelmente nos sentiríamos agredidos e violentados em nossos direitos. Também tenho observado entre os cidadãos urbanos, certo incomodo quando esta se abriga embaixo de suas marquises, pelas quais pagam para mantê-las limpas dentro de uma lógica higienista. Ou ainda, talvez, quando em meio ao tumultuo das ruas, ela passa a ocupar um espaço maior do que o devido. Neste aspecto a sujeira das ruas parece incomodar muito mais do que as condições em que se encontra tal indivíduo, que uma vez destituído do lugar de sujeito, perde automaticamente o status de cidadão. Consequentemente, negam-lhe ainda o direito a dignidade. Pois que é a representação máxima de um animal irracional, independente dos motivos ou fatores que o levaram a tal condição. Penso então, que essas são representações fortemente construídas e consolidadas no censo comum da capital pernambucana. E aí, me vem a velha máxima: quem agride e/ou violenta quem?

Essa como tantas outras mulheres, homens e crianças, são relegadas a condição de “passageiros de segunda classe”. Uma espécie de animal inferior, não sociável e improdutivo, e por isso impossibilitado de acessar determinados espaços. A estes são oferecidos, e por que não limitados, as ruas, becos e marquises escuras e sujas. Refletindo melhor dentro dessa concepção, talvez possamos imaginar que apesar de rebaixadas a condição de animais, essas pessoas mostrem-se inofensivas e passivas, o que reforça a idéia da não necessidade em molestá-las. Parte-se do princípio de que não se precisa fazer nada, pois que as coisas já estão arrumadas e organizadas com devem ser. Assim, convive-se pacificamente até que algo, ou alguém, quebre com a ordem e tente sair da marginalidade imposta para acessar outros territórios, espaços ou lugares sociais que não lhes cabem. O conflito então se origina por que as hierarquias precisam estar bem definidas e assimiladas para que se mantenha o equilíbrio social. Nada e nem ninguém pode fugir da regra, que coletivamente estabelecida, torna-se norma social.

Outro exemplo clássico desse descaso e da busca pela manutenção do poder burguês em nossa cidade se dá pelo fato de que a cada sinal de trânsito que separa os principais cruzamentos do centro urbano, burguesia e proletariado se encontram. A tensão torna-se mútua, mas cada qual se mantém no seu espaço e lugar. O sujeito de direito classe média, em sua maioria de pele clara e aspecto saudável, se mantém preso em seu carro de vidros e travas elétricas. Os não sujeitos de direito, representados em sua maioria por crianças e adolescentes de peles não claras, habitam as esquinas munidos de pequenos rodos e garrafas com água. Estes limpam as sujeiras externas da burguesia acuada e "intocável", ou melhor, inatingível. E em meio a milhares de veículos empoeirados, crianças se lançam sobre pára-brisas e janelas protegidas, talvez numa tentativa ilusória de serem notados ou percebidos em suas necessidade de sobrevivência e sub existência. 

Porém, os esforços parecem em vão ou insuficientes, uma vez que no máximo conseguem despertar compaixões aliviadas pelas gorjetas concedidas em esmolas. Assim, enquanto um “brinca” de justificar os trocados, o outro se “purifica” por remunerar a exploração do trabalho humano. A angustia torna-se momentânea, uma vez que o sinal ficará verde em breve e o sujeito burguês poderá prosseguir tanquilamente até o próximo cruzamento. E a cada novo sinal de cruzamento estabelece-se novamente a manutenção da ordem, pautada na desigualdade de poder.

Neste sentido, Rosemberg (1993), chama a atenção para o fato de que nas ultimas décadas tem se observado uma grande mobilização mundial pela ampliação e aplicação dos direitos civis a crianças e adolescentes; e que o desvelamento de condições degradantes, materiais e morais, em que vivem muitas das crianças e adolescentes de países ricos e pobres têm suscitado a indignação e a busca de soluções entre aqueles que defendem a construção de uma terra onde os direitos humanos sejam extensivos aos seus habitantes. Contudo, a autora destaca que apesar desses estudos mostrarem que a violência adulta contra crianças e adolescentes não é fruto das sociedades contemporâneas, torna-se importante que diferentes organizações sociais governamentais e não governamentais, internacionais e intergovernamentais, se esforcem no sentido de denunciar a crueldade e extensão das situações de risco, normalmente relacionadas as situações de violência adulta, coletivas ou individual, concreta ou simbólica, direta ou indireta, vivenciadas cotidianamente por crianças e adolescentes em nossa sociedade. 

Julgo importante também ressaltar que apesar dos resultados e dados colhidos em estudos e pesquisas servirem como objetos de investigação e base para metas de políticas públicas, o esforço em sensibilizar a opinião pública em relação à violência sofrida por crianças e adolescentes em nossa sociedade, tem gerado uma retórica específica, e que no esforço de convencimento, muitas vezes incorpora diagnósticos catastróficos, inverossímeis, distantes da realidade e estigmatizadores de famílias, crianças e adolescentes pobres, além de se mostrarem inadequados para balizar ações concretas e efetivas na garantia de direitos (Rosemberg, 1993).

Por muito tempo, se associou às crianças e adolescentes em situação de rua à imagem e representação social da violência, e num sentido inverso, de vitimas, essas passaram a violadores de direitos dos cidadãos de bem (Souza Neto, 2009). A população de rua tornou-se então estigmatiza como violenta e passível de controle social. Porém Abramovay (2002) destaca, que somente a partir da associação da vulnerabilidade com a desigualdade social e a segregação juvenil, tem-se conseguido esclarecer cenários das complexas nuances de relação juventude e violência. E neste aspecto, digo que logicamente, tal relação precisa ser percebida como produto de dinâmicas sociais que se encontram pautadas na desigualdade de oportunidades, segregações, inserção deficitária na educação e no mercado de trabalho; bem como, na ausência de possibilidades de lazer, formação ética e cultural em valores de solidariedade e de cultura de paz e de distanciamento dos modelos que vinculam esforços a êxitos. 

É neste sentido, que verifica-se que essa combinação de fatores tem sido diretamente responsável por situar os jovens a margem da participação democrática que colabore na construção de identidades sensíveis `a diversidade cultural e à solidariedade por compromissos de cidadania, assim como no fortalecimento de auto-estima e de sentimento de pertencimento comunitário (Abramovay, e tal, 2002). Assim, é preciso entender que a violência juvenil, que tanto se fala e se prega como nociva a sociedade, e natural as camadas populares, nesse contexto, tem muitas vezes representado uma forma encontrada pelos próprios jovens para quebrarem sua invisibilidade e mostrarem sua capacidade em influir nos processos sociais e políticos do país. 

Nessas mesma perspectiva a autora refere que “diante de uma sociedade que manipula canais de mobilidade social e segrega socialmente setores da população, e que, além de não reconhecer, estigmatiza os principais canais de participação juvenil, a violência vem servindo, em alguns casos, para colocá-los nos meios de comunicação e chamar a atenção para sua difícil vida” (Abramovay, e tal, 2002). Por isso, acredito que ao se pensar em políticas públicas voltadas as populações excluídas socialmente, é preciso pensá-las na perspectiva da prevenção, e muito menos no viés da repressão, como muito tem se visto. O fato consiste não em retirar as pessoas das ruas, numa visão de limpeza urbana, para institucionalizá-las em espaços não suficientemente preparados e capacitados para atender as suas demandas e necessidades; mas ao contrário, buscar fortalecer a família e a comunidade para reinserção social em seus grupos de convivência. Até porque, muito já tem se evidenciado, que em algumas situações para muitas dessas pessoas, as ruas se revelam como espaço de muito maior segurança do que seus próprios lares (Souza Neto, 2009). 

Neste aspecto, penso que muito tem se errado na definição de políticas públicas pautadas para atender as necessidades de um sistema capitalista, e consequentemente a manutenção do poder pela hierarquia social. Recorrendo a Engels (2002) fica claro o entendimento de que, “desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, Isto é, da imensa maioria. Cada benefício para uns é necessariamente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra”. Na mesma perspectiva, Teixeira (2009) destaca que as características marcantes do sistema capitalista vêm se estabelecendo desde a época de seu triunfo, em cima de uma lógica onde a classe dominante procura alicerçar sua posição por intermédio de uma ideologia perversa, tendo como único objetivo a racionalização de sua condição política e econômica, e assim, justificar a classe subordinada as razões pelas quais deve aceitar passivelmente tal situação.

Dentro desse prisma, mesmo se considerando que o debate sobre as políticas públicas representa uma temática inserida em muitos campos institucionais no Brasil, não se pode esquecer que o seu aquecimento se deu através do processo de globalização mundial; e que, devido a crise do capitalismo tornou-se preciso encontrar e/ou criar mecanismos que possibilitassem amenizar os efeitos estruturais da crise mundial. Por tanto, neste aspecto, as políticas públicas revelam-se como mecanismo relativamente novo, que usado pelo sistema capitalista tem contribuído significativamente para mascarar as mazelas e a real invisibilidade de um sistema pautado na exploração do homem pelo homem (Teixeira, 2009). 

Ainda segundo Viana  (2006), pode-se entender que “o papel das políticas públicas na perspectiva liberal, caracteriza-se principalmente em políticas compensatórias, considerando a situação como um fato histórico natural, e assim, buscando garantir o acesso dos indivíduos a bens e serviços de satisfação de suas necessidades, num contexto de manutenção e ampliação do modo de produção capitalista”. Seguindo esse raciocínio e em consonância ao pensamento de Teixeira (2009), questiono até que ponto, dentro dessa perspectiva, não se pode pensar que a políticas públicas foram e/ou ainda o são, criadas para “beneficiar” grandes parcelas da sociedade que não tem acesso ao básico necessário para viverem em condições dignas? E ainda reforçando o argumento da autora, saliento a necessidade de se avaliar (ou reavaliar) “o que existe realmente por trás da verdadeira face do capital, que utiliza tais políticas para amenizar e não para de fato erradicar os problemas que afetam as populações exploradas pelo capitalismo”. 

Assim, em clara oposição à concepção liberal, a materialista percebe tais políticas sociais como estratégia da classe dominante para preservar a desigualdade social, uma vez que, ao amenizar os sintomas produzidos pelo sistema, garantem a dificuldade de realização de uma leitura critica da realidade por parte daqueles que se beneficiam com tais políticas, diminuindo assim os conflitos sociais (Viana, 2006).

Por isso, ao analisar a real situação da população em situação de rua de Recife, bem como, o despreparo dos setores competentes para lidar com a problemática, recorro mais uma vez a Teixeira (2009), para propor uma reflexão sobre até que ponto, “não é justamente pela essência excludente do sistema capitalista, bem como por suas sucessivas crises, que se tem pensado as políticas públicas no Brasil”? E até que ponto, tais políticas não tem escondido o único objetivo, manipular a grande parcela da população, possibilitando silenciá-la dentro de um conformismo patológico que tanto interessa a reprodução e a perpetuação do poder?































Ruas do Recife/PE, 2010


REFERÊNCIAS:

Abramovay, Miriam. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas / Miriam Abramovay et alii. – Brasília : UNESCO, BID, 2002.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ROSEMBERG, Fúlvia. O discurso sobre criança de rua na década de 80. Caderno de pesquisa de São Paulo, nº 87 – São Paulo, 1993.




SOUZA NETO, E.N. Entre boys e frangos: análise das performances de gênero dos homens que se prostituem em Recife. Dissertação de mestrado em psicologia. UFPE, 2009.

SOUZA NETO, E.N. PROGRAMA VIDA NOVA – Pernambuco acolhendo a população em situação de rua. Artigo apresentado no Seminário Internacional França Brasil, são Paulo, 2009. www.sescsp.org.br


TEIXEIRA, Dirlância da Silva. O Centro de Convivência Elo de Vida como uma política pública de apóio a dependentes químicos: caracterização, possibilidades e limites. Dissertação de Mestrado em Políticas Públicas - Universidade Estadual do Ceará, 2009.

VIANA, M. Psicologia, Educação e Cidadania. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2006.