quarta-feira, 21 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE -Capítulo III - As Travestis e a Prostituição
















Parada da Diversidade - São Paulo/2009

Travestis: Musas ou Deusas de Minha Rua?

Nos anos oitenta mudei-me do subúrbio para o centro do Recife, mas especificamente para um prédio meio esquisito, localizado no cruzamento entre a Rua da Concórdia e a Rua Marquez do Herval. Durante o dia, o centro da cidade era marcado por grande movimentação de homens, mulheres e crianças que se misturavam aos carros, motos, bicicletas e várias carroças, que se amontoavam e atrapalhavam o tráfego e as lojas de comercio. Essas carroças não eram puxadas por animais, mais sim por homens ou adolescentes, e às vezes até por mulheres ou meninas, que buscavam nas ruas as condições de subsistência e sobrevivência. Catavam papel, latas de refrigerantes ou cervejas, e muitas vezes, buscavam por comida, enfiando as mãos nos lixeiros mal conservados e mal cheirosos daquele corredor comercial. Era um mercado vivo e ambulante, composto por trabalhadores que vinham do metro ou do terminal de ônibus do Cais de Santa Rita. Tinham também os vendedores ou camelôs que circulavam pelas ruas apertadas, gritando seus produtos e seus preços. Assim, o burburinho desenfreado parecia avisar que a cidade nunca dormia, pelo menos naquele trecho, o que de fato acontecia, uma vez que, após o fechamento das lojas outro tipo de comércio se estabelecia no local (Souza Neto, 2009).

Era o “mercado de carnes humanas” que invadia a noite e atravessava a madrugada. Ainda no inicio da década de oitenta verificava-se grande movimentação em torno da Praça Joaquim Nabuco. Em uma das vias, existia um fliperama, antica casa de jogos eletrônicos, que parecem ter antecedido as famosas “Lan House” dos dias atuais. Tinha também o Cinema Moderno, onde hoje se encontra instalada uma loja de eletrodomésticos. Em um dos lados da praça fica o Restaurante Leite, um dos mais antigos e tradicionais, e que se mantém em funcionamento, mesmo com todo o processo de reestruturação urbanística e decadência local. Na outra extremidade da praça, basicamente na orla do Rio Capibaribe, que separa o Bairro de São José e o Bairro da Boa Vista, ainda encontra-se instalado o antigo “bem me quer”, ou mais conhecido como “quem me quer”. Uma espécie de parapeito em concreto, que forma um baluarte ao redor de todo o rio, se estendendo a sua outra margem que bate as portas do antigo Cais José Mariano.

Lembro que tantas vezes atravessei a praça, sem mesmo entender o que faziam aquelas pessoas, que por horas permaneciam sentadas, ou andando em círculos. Eram homens jovens e velhos e algumas mulheres, que também permaneciam paradas junto as paredes dos casarões antigos que povoavam o corredor comercial da concórdia. Alguns eram tão assíduos que se tornavam a mim, de certa forma, conhecidos de passagem. Tempos depois descobri que aquelas mulheres eram prostitutas, que ao cair da tarde chegavam a seus postos atrás de clientes. Então imaginei que os homens da praça seriam seus fregueses. Lerdo engano, pois que eram, de forma simplista, seus concorrentes.

É que naquela época já se configurava o conceito de territorialização da prostituição em Recife, fato desconhecido por mim e por muitos desavisados que não conseguiam de fato enxergar a cidade, mas apenas a viam, sem perceber suas mazelas sociais (entendem agora o conceito de invisibilidade social?). Explicando melhor, verificava-se que o trecho que compreendia a Praça Joaquim Nabuco até o cruzamento da Rua da Concórdia com a Rua Tobias Barreto, se consolidava o que se pode chamar de territórios da prostituição, que se dividia de forma muito organizada em subcategorias. Assim, na praça e fliperama circulavam os garotos de programa; do inicio da concórdia e transversais, como Ruas das Flores, abrangendo ainda Rua da Palma e Rua da Glória, eram as mulheres que batalhavam; e da Marques do Herval até a Tobias Barreto, desfilavam as travestis (Souza Neto, 2009). E neste sentido explico o uso do artigo feminino, por ter aprendido a me guiar pelo viés do gênero e não do sexo biológico. Logo, nossas identidades sexuais se estabelecem a partir do que nos reconhecemos, o que nos leva a entender as travestis como pessoas do feminino (esse ainda hoje é um excelente mote para acalorados debates acadêmicos e socias, claro).

Mas de minha janela podia vê-las em mini vestidos, com bundas e seios a mostra. Eram verdadeiras mulheres, extremamente, e muitas vezes exageradamente, maquiadas e arrumadas. Muitas eram loucas, mesmo tendo a pele morena ou negra. Autodenominavam-se mulheres e adotavam trejeitos e entonações vocais (se assim se pode chamar) no intuito de evidenciar o feminino. A enorme quantidade de adereços, entre pulseiras, brincos, colares, anéis e cintos, sinalizavam que ali não estavam mulheres comuns. Eram mais que isto. Eram seres “mitológicos” ou “lendários”, meio masculino, meio feminino, que perpetuavam fantasias e medos nas cabeças dos homens e a indignação das mulheres de família (Souza Neto, 2009).

Lembro-me de uma dessas louras, que passamos a chamar de “pentinho” devido ao habito de pentear os longos cabelos constantemente. Eram jovens em sua maioria, e logicamente sintonizadas com a última moda. Então se tornava comum vê-las em pequenas vestidos no melhor estilo “mate o velho”, ou pequenas blusas, tipo bustiê, que moldadas à base de “elastex” permaneciam justas e salientavam os seios. Esse tipo de indumentária facilitava ainda o movimento de sobe e desce, facilitando a exibição dos seios e bundas bombados (como se chamava na época) a base de óleo de avião, aos clientes que passavam andando ou em seus veículos.

Muitas vezes, elas passavam a noite inteira dando “pinta” e “fechando”. Não estavam ali atrás de clientes, mas talvez, apenas para se divertirem, conversarem ou desfilar a roupa nova. Iam as ruas pra se sentirem gente, livres e donas de suas próprias vidas, e isso só a noite podia lhes oferecer. A noite de certa forma, é sempre mais democrática. Não dizem mesmo que “no escuro todos os gatos são pardos”? Provavelmente porque, durante a noite as diferenças se tornam menos visíveis. Enxergamos menos na escuridão e talvez assim fiquemos menos críticos. À noite também tudo parece ser perdoado ou pelo menos amenizado. Talvez por que seja território masculino, da boemia e da caça pelos prazeres que não são possíveis na claridade dos lares. É como um jogo onde a fantasia parece dar as cartas e o breu ditar as regras e normas para se ganhar ou perder. E se durante o dia a norma social define os comportamentos e condutas aceitáveis, a noite parece existir para aliviar tensões e desejos perdoáveis. Dois mundos opostos regidos por grandes astros. Se o sol ilumina com seus raios dourado a honra aristocrática, a lua por sua vez, parece pratear a obscenidade democrática. Talvez por isso, a noite tenha se tornado o recanto, e por não dizer porto seguro dos desajuizados que teimam em contraria a norma médica e burguesa.

Mas esta mesma noite também liberava instintos e com eles seus perigos. A noite é à hora dos lobos que caçam implacavelmente suas vitimas. E a lua parecia permissiva ao contemplar as obscenidades, que não eram sexuais, mais sociais. Muitas das vezes pude acompanhar de “minha janela indiscreta” o ataque de animais raivosos e descontrolados. Era o limite da barbárie humana. Numa dessas “caçadas aos veados” promovidas pelos nobres filhos do sol aristocrático, vi uma das vitimas algemada em um poste ter o corpo encharcado por gasolina enquanto três fidalgos garotos se divertiam com isqueiros acesos. Era mais uma das tantas “Joana D´arc” a ser queimada para servir de exemplo aos hereges pecadores noturnos. Também assistir vários assassinatos comandados por um opala verde claro. Naquela época, matar travesti era diversão de rico. E nesse jogo de tiro ao alvo, as travestis tombavam as pés de um astuto caçador chamado Aracati.

Muitas histórias se contavam em relação a sua identidade. Alguns diziam ser um capitão (ou coronel) homofóbico, da policia, que queria restabelecer a ordem na cidade. Outros, porém, afirmavam ser vingança por ter sido roubado por uma das “travecas” (vulgarmente utilizado para denominá-las). Independente da origem ou motivos, o que se podia ver era uma verdadeira carnificina no centro da cidade. E o mais curioso, é que anos depois, quando da realização de minha pesquisa de mestrado (sim, é sobre prostituição, ou melhor, sobre as performances de gênero dos homens que se prostituem nas ruas do Recife), constatei não haver registros sobre o tão temido personagem e muito menos sobre suas vitimas.


Numa dessas emboscadas, uma das morenas de cabelos louros e longos foi atingida na virilha. Ela gritava de dor, caída ao chão. A polícia foi acionada para prestar o socorro (Afinal de contas não havia ainda as viaturas de pronto atendimento do disk 190. É esse o número?) e três policiais a pegaram pelos braços e pernas e a jogaram no camburão. Naquele momento a loura travesti já não era vítima e muito menos cidadã. E sim culpada por contrariar a ordem médica. Era uma espécie de bicho acuado que parecia assustar a noite com seus gritos de dor e protesto. E neste ponto, os tais policiais (heterossexuais de situação) bradavam eufóricos: "Tu não és mulher, então porque ta falando e chorando como homem?" (mas culturalmente homem chora?).

Refiro-me a esses homens da lei e do poder como heterossexuais de situação, por tê-los vistos, e outros muitos, em orgias sexuais com suas vitimas em plena rua (e logicamente diante de minha janela). Os tão temidos camburões da época transformavam-se mesmo em espaços para a satisfação de suas taras, pelas quais, logicamente não pagavam. E o serviço prestado servia como uma espécie de pedágio, ou como pagamento, não pela proteção, mas para que pudessem “trabalhar em paz”.


Nesse sentido, era interessante verificar o jogo que se estabelece entre quem subjuga e quem é subjugado. Se para os policiais e militares, que realizavam seus desejos sob o julgo da humilhação do outro, seus atos simbolizavam o poder e controle da situação; para as travestis parecia a inversão da situação, uma vez que também subjugava os pretensos heterossexuais de carteira, a ponto de não resistirem aos seus encantos e seduções. Desmoralizavam os machões viris ao mesmo tempo que eram também humilhadas. Estabelecia-se um jogo onde se misturavam os prazeres e desejos proporcionados pelos instintos, sejam eles sádicos, masoquistas, fetichista ou simplesmente fantasias sexuais impossíveis de serem realizadas durante o dia, ou em espaços regidos pela norma burguesa.

Em outras tantas situações, quando garotos de programa rondavam pela área, homens "fardados (ou fantasiados) de poder militar ou social" pareciam se transformar em frágeis fêmeas ao serem dominadas por seus machões, tão esteriotipados quanto eles próprios. Era a inversão de papéis experimentados sob a cumplicidade da lua. Era a quebra da norma que se tornava possível no escondido da noite.


Assim, passei anos me acostumando e conhecendo a dinâmica noturna, descobrindo personagens que povoam minha cidade. Acho que comecei a entender realmente alí o que se denominava papéis sociais (teoria de faculdade só serve se entendida e verificada na prática), pois que muitas vezes, encontrei durante o dia, algumas dessas pessoas portando de outras fantasias. Eram bancários, administradores, vendedores, politicos, desempregados, feirantes, advogados, médicos, professores e soldados, que muitas vezes levavam “vidas duplas”, talvez não por vontade própria ou consciente, mas por condicionantes temporais e situacionais para quem viveu os anos de ditadura cultural e militar.

Outra passagem que lembro refere-se à inserção de adolescentes e jovens no universo da prostituição. Uma das preferidas dos clientes, se muito tivesse completado quatorze anos, teria muito. Era de uma estatura mínima diante das adultas travestis de imensos saltos e de seus adultos clientes. Educada e treinada nas ruas, pelas professoras da vida e mais velhas, tornou-se mestra na arte de enganar e ludibriar os homens. De certa forma protegida pelo grupo, fugia das perseguições e batidas policiais. Mas, foi assassinada com menos de um ano de “batalha”. Não soubemos pelos jornais, mais sim pela declaração de guerra que anunciada na minha janela a cada travesti abatida. Nestes dias não tinha "programa" ou trabalho, pois que como amazonas, elas se preparavam para guerra e iam a forra. Era novamente o jogo de inversão, onde os nobres e plebeus tornavam-se vitimas e vilões. E o nível de violência não era diferente do que sofriam (seria uma espécie de dente por dente, olho por olho?). Era a lei da força que se estabelecia por quem detivesse o poder em determinado momento. E as ruas eram seus campos de batalha e ninguém conhecia melhor suas casamatas e trincheiras.

Também descobri nessas ruas, que prostituição e política andam juntas, ou são quase mesmo correlatas (desculpem, mas falo metaforicamente e não pretendo ofender as/os prostitutas/os). Teve até um dia que as ruas se transformaram em verdadeiro campo de guerra. É que desceu de um carro preto, um político tod empalitosado e bem conhecido. Alegava ele, ter sido assaltado por travestis que invadiram seu veiculo, ao parar num semáforo da redondeza. A polícia bem que tentou intervir no sentido de esclarecer a situação (tendenciosamente, lógico). Mas o tal politico conclamava seu prestigio e reutação moral (será mesmo que podia?). Acuadas, as travestis acusadas e que se diziam inocentes, sacaram suas giletes da boca e navalharam os próprios pulsos. Posso dizer que parecia filme de cinema. Daqueles de terror que jorra sangue para todos os lados (e sangue na época causava medo, lembram?). Ai, a situação terminou na imprensa e o tal político se afastou do cargo (penso que a política se tornou vitima de suas próprias vitimas, alguém discorda?).

E assim, convivi por anos no meu afastamento, que na época não era metodológico e acadêmico, mas social, com milhares de Sheylas, Michelles, Palomas, Vanusas, Lisas, Brigites e tantas outras, que em noites enluaradas cantavam suas alegrias e mágoas abaixo de minha janela. Eram as musas misteriosas, ou Iaras que cantavam próximas ao Rio Capibaribe e assim encantavam becos e corredores escuros, tornando a noite viva.


Mas antes de tudo, penso que eram seres humanos marginalizados, violentados e esquecidos no breu da estigmatização social. Seres da noite, pois que lhes era proibido e negado o dia. Pessoas presas e confinadas as ruas por falta de possibilidades, alternativas e ofertas para outras formas de trabalho (não mais dignas, mas talvez mais justas). Pessoas que continuam lutando, em pleno século XXI, para terem reconhecidas suas identidades, não sexuais, pois que já se reconhecem enquanto feminino, mas pelo reconhecimento da identidade social. Para que possam, ao menos, se reconhecerem pelo que se nomeiam: Robertas, Renatas, Sandras, Rosanas, Ednas, Moniques, Luzias, Naides e Monicas (...), e logicamente serem reconhecidas pelo que se reconhecem (será que entendem agora o papel das políticas publicas de inserção social, ou será necessário mais tempo aos politicos e gestores públicos?).

Assim, as tantas musas de minha rua que morreram em “batalha”, minhas homenagens. As que ainda vivem e/ou sobrevivem lutando por igualdade de direitos, meus respeitos. E a todas, meus agradecimentos por terem me ensinado o valor das diferenças e a importância da convivência pacifica e humana.

REFERENCIA
SOUZA NETO, E. N. Entre Boys e Frangos – análise das performances de gênero dos homens que se prostituem nas ruas do Recife. Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2009.
























Parada da Diversidade - São Paulo/2009


Um comentário:

  1. Em nome da nossa classe Trans aqui em Pernambuco eu gostaria muito de lhe agradecer por este lindo texto, muito humano em pro das Travestis, adorei e vou tomar a liberdade de publicar uma parte do texto em meu blog.

    Aleika Barros.

    www.aleikabarros.blogspot.com

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