quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - "SACO VAZIO NÃO SE PÕE EM PÉ"

CARNAVAL 2012


E ERA SÓ ISSO: Um Outro Ângulo do Carnaval Pernambucano.

No Marco Zero, em meio à multidão o vi passar. Parecia um vulto sem rosto. Não lhe vi os olhos. Também não me viu. Era pequeno e apressado, camuflado no escuro da noite. Curvado, corria pernas aos solavancos. Pernas frenéticas e alheias que comandavam seus passos. Mas o seu passo não era de frevo. Sim, havia fantasias, mas estas não lhe caberiam nem mesmo no carnaval. Sim, havia brincadeiras, mas não era hora de criança. Mesmo assim estava lá. E eu também estava. Como estavam milhares de foliões. Sim, havia música, mas estas não ninavam seus sonhos. Sim, havia cores, mas acima das altas cabeças, e por isso inacessíveis.

Cabisbaixo, se muito, ele alcançava joelhos. E eram muitos. E era só isso. Um menino e milhares de joelhos eufóricos. Suas mãos deslizavam habilidosamente abaixo de pés saltitantes. E eram pés ferozes que pareciam brincar de esconde-esconde. Mas ele não brincava em serviço. Com destreza enchia um saco de estopa com latas. E eram muitas latas. Amassadas como a vida de muitos. Descartadas como a vida de tantos. E eram muitas. E era só isso. Um menino e uma penca de latas vazias. Uma penca de meninos de vidas vazias. Uma penca de meninos vazios de vida.

Encurvado, não era maior que o saco. Um menino e um saco em meio à multidão de pernas cheias de fogo. E era só isso. Um menino com o saco cheio. Uma criança de saco cheio. Como milhares de outras que se espalharam entre os blocos, mas que contraditoriamente não brincaram nas troças. E eram milhares de crianças catando troços. Alvo das algazarras. Vitimas de gracejos. E eram muitas. E era só isso. Uma criança arrastando um saco vazio de esperanças. Um saco transbordante de lixo alheio. Crianças sem sacos. Cansadas na noite. Esgotadas pela noite. Perdidas em noites sem sonos.

Arqueado, se agarrava a um saco sujo como seu corpo. Um saco cheio de esgotos. E era só isso. Uma criança arrastando um saco cheio de medos. Crianças e sacos. Crianças sacos incomodando pernas eufóricas. Trombando joelhos agudos. Lambendo cochas suadas. Roçando os sexos alheios. E era só isso. Crianças expostas e de sacos à mostra. Sacos abertos como a boca da noite. Crianças com bocas abertas à noite. De bocas abertas ao nada. Sacos destituídos de respeito e dignidade, desviando dos tropeços. Abaixo das gargalhadas. Abaixo do povo. Abaixo de tudo e sem direito a nada.

Envergado, colidiu em pernas bambas e felizes. Chocou-se em virilhas e braguilhas salientes. Aspirou flatulências alheias. E era só isso. Um menino puxando um saco cheio de restos. Lambendo o piso público. Brigando com pés descuidados. Sim, havia festa, mas de baixo não se via. De baixo não se vê além de bundas sacolejantes. Além de sarros desejosos. De malícias cabíveis, mas impróprias as crianças. Embaixo, o submundo e os fundos alheios. E era só isso. Um menino de fundos pro mundo. De fundos para a noite. Meninos e sacos sem fundos. Respirando sujeiras. Engolindo sobras.

Erguido, eu vi blocos de gente cantante ao som da Elba. Elevado, vi um menino preso a um saco. Apressado ele não me viu. Não viu ninguém. Não viu nada. Sim, havia folia, mas seus olhos não alcançaram. Não havia tempo. Não haveria chances. E de baixo ele não viu além de partes. Partes de corpos, parte da festa, parte do nada. Como as partes que recolhe vazia. Do alto eu vi o carnaval passar. E ele que é apenas uma criança, contraditoriamente não viu. E era só isso. Um menino carregando um saco maior que ele. Um saco vazio de festas, fantasias e alegrias. E não sei quem era mais vazio naquele momento: o menino, o saco ou meu ânimo que evaporou como o frevo que alienou multidões.

Como um bicho acuado, ele passou entre pernas serelepes. Poucos viram, pois que não havia fantasias. Poucos perceberam, pois que não havia belezas. Poucos se aperceberam de tal situação indigna, pois que era folia. E era só isso. Um menino empunhando um saco vazio de confetes e serpentinas. Um menino sem carnaval. Como em todos os carnavais do Recife. Só isso!

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - A PLURALIDADE DOS PERNAMBUCANOS


CARNAVAL 2012




















PLURALIDADES E POSIBILIDADES DEMOCRÁTICAS

Sábado, 18 de fevereiro. O relógio marcava 08:00. Era preciso pressa. De minha janela via pessoas agitadas sob um céu nublado. O calor queimava a pele que doura ao sol. Estamos no centro do Recife. Estamos no centro da maior festa do planeta. O galo da madrugada reina soberano sobre a ponte. Eleva-se gigantesco aos céus para comandar a folia que está apenas começando. A cidade não era mais a mesma. Transforma-se num misto de inferno paradisíaco. Não sei de onde vem tanta gente. Talvez nem elas mesmas saibam. Sozinhas, em duplas, em trios ou em grupos, caminham determinadas. Como que guiadas por algo que não se sabe bem. No carnaval de Pernambuco, o Galo da Madrugada não convida, convoca! Já não é apenas uma estátua, mas transformou-se em entidade que exige fidelidade de seus milhares de seguidores. Trinta minutos foi o suficiente para se pensar e repassar estratégias. Colocar a roupa, improvisar adereços, proteger a pele e cair na gandaia. Na verdade não havia muito que pensar. Até porque se pensar muito não se vai. É preciso certo grau de loucura para encarar uma temperatura acima dos 36º, que na aglomeração ultrapassa os 40º facilmente. É preciso disposição para enfrentar uma aglomeração que se transforma em massa humana e se espreme em ruas apertadas. É preciso tolerância para brincadeiras bobas, e às vezes, descabidas. É preciso energia para mais de dez horas consecutivas de uma ginástica que mói o corpo. É preciso mais que dois pés para se manter na vertical.

Pela Rua da Concórdia chegamos a Praça Sergio Loureto. Uma confusão se espalhava pelas transversais e becos. O bloco já estava na rua e o abre-alas precisava se impor em meio à multidão. Estreitaram-se as filas. Uma manada de vacas e touros estava a nossa frente. Tinha também galinhas, galos coloridos, bebês com chupeta, freiras e ciganas. Tinham palhaços, policiais femininas, foliões com sombrinhas fazendo passo. Tinha agonia, ruge-ruge e muito calor. Era preciso chegar a Rua Imperial para conhecer o camarote. O itinerário era diferente, mas o caminho é conhecido de todos. Já passara uma hora e o trio elétrico trazia Fafá de Belém cantando hinos do nosso carnaval. Com sacrifício chegamos ao cruzamento indicado. Pulseira de identificação nos pulsos, cerveja na mão e orgulho no coração, são essenciais para reverenciar o maior bloco carnavalesco do mundo.

Dizem que somos egocentristas, exibicionistas e que temos mania de grandeza. Nada disso é verdade absoluta, mas que também não é mentira. Elba Ramalho chega contagiando a multidão ao lado Gerlane Lopes. Atrás vem André Rio e mais uma porção de cantores que não conheço tão bem, mas que não desconheço de todo. O povo se ouriçava com a chegada da Banda Calipyso. E se não é assim que se escreve, é assim que se fala por aqui. Depois de um tempo não importava quem cantava, mas o ritmo que acelerava os movimentos corporais. No desfile do galo se luta por espaço para as evoluções. Para dançar o frevo é preciso sapiência e ousadia. Não existe lógica ou regras, mas tem que ter gingado. A coreografia é improvisada, mas não menos bela. Homens vestidos de mulher andavam livres de preconceitos. Mulheres em trajes masculinos não se mostravam menos sedutoras. Passou um grupo de piriguetes; logo, correu um monte de faróis; esbarraram-se anjos e demônios. Não só os diabos louros bailaram na rua, mas os morenos, negros e pardos. Tinha gente de toda cor, tamanho e idade. De cabelo crespo, liso ou ondulado. Tinha gente feia, bonita e mais ou menos. Mas em certa altura todos se tornavam simpáticos e contribuiam para a beleza coletiva. É o que nosso carnaval é multicolorido, multirracial, miscigenado e oxigenado em cabeleiras descoloridas, azuis, vermelhas, verdes ou rosas.


NEM SEMPRE LILI TOCA FLAUTAS - MARCADO DA BOA VISTA
O sol quente tatuava a camiseta no corpo. Ficamos pigmentados. Braços e rostos vermelhos e tórax brancos. Ninguém se importava, ninguém reclamava a não ser o estômago que exigia reposição calórica. Os pés são sempre  agredidos sucessivamente com pisadas alheias. Mas desculpas solícitas compensam as dores momentâneas. As pernas assumem comandos próprios. Algumas fraquejam ou revelam cansaço excessivo, mas ninguém arreda pé. É que aqui a tradição se impõe sobre os limites. Quatro horas da tarde e avistamos o décimo sexto trio elétrico. Alguém logo avisou que são vinte e cinco. De um lado exclamaram: “Porra, só faltam nove”. Do outro reclamaram: “Puta que pariu tá acabando”. Mas avistando ao longe, rumo ao infinito, via-se um monstruoso tsunami de gente parecendo pedir passagem. E monstruoso é forma de falar, porque aqui adoramos superlativos. Tudo aqui é muito grande, inclusive o tempo de desfile que parece não ter hora para acabar. Tudo é exagerado e estremado. Por isso, quem não aguenta não sai de casa, viaja ou se contenta em olhar.

OLINDA 2012
Um taxi nos leva a Olinda. E lá é preciso fôlego e força para subir e descer ladeiras. Uma multidão se aglomerava em frente à prefeitura. O povo levantava os braços em palmas ritmadas. O suor fazia brilhar a pele, molhava os cabelos e grudavam desconhecidos. É que aqui se brinca apertado, quase colado um ao outro. A decoração da cidade se mostrou tão descabida quanto à de Recife. Beirava mesmo ao despropósito. O colorido ficou por canta dos blocos tradicionais que ganhavam as ruas de paralelepípedos. Era preciso equilíbrio para chegar a sede do “Pitombeira dos Quatro cantos”. A igreja do Carmo estava superlotada, mas ao contrário dos dias comuns, ninguém rezava. E se tinha gente ajoelhada era de cansaço. Se tinha gente chorando, com certeza era de esgotamento físico e mental. É que carnaval em Pernambuco se transforma em loucura. O sol queima o juízo dos desavisados. Maracatus desfilam num sobe e desce desenfreado. Ondas de gente balançam para frente e para trás. Mas ninguém sai, a não ser para seguir outro bloco que cruze o cortejo. Os sons se misturam e é difícil escolher o que seguir. Nos quatro cantos “A Mulher da Tarde” parecia ensandecida. Rodava os gigantescos braços e fazia acrobacias enlouquecidas. Os cabelos louros se movimentavam ao vento mas não escondia o sorriso malicioso.

De repente um movimento brusco pareceu acuar a multidão. Era preciso abrir passagem para os bonecos gigantes. Em fila indiana chegava o John Travolta acompanhado pela Mulher de Sombrinha, Selma do Coco, o Taxista, o Turista, Silvio Santos, o Pirata, e tantos outros símbolos da nossa cultura. Na Rua do Amparo o movimento era compacto e revelava que a cidade antiga se tornou pequena para tanta gente. Depois de hora em folia, nada melhor do que a “Tapioca da Paula”, no Alto da Sé. E lá de cima, o samba ocupou espaço, mas também tinha axé baiano, porque aqui é assim: carnaval multicultural. Misturam-se não só os ritmos, mas as raças e crenças. Não só as cores, mas as peles. Não só os blocos e grupos, mas as bocas e corpos. Não só classes sociais, mas as ideologias e partidos. Não só os gêneros, mas as orientações e desorientações sexuais. Pois que temos um carnaval de possibilidades democráticas e da pluralidade. Talvez por isso quatro dias não nos bastem. E não bastam. E disso todos sabem. E isto é fato.



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - UM BOBO DO MIOLO MOLE





PONTE DUARTE COELHO - CENTRO DO RECIFE
ACORDA RECIFE. ACORDA QUE JÁ HORA DE ESTAR DE PÉ...

“Acorda João. acorda que já é hora de estar de pé. Levanta, o carnaval começou...” e a cidade, mais uma vez, não está pronta. Acorda João que ontem mesmo te vi passar despercebido em meio a foliões no bairro antigo. Acorda, porque ninguém te viu nem reverenciou. E os poucos que te observaram passar te apontaram como o pior gestor de todos os tempos. Acorda João, acorda porque é preciso entender o movimento do povo. Não tens o carisma, e muito menos a confiabilidade do João anterior. Você só pode ter o “Miolo Mole” mesmo para dar as costas aquele que erroneamente te fez prefeito. O bom é que nosso carnaval se faz por si só, apesar de tuas trapalhadas. Por isso vê se aprende que quem anda de costas é caranguejo, siri e guaiamu. E se duvidar este é bem mais rápido, e mais bem quisto que você, porque é “Treloso” e anda em bloco. João, no carnaval como na vida quem não se mexe fica para trás. E quem fica parado é poste. Assim, é melhor se movimentar antes que os urubus e/ou “Abutres” te carreguem. Não basta fazer tão pouco e acreditar que assim mesmo “Nós Sofre, Mas Nós Goza”. Isso não é verdade. É a maior mentira de todos os tempos, assim como tua gestão. Na verdade, nós recifenses somos “Amantes da Glória”. E a glória se faz nas urnas, João. E em tempos de eleição, “Nem Sempre Lili Toca Flautas”, mas troca de partido, de candidato. O povo tem a “Língua Afiada”, João. De costas não percebes que o “Bloco da Saudade” está crescendo porque nos faz falta o tempo em que éramos respeitados enquanto cidadãos. Porque o povo há quatro anos está tomando no “Oiti” e tu continuas fingindo que não vê. Nesse movimento, o “Bloco dos Descontentes” vai passar por cima e enfeitar tua “Cabeça de Touro”. Vamos formar uma “Galeria do Ritmo” só para cantar o teu “Bota Fora”. Somos “Gigantes do Samba”, João. E samba também se faz nas urnas.

Acorda João! Acorda porque finalmente, apesar de atrasado, o “Galo” já está cantando na Ponte Duarte Coelho. E é de lá mesmo, que “ao som dos clarins de Momo” ele vai acordar o povo para a realidade. O mesmo galo do ano passado, que apesar de tuas trapalhadas e descasos costumeiros, vai reinar entre trios de pessoas mais que elétricas. E são essas pessoas descuidadas que vão fazer um carnaval fora de época. Vai ser um verdadeiro “Rcifolia” em pleno final de ano. Final de mandato, João. “A terra vai tremer ao som da massa” e o Marco Zero vai ficar lotado de “Caboclinhos”. As “Nações de Maracatus” vão engrossar o cordão e os “Afoxés” vão lavar as ruas e calçadas para eliminar o teu mau cheiro e limpar tua sujeira. Acorda João! Vai ter “Bacalhau com Batata”, vai ter “Mulher na Vara” e o povo vai comer teu fígado. Acorda João. Acorda porque falta muito pouco. Afinal de contas, nosso carnaval está apenas começando. E quando o “Elefante” sair às ruas virá “exaltando suas tradições” e também o esplendor de um povo guerreiro. É que guerra também se faz nas urnas, João.

O BLOCO DO MIOLO MOLE
Acorda João. Acorda porque teu pesadelo também está só começando. O “Homem da Meia Noite” vai assombrar teus sonhos. O “Diabo Louro vai faiscar na tua frente com cara de gente bonita demais”. E só assim vais conhecer a real cara do povo que abandonasses. Olha João, é preciso ficar de frente para o povo porque tem “La Ursa” seguindo teus passos lentos. Tem “Cavalo Marinho”, “Saberé”, “Piaba de Ouro” e outros milhares de seres encantados reclamando tua ausência e omissão nas coisas sérias. Gestão pública se faz com seriedade e transparência. Por isso, vem pra ruas João. O “Bloco dos Garis” não é suficiente para esconder tuas porcarias em galerias entupidas. Os esgotos estão transbordando e o “Mela-Mela” já tomou conta da cidade. Tem “Mictório” boiando nas chuvas. Tem corpos doentes nas lamas que derramasses pelo centro. Até os “Blocos dos Turistas” estão vendo e questionando tua inércia e ineficiência, João.

É que segundo tua ideologia barata, a prefeitura tem pregado que “Cuidando das Pessoas, a Cidade Avança”. Mas João, ninguém te disse que “cuidar” significa “aplicação da atenção, do pensamento, da imaginação”? Que corresponde a “atentar, pensar e refletir”? Será que ninguém te alertou que ter cuidado nos impõe tratar de algo, ou de alguém? Acorda João. Acorda porque o ato de cuidar exige consideração, prevenção e cautela. De forma mais geral, o cuidar relaciona-se ao bem estar, a saúde, a aparência e/ou apresentação. Por isso o povo está questionando qual o real significado ou sentido de “cuidado” é empregado pela tua gestão. De que pessoas a prefeitura estará falando João? Com certeza não é dos milhares de miseráveis que se espalham desassistidos pelas ruas do Recife. Também não é das pessoas com deficiência e/ou dificuldade de locomoção, pois estas não conseguem exercer o direito de ir e vir devido às vias e calçadas mal conservadas e esburacadas. Menos ainda é sobre as crianças e adolescentes vítimas de todo tipo e modalidade de violência, seja física, moral ou sexual. Sem falar das pessoas idosas que sofrem em longas filas de atendimento nos postos de saúde e continuam discriminados. E as mulheres João? Com certeza também não é sobre elas, uma vez que são vítimas da violência doméstica cotidianamente, o que contribui para elevar as estatísticas do número de assassinatos. Dos cidadãos comuns menos ainda, pois que as taxas do IPTU foram elevadas e corrigidas sem serviços de qualidade em troca. Dos empreendedores nem pensar, pois que os impostos relativos à liberação de funcionamento para empreendimentos comerciais foram corrigidos, com direito a cobrança retroativa a 2006. És tão eficiente assim que está corrigindo os erros alheios, João? Ou terá sido erro teu mesmo? Em 2006 tu eras o Secretário de Finanças ou de Administração? Só tendo o “Miolo Mole” mesmo.
ATOR MARCELO OLIVEIRA NO BLOCO DOUTORES DA ALEGRIA

O povo também está questionando para onde, ou em que direção, a cidade avança João? Dizem que provavelmente para o caos. Porque é isso que se vive hoje na capital pernambucana. E a culpa é tua, João. Tua porque continuas dando as costas para o Recife. Queremos saber para onde avança a aplicação de nosso dinheiro, vergonhosamente transformado em elevados impostos? Ou talvez fosse melhor perguntarmos sobre quem realmente avança sobre nossos sacrificados impostos? Por fim, João, quando é que realmente teremos gestão pública de qualidade? Quando a prefeitura irá encarar nossos problemas e necessidades de frente? Porque de “Costa” nem santo faz milagre. Em quatro anos de gestão pública o descaso avança enquanto a cidade regride: o lixo invade as ruas fedorentas e sem acessibilidade; o quantitativo de pessoas em situação de rua aumentou significativamente; o trânsito tornou-se insuportável; a segurança inexiste, e logicamente, a qualidade de vida tornou-se um sonho inatingível. Acorda João. Acorda que já é hora de estar de pé. Levanta que o carnaval começou, mas teu pesadelo está só no início. Tem “Babau” querendo te pegar João.
DESFILE DOS CABOCLINHOS

Acorda João! Acorda porque depois desse carnaval será preciso que você “Segure o Cú” pra não terminar com o “Ovo na Vara”.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - A DIVERSIDADE PERNAMBUCANA


BAILE MUNICIPAL DO RECIFE - 2012
















48º BAILE MUNICIPAL DO RECIFE - DIVERSIDADE E INCLUSÃO

Sábado, 11 de fevereiro. Depois de uma tremenda ressaca devido à qualidade duvidosa de certa cerveja que deveria ser “proibida”, a noite chega e novamente já estamos prontos. Destino: Chevrolet Hall, localizado na divisa dos municípios de Recife e Olinda, onde se realiza o tradicional Baile Municipal do Recife, ou como preferem alguns, Baile Gay Municipal do Recife. O transito apesar de intenso é tranquilo. Engarrafamento mesmo só de gente, ou melhor, de personagens. E eles surgem de todos os cantos. De dentro dos carros, dos ônibus, das ruas. Ao lado, no Centro de Convenções, acontece a previa carnavalesca do “Enquanto Isso na Sala da Justiça”, o que provoca uma mistura maravilhosa entre super-heróis e Pierrôs, Colombinas, Arlequins, Piratas, Faraós, Odaliscas, Palhaços, Marinheiros e tantos outros seres fantásticos [e outros nem tanto] que vêem brincar. A aglomeração lembra um formigueiro. E eis que de repente surge ela com seu capacete brilhante. É a “Formiga Atômica” que vem acompanhada de “Abelhas Rainhas” e “Mosquitos da Dengue”. O funcionário do IBGE veio com prancheta e formulários do Censo. E senso é o que parece faltar a quem se arrisca a tal rebuliço burlesco. É que os “Piratas do Caribe” assumem proporções físicas e geracionais variadas e disformes. Mas em Pernambuco, como diz a velha canção, “brinca velho, brinca moço... brinca até quem não tem pé”. E neste aspecto o Baile Municipal se destaca por revelar a presença e inclusão das pessoas com deficiência física, que também fantasiados caem na folia.

Os contos de fadas ganham vida e “Branca de Neve” segue acompanhada de um “Presidiário”, enquanto “Chapeuzinho Vermelho” surge ao lado do “Zorro”. Nem as clássicas histórias em quadrinhos revelariam tanta criatividade em oposições. Também tem os “Romanos”, “Egípcios” e “Gregos” que surgem em bandos. Uma versão satírica do enfadonho “Big Bosta Brasil” alerta que não se pode entrar. “Toureiros” desfilam sem touros, e “Diabos” brincam acompanhados de “Anjos” nada inocentes. O calor também marca presença, mas a multidão se aperta na entrada, com direito a revista policial. A decoração assume ares tropicais em tonalidades de verdes e azuis, mesclados com pinturas em aquarela que representam a fauna e a flora regional. É preciso encontrar um lugar para fincar posição. O salão mais uma vez está super lotado e o povo parecia não parar de chegar. Com o ingresso no valor de R$ 50,00 [dividido em cinco vezes no cartão de crédito], o Baile possibilita a participação coletiva de forma mais democrática, se diferenciando dos demais bailes e prévias carnavalescas. Para quem deseja mais conforto, pode-se optar pelos camarotes. Mas para quem gosta mesmo do empurra-empurra e do calor provocado pela “freveção”, o melhor espaço é diante do palco. É lá que o ritmo se acelera ao som de vassourinhas. É lá que a massa pula livre e desimpedida de conceitos ou preconceitos. E olha que tem quem apenas se coloque a admirar, seja a festa, as fantasias ou os corpos. Nada importa, tudo é possível, inclusive a azaração e paquera.

É nesta celeuma folclórica e pegajosa que um “Piter Pan” aproveita para exibir despretensiosamente sua musculatura peitoral a base de muita bomba, enquanto “Enfermeiras” e “Ciganas” exibem peitorais turbinados a base de não menos silicones. A quentura externa não se faz maior que a interna, e por isso, algumas fantasias mostram-se econômicas em tamanho, o que possibilita maior evidencia de corpos, ou parte destes, “sarados” ou “desturbinados”. Nada incomoda. O negócio é se sentir bem, e se possível, se dar bem. No meio disso tudo “Papai Noel” parece procurar seus veadinhos perdidos. E olha que se ele resolvesse fazer uma seleção não faltariam candidatos. De repente um “Drácula” negro abre sua capa e ensaia um vôo sobre a platéia. Uma “Colegial” já prá lá de madura se apressa em lhe oferecer o pescoço, mas o vilão parece mesmo interessado em um torço mais másculo. As “Piriguetes” se insinuam fazendo charme diante de belos “Arlequins” ou “Pierrôs”. Os beijos acontecem aos montes, seja entre piratas e gladiadores, seja entre padres e freiras, ou entre melindrosas e juízas. Nesta festa, diferenças de estaturas ou de massas corpóreas não opõem barreiras aos lábios sedentos dos apaixonados. E com um esfregão aqui, um apalpado ali, sempre se consegue transitar livremente pelo salão. O que não acontece nos banheiros, onde a pegação toma conta. E neste ponto vale salientar o desagrado não pelo ato em si, pois que as sexualidades também se fazem livres no carnaval, mas pela dificuldade de se conseguir aliviar os rins. Mas, como se diz popularmente por aqui é melhor relaxar e deixar que tudo “saia na urina”, pois que no carnaval pernambucano não incomoda que corpos se encontrem em pequenos flertes e sarros ou em toques comportadamente maliciosos.


NORMANDO VIANA E EPITACIO NUNES

E neste sentido, nada parece muito concreto ou diluído a ponto de se ultrapassar limites. O respeito se faz com graça, e às vezes, artimanhas [ou melhor, arte e manha]. Porque nesta brincadeira de sedução volátil e licenciosa ou se safa ou se apanha, ou se caça ou se é caçador. Neste rebuliço de folia os parâmetros se fazem ocasionais e situacionais, e a graciosidade da festa ganha espaço no improviso, tanto quanto no imprevisto. Pois nesta festa de “diversidades” encontra-se de tudo, casados, solteiros, travestis, prostitutos, virgens, donzelos, descamisados, descarados, mascarados, empregadores, empregados, políticos e eleitores. Parece não existir diferenças de classe, etnia/raça, credo, idade ou de orientação sexual. Tudo se cola e tudo se separa ao mesmo tempo. Tudo se ata e tudo se repele sem grandes complicações. É carnaval. E se isso não justifica, com certeza explica. E isso basta, e nos basta. Até porque os problemas de outras ordens devem ficar para os demais dias do ano. Até porque carnaval em Pernambuco é festa. E pra nós festa é sagrada [e profana, logicamente!].

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - O EROTISMO DOS "CAFUSUS" E DAS "RARIÚS"

I LOVE CAFUSU - 2011


BAILE DE GALA I LOVE CAFUÇÚ - O FINO DO BREGA

Sexta-feira, 10 de fevereiro. A noite começa e já estamos prontos. Destino, Clube Internacional do Recife, que pelo segundo ano consecutivo recebe o “Baile de Gala I Love Cafusu”, uma das prévias carnavalesca mais irreverente de Pernambuco. É noite de brega e o mote é a cafonice desenfreada. Roupas extravagantes, maquiagem exagerada, adereços que remontam o passado e fora de moda completam as indumentárias dos legítimos Cafusus e das Rariús. Um taxi nos leva a pracinha em frente ao clube. Milhares de pessoas se espremem invadindo as ruas. As “piriguetes” desfilam em vestidos curtos e apertados. Os “cafusus” usam paletós, jalecos ou camisas com estampas quadriculadas e calças de listras, com óculos escuros. A alegria toma conta do bairro que fica a poucos quilômetros do grande centro. De dentro do clube vem o som que comanda a festa. Uma banda de brega faz sua apresentação evocando hits mais famosos do momento. A festa se prolongará pela noite e só terminará com o raiar do sol. Uma semana para a abertura oficial do carnaval e Recife está repleto de opções para quem deseja se divertir.

Há algum tempo atrás o baile acontecia na sede do Preto Velho, no Alto da Sé, em Olinda, espaço necessário para congregar o pequeno número de adeptos da cafonice. Como tudo que é bom no carnaval pernambucano, o bloco se consolidou, caiu no gosto popular e se transformou em baile tradicional, aguardado com ansiedade pelos foliões. Transferido para o Armazém 14, no Bairro Antigo do Recife, aos poucos se transformou em mega produção. Dois anos foram o suficiente para constatar a necessidade de maior espaço físico para aglomerar tanta gente. Em 2011, invadiu o já declinado Clube Internacional, com grande show do baiano e sessentão Luiz Caldas – o fino do fino do brega. Em sua esteira vieram “Tiêtas” e “Perpétuas”, que junto a evangélicas, aluninhas e professoras dos antigos colégios e reformatórios brincaram aos ritmos frenéticos e de gosto duvidoso, que hoje se transformou em “cult”, e por isso consumido em larga escala pela burguesia. Assim, se mostrar brega e cafona virou moda, pelo menos nesta noite.

Para se entender melhor que do estamos falando, é preciso saber que não existe significado exato para a palavra “Cafusu”, e muito menos para “Rariú”. No dicionário Aurélio, a palavra grifada com “Ç”, assume sentido no popular nordestino para designar “indivíduo grosseiro, inábil, roceiro asselvajado”. Na cultura popular, ou seja, no cotidiano recifense, cafuçu faz referência direta a um estilo de vida, comumente ligado aos moradores das periferias, ou favelas. Neste aspecto, desconsideram-se os recortes de raça/etnia ou credo, para consolidar o recorte de gênero. Cafuçu é macho. E macho grosso, daqueles que não chora e nem manda flores. É o estereótipo do homem primitivo, sem maneirismo, logo não afeminado. Uma espécie de “retrôssexual” [em oposição ao “metrossexual”], que usa camisa aberta, de preferência mostrando o peitoral cabeludo; grossas correntes que adornam pescoços suados; pente no bolso da calça; e logicamente, espelhinho com foto de mulher nua no verso. Ah, cafuçu que se presa cospe no chão, fala grosso e coça o ovo [até porque cafuçu não tem testículos, tem “cunhão”]. Brincadeiras a parte, o cafuçu faz parte do imaginário local e torna-se, em certa medida, objeto de desejo de muitas mulheres e gays pernambucanos. No universo do mercado homoerótico recifense, por exemplo, este espécime de homem primitivo chega a ser rotulado como um sonho de consumo, pelo qual, muitas vezes, o cliente pagará mais caro. Principalmente por representar virilidade, malandragem, e consequentemente posicionamento ativo durante o coito sexual.

Em contraposição, a palavra “Rariú” é uma derivação direta da expressão “How Are You”. Assim, como “For All” aqui se transformou em “Forró”, a saudação inglesa/americana se transformou em “Rariú”. Assim, passou a designar uma espécie de mulher que ama e corteja o cafuçu. Na verdade é a sua versão feminina, demarcando bem as questões de gênero. Na atualidade, Rariú também se tornou sinônimo de “piriguete”, que designa uma espécie de mulher que quer se da bem, principalmente indo para “os esteites” ou “prá zoropa”. Sua indumentária faz referencia direta aos trajes utilizados por prostitutas e travestis. Calças justas e brilhosas, de preferência “passando cartão” ou “queimando arroz” para salientar as nádegas [aqui chamadas de bunda]; saias curtas, de preferência imitando pele de onça ou zebra, com muito babado, para mostrar a calcinha; batom muito vermelho e maquiagem pesada. Para completar o figurino é preciso acessórios grandes e coloridos, no melhor estilo espalhafatoso e unas vermelhas. Também é comum que usem blusas curtas ou tops para revelar a barriguinha, normalmente sobressalente, e se possível com um pincem no umbigo. Isso sem esquecer as meias arrastão e sapatos com salto alto. Apesar da incorporação atual, acho que “piriguete” e “rariús” são categorias diferentes. Enquanto uma é sedutoramente fêmea, a outra á baixa em conduta e comportamentos nada clássicos, beirando a apelação. Mas enfim, estamos falando de carnaval ou de categorias identitárias?

I LOVE CAFUSU - 2012
Neste ano, como sempre, na entrada do clube vários corações em pele de onça davam o tom da decoração. Difícil era encontrar lugar para colocar os pés, sem os quais não se freva. O Internacional estava superlotado das tradicionais Raríús [ou melhor, em sua maioria piriguetes] e Cafuçús. De repente um vendedor de água passa com uma garrafa nos ombros. Não é imprevisto, é fantasia, assim como são as dos vendedores de picolés, os motoristas e cobradores de ônibus, ou o homem do gás. O jeito de ser do cafuçu é isso. Representação máxima de uma estética adotada pela camada popular. É digamos o pobre querendo se mostrar chique, guiados por uma tendência ditada pelos abastados. Esse é o tom da irreverência do baile, que com o crescimento espantoso vem perdendo sua essência para dar espaço a uma mistura alheia as tradições. E neste sentido, este ano o Baile de Gala I Love Cafusu [grifado com S] perdeu em magia e encanto. Observa-se, por exemplo, que a beleza a cada versão tem se mostrado mais alva. E vale salientar que não é truque de maquiagem. É a cor da burguesia, que ao menos uma vez no ano brinca de ser pobre. Satiriza-se o estilo de vida dos que vivem as margens. O que não deixa de ser interessante. Contudo, estes não frequentam mais o baile como antigamente.

Apesar da periferia se tornar alvo de reverencia, não se faz representar em concretude. Pelo menos a meu ver. E as diferenças de classe na verdade inexistem. Tudo não passa de fantasia, até porque o ingresso no valor de R$ 60,00 [antecipado], por si já estabelece critérios de acesso. E o que deveria ser inclusão através da sátira se transforma em engodo excludente. Como o bloco não sai às ruas, os originais e periféricos foliões situam-se na frente do clube vendendo bebidas e comidas aos “imitões”. O baile em si continua interessante e divertido, porém talvez precise rever algumas questões de logística mercadológica. Este ano os ingressos acabaram rapidamente. Os promocionais, destinados a estudantes, ficaram igual a pé de cobra: “quem ver morre”! A grande quantidade de gente impedia a diversão, pois que não sobravam espaços e o calor se tornou quase insuportável. A bebida estava quente. E neste ponto é bom lembrar que cerveja não é café. Além disso, destaca-se a péssima opção pela marca, que ao custo de R$ 4,00 não correspondia em qualidade aos investimentos necessários para acessar o baile. Fora isso, “Proibida” mesmo deveria ser sua condição de venda, devido à ressaca e azia que provoca no dia seguinte.

Quanto à programação, a escolha do Rei Reginaldo Rossi não é menos valiosa do que os astros das versões anteriores. Afinal de contas, é o clássico de brega muito antes do estilo musical se transformar em mídia fácil. Contudo, o show foi prá lá de decepcionante, não contagiando a multidão. O brilho da noite parece ter ficado mesmo por conta da Banda Kitara [“prá te matar de paixão...”] e do Sambão do Preto Velho [que não cheguei a ver devido ao mal estar provocado pela cerveja quente que deveria ser “proibida”]. De qualquer forma, valeu pela irreverência e quantidade de gente bonita, em fantasias prá lá de brega e sedutoras. Afinal de contas, carnaval de Recife também é isso: contradição das mega-produções de ideologias mais financeiras que culturais.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - CIDADES DE BACO



RECIFE E OLINDA - O FEITIÇO DO MAIOR CARNAVAL DO PLANETA

Enfim, Carnaval! E se houvesse sinônimo apropriado para designar as cidades-gêmeas, este seria felicidade. Mas o problema é que Recife e Olinda não cabem em vocábulos. Não! E não precisa ser poeta para entender que apenas em rimas que exaltem belezas as deusas se revelam. Talvez a metáfora se aproprie no sentido de belas mulheres. E ainda que reducionista, o sentido simplista tomado no momento nos serve para evidenciar a complexidade de seus mistérios. Não falamos de simples e severas matronas, pois que ao contrário são amantes de Baco, que uma vez por ano as encharcam de prazer e odores. Por isso se enfeitam para se mostrarem nuas e exuberantes. Talvez nem sejam duas, mas apenas uma única cidade plural. Talvez nem sejam apenas mulher ou homem, mas também entidades. Talvez nem sejam apenas corpo ou sexo, mas também espaço que se completa e se complementa em corpulenta e graciosa majestade deitada em solo fértil. Independente do gênero é sabido que se ao ventre é permitido penetrar por rios, os seios ladeirados sobem aos céus para revelar imponência e soberania.


Não se afronta uma dona como Olinda, muito menos se ultraja uma deidade como Recife. Pois que são formosas, e por isso se permitem apenas a veneração. É preciso mais que magia para conquistá-las. É preciso encantamento. Ceder aos feitiços. Se ajoelhar e Implorar seu “Amparo” e “Misericórdia” para usufruir a “Boa Vista” ofertada. Apenas aos sábios é permitido bailar sobre suas curvas. Apenas aos belos é possível escalar seus relevos. E prá isso é preciso majestade, graciosidade e potência. Pois que não falamos de simples formas concretas, mas das duas mais lindas e encantadoras divindades que descansam etereamente nuas abaixo do equador, onde por natureza não pode existir pecados, faltas, culpas, maldades, lástimas e tristezas.

Aos desavisados é bom que se entenda: não se adentra Olinda ou Recife sem protocolos. No Reino de Momo é preciso se fazer animado. Por isso, fantasia é coisa séria, pois que rege a brincadeira e se transforma em passaporte ao jogo de sedução, onde seres mágicos se entregam ao deleite oferecido por Dionísio. E neste quesito se exige respeito e seriedade, pois que o traje precisa estar adequado e primoroso, condizente com o espírito. Um erro será fatal a quem deseja se enamorar nos dias de folia. É preciso que se entenda que carnaval em Pernambuco é multiculturalidade, e a isso se impõem diversidade, em gostos, gestos e tolerâncias. Acima de tudo se exige sabedoria, pois que tanto Recife como Olinda enganam e se camuflam. Um simples passo em falso e a brincadeira perderá o encanto para se transformar em aperreio e apuros. Por isso, como se diz no bom popular, “é preciso um olho no padre e outro na missa”.

RECIFE
Quem conhece nosso carnaval sabe que antes de disposição é preciso também saber onde se pisa. Estamos em solo sagrado, e por isso cheio de mistérios e proteções. E se as deusas são benévolas também se fazem caprichosas. Por isso, Recife e Olinda podem se mostrar implacáveis e perigosas, podendo se revelar furiosas diante de interesses descabidos e duvidosos. Aos adoradores de Baco, bem-vindos a maior festa popular do planeta. E que venham de peitos abertos à alegria e irreverência das cidades-gêmeas que transformam o carnaval pernambucano em uma grande orgia de som e de cor. A todos, bom carnaval.


OLINDA



sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

CARNAVAL 2012 - PROSTITUIÇÃO DO RECIFE





CARNAVAL E PROSTITUIÇÃO NO RECIFE – A CONTRADIÇÃO DEMOCRÁTICA

Que o Recife é uma cidade contraditória ninguém duvida. Porém, mais contraditória se faz sua política de gestão. Neste ponto, seu carnaval não seria diferente. A uma semana da abertura oficial, sinais modestos da grande festa pernambucana surgem em pontos específicos. A Ponte Duarte Coelho, que atravessa o Rio Capibaribe, interligando as avenidas Conde da Boa Vista e a Guararapes já está parcialmente decorada [ou será que está pronta?]. Em aquarelas, passistas, caboclinhos, maracatus e la ursas, enchem de colorido a principal via de acesso ao maior bloco carnavalesco do mundo, o Galo da Madrugada, que desfila no sábado, dia 18 de fevereiro. Dizem que o carnaval é uma festa democrática, onde como já diz a velha canção: “com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco”. Porém democracia, que faz referencia direta a soberania popular, em certas situações parece tender a outros significados, evidenciando logicamente interesses que nem sempre são do coletivo.



Dizem ainda que o carnaval é a festa da carne. E disso ninguém duvida também. Especificamente em Recife, onde o calor atiça os sentidos, pouca roupa torna-se quase que obrigatório. Tal fato, aliado ao erotismo naturalizado pelos nativos, transforma a festa de Baco numa desenfreada orgia quase comportada. Afinal de contas, carnaval é concentração, aglomeração, e por conseqüência esfrega-esfrega, atrito de corpos suados, e por que não, azaração despretensiosa e descomprometida. Ao se falar de carne automaticamente pensa-se em desejo, sedução, excitação e tesão. Isso logicamente atrai milhares de pessoas, que vindas de outras cidades, estados e países, superlotam as ruas estreitas e mal cheirosas da capital pernambucana. Assim, podemos dizer que Recife respira sexo e fantasias neste período. Fantasias que vestem os corpos e fantasias que saciam os corpos. E é neste ponto que entra em cena [ou melhor, saem de cena] as profissionais do sexo – especificamente me referindo as prostitutas e travestis que se prostituem no centro da cidade.


No carnaval pernambucano a prostituta é inserida na festança como personagem tradicional. De certa forma, representa a liberdade e fonte de prazer. Objeto de desejo dos desacompanhados, dos solitários, e até, às vezes, dos casados, noivos e enamorados. É que carnaval também é o espaço de autorizo, onde os pobres mortais comungam com Dionisio, deus do vinho e da desordem. E quem mora em Recife sabe que prostituta boa e experiente se encontra na famosa Pracinha do Diário. De segunda a segunda elas pegam no batente circulando a mais antiga praça pública da cidade. Reconhecido território da prostituição feminina, a praça em si é uma vergonha. Não pela atividade exercida no local, muito pelo contrário, mas pela harmonia e cuidado de que carece tal patrimônio púbico [ou seria público?]. Mas esse ano, a exemplo de 2011, elas perderam espaço para o grande e luxuoso camarote da Rede Globo.

É que com a mudança de itinerário promovido pela prefeitura, o Galo da Madrugada abandonou definitivamente e apertada e tradicional Rua da Concórdia, para se espremer pela Av. Dantas Barreto. E se a tradição perde em essência, o turismo local ganha em dividendos, arejando os cofres públicos. Até aí nada de mais. Porém como falávamos em democracia, me ponho a pensar como permitir que uma empresa privada [e patrocinadora, vale salientar] possa se apossar de uma praça inteira para montar um simples camarote [local onde, democraticamente as prostitutas não circularão]. Mais impressionante ainda é o tempo do empossamento. É que, contrária a ineficiência da máquina pública, a “Deusa Platinada” instalou suas altas paredes metálicas e excludentes, no local, em meados de janeiro. Ou seja, quase um mês antes do carnaval. Neste caso, nós, pobres cidadãos que pagamos pela manutenção [ou falta desta] do tal patrimônio púbico ficamos privados da praça. E pior é que nem nos sobram às calçadas, o que nos obriga a fazer manobras em meio aos veículos que chegam a avenida.

Mas independente disso, parece mesmo que o carnaval é a festa do “deixa prá lá”. Não existe explicação ou convocação da população para tal concessão. Tudo é resolvido do dia para noite, provavelmente em meio a grandes festas [ou seriam reuniões?]. Fato é que sem a praça as prostitutas mais uma vez são sumariamente expulsas do território já conquistado e consolidado. Será que não deveriam ser indenizadas, ou pelo menos ressarcidas em seus prejuízos? E neste caso a quem caberia tal obrigação, a máquina pública ou a privada? Será que se as prostitutas invadissem a prefeitura ou a empresa dona do camarote seria a mesma coisa? Talvez não porque prostituta no Brasil, independentemente de carnaval, nunca foi cidadã. E olha que estamos falando da Praça da Independência, onde vale salientar, a prostituição é tão antiga quanto à própria cidade.


DANILO CARIAS EM FOLIA
Durante o domínio holandês a praça já constava nos mapas da época e era denominada como “Terreiro dos Coqueiros”. Depois foi rebatizada como Praça Grande; Praça do Comércio, devido à grande quantidade de lojas comerciais ao redor; Praça da Ribeira; e depois, Praça do Polé, porque no local foram instalados instrumentos de tortura, pelos quais se pendurava as vitimas com uma corda grossa de cânhamo, pelos pulsos e pelas mãos, com pesos de ferro presos nos pés. Em 1816, após reforma, foi chamada de Praça da União. E só em 1833 passou a ser denominada como Praça da Independência. Como na época não existia Galo da Madrugada, e muito menos Rede Globo, imagina-se que as prostitutas podiam circular livremente pelo espaço. Hoje, porém, talvez o mais aconselhável fosse mudar novamente o nome do patrimônio púbico para Praça Global. Quem sabe assim, quando acabasse o carnaval a mesma empresa privada não se responsabilizaria por sua manutenção? E neste caso, assim, até caberia tal descabimento e insensatez.

AMANTES DE GLÓRIA - DESDE 1979
Mas como dizem no popular, no carnaval como na vida, nem tudo são flores. Mas por outro lado se as prostitutas são expulsas do grande desfile [ou melhor, de seus afazeres durante o período momesco], um bloco carnavalesco fundado em 1997 lhes faz reverências. É o já tradicional “Bloco Carnavalesco Amantes de Glória”. Apesar das divergências, bem como das lendas que se criaram ao redor do bloco, fala-se que Glória era uma antiga prostituta, ou travesti do Recife, famosa no Bairro Antigo. Completando 15 anos de folia, os Amantes de Glória saem às ruas do Recife todos os anos para fazer a festa e arrastar multidões. Então, além de cair na candáia num dos blocos mais irreverentes da cidade, é bom torcer para que continue assim. Torcer para que não entre também no livro dos recordes. Por que senão as emissoras de TV vão invadir a cidade de camarotes quilométricos, e a prefeitura, sabiamente, vai transformar nosso carnaval em um grande circo, onde aos palhaços e cidadão [ou será a mesma coisa?] caberão apenas as estreitas e esburacadas ruas.

E só para lembrar, já que estamos falando em democracia, “A Praça é do Povo!”. Mas será que o prefeito lembra disso? [Plim-Plim!]

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

MENINAS QUE PASSAM E MORREM NAS RUAS DO RECIFE

CENTRO DO RECIFE





ENQUANTO O CARNAVAL NÃO CHEGA!

Uma menina vaga pelas ruas da cidade. Estamos na Praça Maciel Pinheiro, coração do Recife. No centro um grande chafariz se ergue. O lodo cobre não só quatro leões que imponentemente suspendem uma plataforma onde uma índia se banha, mas também a água que lhes caem da boca. Na base da bela obra de arte dezenas de crianças e adolescentes se banham num verde salobro e aveludado. Também são lodos, pois que se constituem na ignomínia e degradação. Escórias de uma metrópole impudica destoam da escultura, outrora branca. Em meio aos matos, pois que já não há jardins, Clarisse Lispector parece inerte e sem vida. O abajur está no chão e já não ilumina o teclado da velha máquina. Não foi só a inspiração que foi morta, mas também a luz que se recusa iluminar dejetos sociais que agora assumem aspectos humanos. Meia dúzia de famílias fixou seus lares sobre as velhas e históricas pedras de cor clara, por onde se estendem velhos colchões e roupas de uso, ou pelo menos o que sobraram delas. A ração diária lhes é servida em latas, mas representa a solidariedade cristã. Eles comem como cães famintos. Rosnam, se empapuçam, cheiram cola e depois caem desacordados. Em meio a tudo isso, a menina passa, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Ela não tem mais que 13 ou 14 anos, mas sua fisionomia resvala na velhice. As marcas das ruas estampam seu rosto, seu corpo, seus movimentos minguados. São cicatrizes profundas que desfiguram os que não têm nada. Ela vagueia como sem rumo, e talvez não o tenha de fato. Muito menos prumo. Um resto de tecido, que um dia foi amarelo, lhe cobre vergonhosamente os pequenos seios, enquanto que uma saia curta lhe expõe indevidamente a carne. Seus olhos enxergam a esmo e um sorriso débil lhe invade a boca desnuda e sem dentes. Um torço de cabelos grudentos lhe cai sobre os ombros esqueléticos. É uma sombra humana. Um fantasma atormentado e que atormenta. Seu cheiro incomoda, assim como incomoda seu aspecto animalesco. Resto de gente que se arrasta pelas ruas de uma cidade hipócrita. Alguns lhes viram o rosto enquanto elevam às mãos as narinas. Fingem espanto. Não fazem nada. Apenas observam e criticam enquanto a menina passa. E em meio a isso tudo, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Ela cruza a Rua do Hospício de forma louca e desequilibrada. Esquiva-se dos automóveis que reclamam em buzinas. Tropeça na calçada em desalinho e sempre esburacada. Ela ri de si mesma. Ela cai sozinha. Ela ri sem motivos, ou talvez de sua própria condição. É um bicho perdido e sem donos. É dona das ruas e por isso se impõe a uma cidade muito maior em sujeira. Agora três jovens moribundos e um adulto com aspecto doentio lhes abordam. Brincam com ela. Tentam agarrá-la a força. A menina se mostra escorregadia entre mãos pecaminosas e cheias de más intenções. Um senhor que passa do outro lado reprova o ato. Um bêbado grita: “fodam essa cadela!”. A brincadeira continua. A briga se agrava. Suas roupas se rasgam. Ela corre desorientada. Ela cai novamente, agora do meio fio. Ela ri sem motivos ao mesmo tempo em que um carro freia cantando pneus. Ela ri sem emoção. E a meio tudo isso, a menina passa, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Uma cadela corre as ruas enquanto é seguida por cinco ou seis cachorros. Deixa um rastro de cio que aglomera e atiça a selvageria. A menina passa seguida por anjos negros, pardos e anêmicos que a cobiçam. A tara também aglomera a selvageria. São todos bichos soltos. Uns naturalmente animais. Outros destituídos da condição humana. Todos primitivos. Todos selvagens: a menina que passa; a cadela que corre; os anjos pecaminosos, que a perseguem; os cães que rastreiam o cio e o povo que os acompanha. Inclusive eu!

Pela Rua Gervásio Pires ela some. Anjos indecorosos mantêm a perseguição. E agora sou eu quem passa. Relembro uma notícia de jornal e esmoreço diante de um destino previsto: “uma adolescente é encontrada morta em matagal da Região Metropolitana”. A cena me invade a mente. Vejo uma vítima atacada por cães humanos, raivosos e ensandecidos pela tara. Salivantes por cobiçar a carne alheia. Mesmo que magra em e sem vida, mas ainda carne. Mesmo que em forma de ossos, mas ainda corpo. Corpo que será vencido pela fúria dos desejos transgressores. Corpo que será escarnecido pelo ódio de quem não tem nada - limites, afetos, dignidade, cidadania, auto-referência. Aquela já não passa pelas ruas do Recife. Pelas mesmas ruas por onde as pessoas ainda passam. As mesmas ruas das quais o governo se ausenta. As mesmas e mal tratadas ruas de uma cidade que ainda permanece viva. Ela não.

Como tantas meninas feitas em vias desumanas, talvez a de sorriso débil consiga lutar contra os que a violam. Mas talvez não lhe restem forças diante de uma cidade indecente e emporcalhada. Uma cidade muito mais forte em sujeira. Quem sabe não sofra da ausência, digna dos imbecis e se refugie no escuro da alma, de uma forma que só os que não têm nada conseguem. Quem sabe sorria de forma demente resignada ao que o destino lhe reservara. E se o destino não lhe fez justiça, a sociedade lhe impôs a condição de cadela. E cadelas não têm direitos. Não têm cidadania. Apenas as ruas lhes darão guarida. Rogo então que seu futuro se faça diferente e que o escárnio social se transforme apenas em brincadeira. De um mau gosto que só os que não têm nada sabem brincar. Em silêncio rezo para que não estampe as capas dos jornais matinais. E neste exato momento, penso que talvez nem a morte a deseje, pois que a vida há muito a abandonou. E nesse naturalizado desinteresse pela vida, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

E agora sou quem caminho desorientado. Tropeçando em remorsos. A foto do jornal me volta à cabeça. A batalha prossegue, e agora a vítima sem rosto assume as feições da menina ébria de drogas que vi passar. Seu corpo é corrompido. Transforma-se em caça de quem é caça também. Torna-se refém dos que se manterão reféns ainda por longos tempos. Nesse ato de violência não é carne que se penetra e se exalta, mas as mazelas da sociedade, também animal. Os subjugados subjugam seus pares na tentativa de apaziguar seus próprios sofrimentos. Ferem os excluídos por não poder lutar contra os que lhes excluem. Buscam aniquilar suas próprias angustias através da força que se estabelece em relações de poder, onde o mais forte aniquila o mais fracos. Mas que são todos fracos, e mesmo assim dominam para se sentirem menos dominados. Afloram a carne para se sentirem viris através do ato. O prazer não está no gozo, mas numa dor que também é sua. Pois que não lhes restam muito a não ser replicar o que lhe martelam a mente. De seus lugares de inferiores restam atos doentes que apenas refletem a enfermidade social. O bando se une na justiça dos injustiçados e amaldiçoam os impotentes porque estes também os espelham. Depois, cansados, fogem como lobos indefesos e arrependidos. Cães instintivamente saciados do nada. Mas não se pode exigir sanidade dos que não têm nada. Não pode exigir normalidade das pessoas que apenas passam, assim como de um governo que apenas se ausenta e de uma cidade que insiste em se fingir de viva.

Mais um corpo usado permanecerá inerte em meio ao lixo quando a noite cai sobre a cidade indiferente e desavisada. Já não haverá sorrisos débeis. O breu invadirá os céus e não haverá tropeços, não haverá reclamação. Ao longe, um galo cantará anunciando a esperança vã, pois que a luz se refará apenas para salientar um vermelho que escorre no verde mato. Do ventre ao mato. Do mato ao lixo. Do lixo aos vermes. Vermes que comem corpos para transformá-los apenas em restos de uma sociedade já putrefata e corrupta. Corpos, vivos ou motos reduzidos a dejetos de uma cidade que apodrece enquanto se mantém viva. O galo canta novamente. A brisa reclama movimentos. O céu chora sobre a violação do já foi sagrado. Depois, impiedosamente o sol se levanta. Mas, a menina não.

E agora sou eu quem caminha ébrio. Tomado por uma dor que sufoca e evidencia inércia diante do fatídico. Agora é minha própria carne que chora a dor dos desiludidos, dos incertos, dos impotentes. Os olhos salgam a boca. Agora eu passo, retornando por onde outrora passou a menina com restos de tecido que um dia foi amarelo. Agora as pessoas só não passam, mas me olham e se fingem penalizadas. Estão curiosas, mas não tocadas, pois que meus motivos e conflitos não são os seus. Na praça vasculho as famílias. Os olhos me desapontam por não acha o que procuro. Os meninos continuam no lodo, assim como os adolescentes, os adultos e os idosos que ali fixaram residências. Algo os abate e me abate. Baixo a cabeça perante a sociedade que me cruza. Um banho refresca pensamentos. A menina ressurge a mente. Desejo que amanhã esteja na praça. Ébria e trôpega. Uma forma de apaziguar minhas angústias e dívidas. Talvez sorria sem motivos, ou dos meus motivos. Talvez os leões se mantenham imponentes e dóceis, cuspindo fedores. Talvez a índia continue exuberante em seu banho de águas sujas. Talvez Clarisse suspenda o abajur para inspirar novos escritos. Novas críticas. Talvez sua voz ecoe sobre as desigualdades. Talvez a luz volte a todas as praças e ruas do Recife. Talvez o ano corra trazendo dezembro. Talvez a gente mude de governo. Talvez...

domingo, 5 de fevereiro de 2012

VIAGEM AO VELHO MUNDO EM 20 DIAS - Último Capítulo

DAS FRIAS RUAS DA EUROPA AS QUENTES MAZELAS DE RECIFE.


LA FONTANA DE TREVI - ITÁLIA

Esta semana a imprensa destacou as consequências das baixas temperaturas, que chegaram a menos 30 graus centígrados e assolaram a Europa. Por sua vez, do outro lado do Oceano Atlântico enfrentamos temperaturas acima dos 30 graus e também nos tornamos notícias. Frio ou calor? Inverso ou verão? Se os europeus entram no período de hibernação involuntária, nós entramos no período de ferveção que mexe com o imaginário popular. É que Baco, deus do vinho e que adora uma festa se aproxima e reivindica as ruas. Invade as cidades pernambucanas perpetuando seu reinado. Sim, nós também temos reis e rainhas, príncipes e princesas, condes, duquesas. E ainda temos calungas porque nossas raízes não são apenas de peles alvas, mas negras e indígenas. Somos mestiços. Nossa pele e nossa cultura são marcadas pelo sol.


CENTRO HISTÓRICO DE VERONA - ITÁLIA

Mas se engana quem pensa que nossas ruas estão repletas apenas de blocos carnavalescos. Não! Nós temos maracatus, mas temos também mendigos. Temos sambistas e fanfarrões, mas também miseráveis que se espalham pela cidade. E sim, nós temos festas e muita alegria neste período de farra momesca, mas acima de tudo, temos muita fome, inanição e doenças. Somos por natureza e característica uma cidade antagonicamente desleal durante os trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Assim, posso dizer que conhecer a Europa, ou melhor, pequena parte desta, me possibilitou refletir sobre a população em situação de rua enquanto fenômeno universal. Dizem que as diferenças de classes sustentam a ordem mundial. Digo, porém, que a desigualdade aliena almas e mutila vidas. É fato que a crise econômica que desestabiliza a União Européia é algo novo no cenário mundial, mas nossa crise social, que perpetua desigualdades não. Talvez os europeus possam aprender um pouco conosco, pois que temos como estratégia infalível a tática do “deixa prá lá que as coisas se resolvem por si mesmas”. Se na Europa pessoas estão morrendo nas ruas geladas, aqui, recifenses morrem em ruas que mais parecem fornalhas. Não sei se o inferno é demasiadamente quente ou frio, mas o infortúnio parece o mesmo, independente de localizações geográficas. Pensando melhor talvez nem possamos ajudar muito, por não ter o que realmente ensinar, a não ser a prática da omissão. Afinal de contas temos séculos de experiência em crise econômica e nunca resolvemos a situação dos excluídos e miseráveis que ocupam nossas margens. O melhor seria retirar de nossa experiência o que não fazer. Poderíamos então servir como exemplo, pois que somos referência em descaso e desapreço.


VENEZA - ITÁLIA

Se a população em situação de rua em cidades como Roma, Verona, París, Londres ou Lisboa, em maior e evidente quantitativo, chama a atenção, nas do Recife parece não mais despertar cuidado e muito menos reflexão. É que infelizmente nos acostumamos e naturalizamos a desigualdade e a injustiça como regra da boa convivência. Já transformamos a miséria em cartão postal e até a exibimos como exemplos do que não se deseja, onde homens, mulheres, crianças e idosos são transformados em restos ou resíduos da sociedade. Tanto que a Avenida Conde da Boa Vista está repleta de meninos, meninas, mulheres e homens abandonados ao acaso, assim como também estão a Avenida Manoel Borba, a Rua da Aurora, Rua Sete de Setembro, Rua da União, Rua do Riachuelo, Avenida Dantas Barreto, Avenida Guararapes, bem como a Praça Maciel Pinheiro, a pracinha da Soledade, a Praça Joaquim Nabuco e o Parque Treze de Maio. Se a Europa esbanja beleza e organização social como atrativos turísticos, em oposição podemos oferecer a barbárie e a selvageria como forma de sedução. A noite na Rua da Imperatriz, por exemplo, assume ares dantescos, onde famílias se amontoam embaixo de marquises, nas calçadas e entradas de lojas comerciais. No Recife, um beco, uma escadaria, um gramado, um canteiro, uma carroça, um papelão velho, tudo serve para proteger a carne e diminuir os impactos da terra fria e indiferente sobre corpos indigentes e agonizantes. E se já estimulamos o turismo sexual, quem sabe não agregamos valor comercial vendendo também o turismo da miserabilidade?


CENTRO HISTÓRICO DE LONDRES - REINO UNIDO DA INGLATERRA

Nossa vantagem é que não dependeríamos das estações do ano, como eles, pois que com chuva ou sol será sempre possível presenciar restos humanos se arrastando pelas ruas e principais vias de acesso do Recife. Poderíamos até credenciar empresas especializadas, no melhor estilo europeu, para transportar turistas em cômodos ônibus refrigerados pelos principais trechos da cidade. É lógico que o Rio de Janeiro já oferece algo parecido, mas restrito a determinadas favelas. Mas nós ganharíamos em extensão e variedade. Partindo do Marco Zero, seguiríamos pelo Cais do Porto para ver a Comunidade do Pilar. Pela Ponte do Limoeiro, local adequado para se prestigiar a exploração sexual de crianças e adolescentes se entraria pela Avenida Artur de Lima Cavalcanti e chegaríamos a Praça do Onze, na Comunidade de Santo Amaro, por onde andam meninos nus e descalços. Pela Avenida Agamenon Magalhães os turistas poderiam verificar a quantidade de crianças que nos semáforos limpam os pára-brisas dos carros e fazem acrobacias no trânsito, além das várias famílias que utilizam a via para expor bebês recenascidos em troca de algumas moedas. Isso sem considerar os zumbis alimentados pelo crack que perambulam e assombram as margens do canal imundo. Pela Rua Fernandes Vieira atingiríamos a Praça do Parnamirim para ver como famílias desassistidas lavam e estendem as roupas de uso e fazem as refeições no melhor estilo piquenique.

CENTRO DE LONDRES

O ponto alto seria a Rua Oliveira Lima, que se emenda com a Rua do Riachuelo. Nas duas pracinhas localizadas no pequeno trecho poder-se-ia ver meninas e meninos em situação de prostituição, tráfico e uso de drogas e/ou cometendo pequenos delitos. Em frente à Faculdade de Direito, espécimes não raros vagueiam perdidas durante todo o dia. Ao desembocar na Rua da Aurora, bêbados dormem prestes a cair no rio e desaguar no mar. Pela Ponte Princesa Isabel chega-se a Rua do Sol que forma a margem contrária do Rio Capibaribe. Nela, em frente ao Edifício dos Correios a exploração do trabalho infantil seria o foco. Também tem crianças dormindo junto a cachorros sarnentos e mal cheirosos. Atravessando a Avenida Guararapes, abaixo das marquises do velho Trianon veríamos prostituição, assaltos e milhares de crianças que fazem das carroças confortáveis berços a que nunca tiveram direito. Praça Joaquim Nabuco, território da clandestinidade, repleto de prostitutas, prostitutos, travestis e cafetões, além de crianças e adolescentes perdidos em drogas, que também rodeiam a Casa da Cultura. Mais uma bela e histórica ponte descuidada dá caminho ao Cais José Mariano, onde se instala o famoso bem-me-quer. A rua escura não esconde pessoas e muito menos órgãos sexuais a serviço. Da Ponte de Ferro, que tem nome de imperador, até a Ponte Duarte Coelho mais pessoas em sonos insólitos as margens do rio.

 
Mas antes de seguir viagem vale uma olhadela na Avenida Conde da Boa Vista que nos revelará sujeira, animais e gente que se misturam em calçadas mal conservadas. Por sorte poderíamos presenciar uma das comuns batalhas que se trava entre torcedores ensandecidos e policiais não menos desorientados, em dias de clássico. O espetáculo com direito a pancadarias, balas de borracha e, em algumas vezes, com farta cortina de spray de pimenta levarias os turistas ao êxtase. Uma parada programada poderia servir para alimentar as câmeras havidas por novidades do submundo. Uma espécie de experiência única se daria se pudessem presenciar a distribuição da sopa da misericórdia realizada pelos religiosos de plantão. Talvez pudessem distribuir esmolas para apreender o sentido da gratidão e da solidariedade. Talvez o guia pudesse destacar nossa tendência a reciclagem ao transformarmos papelão em colchões e jornais velhos em lençóis.

 
Por fim voltaríamos ao Marco Zero, no bairro antigo, onde blocos de carnaval desfilariam pelas ruas de pedras e casarios históricos. Seria o contraponto entre a exuberância e a falta de brilho de uma vida nua e crua que também invade as ruas. Sem dúvida nenhuma os europeus adorariam a experiência e levariam para casa algumas idéias interessantes e viáveis para enfrentar a crise econômica que aos poucos aumenta seus contingentes de desassistidos, que como os nossos, buscam nas ruas frias novas possibilidades de sobrevivência. Quem sabe até eles não inventam um carnaval como o nosso, e assim aprendem a brincar e a ri da miséria e das próprias desgraças, como fazemos em Recife? Por via das dúvidas, melhor seria patentear a idéia. Será?

PRAÇA DA FIGUEIRA - LISBOA

PRAÇA DE FIGUEIRA - LISBOA

PRAÇA DO COMERCIO - LISBOA/PORTUGAL



PRAÇA DO ROSSIO - LISBOA/PORTUGAL


AVENIDA MAIS CARA E FAMOSA DE PARÍS - FRANÇA