sexta-feira, 21 de outubro de 2011

HOMENS E MULHERES TRANS - SERES MITOLÓGICOS







TRANSEXUALIDADES - QUESTÕES QUE REVOLUCIONARÃO O MUNDO MODERNO

A sexualidade humana sempre foi um tema inquietante e ao mesmo tempo tentador. O entendimento de como determinadas orientações e preferências sexuais se estabelecem ou se estruturam tornou-se foco de discussões polêmicas ao longo dos séculos, dividindo opiniões, e consequentemente povos e culturas. O movimento feminista trouxe a tona uma necessidade de reavaliação sobre a heteronormatividade, instaurando as discussões sobre gênero entre os acadêmicos e os simples mortais. A revolução sexual impôs novas reflexões sobre as sexualidades dos homens e mulheres, abrindo espaço para a emergência de novas configurações e possibilidades de suas vivências e experimentações. Erotismo, tesão, excitação, prazer e orgasmo invadiram os campos de pesquisas, nas mais diversas e distintas áreas de conhecimento, possibilitando novos olhares sobre como os sujeitos da contemporaneidade tem convivido com suas sexualidades. Antes tabu, com o advento da AIDS, a partir da década de 1980, nunca se falou e pensou tanto sobre sexo e comportamentos sexuais. A viabilidade das discussões fez emergirem dos subterrâneos, categorias identitárias que por muito tempo foram consideradas, rotuladas e mantidas as margens da sociedade como desviantes da norma que se pautava numa lógica unicamente reprodutiva.

Neste sentido entende-se que os tempos mudaram, porém as regras preconcebidas e discriminatórias parecem se mostrar ainda fossilizadas no censo comum das populações em geral. Em vários encontros com estudantes, profissionais da educação, da saúde ou operadores do direito das mulheres, crianças e adolescentes, tenho observado certo ranço em relação as novas configurações da sexualidade, que logicamente encontra respaldo numa lógica biológica e higienista da condição humana. Penso então, se de certa maneira, o pânico gerado pelas diferenças não se mostram como resultantes de um estado de latência. Dito de outra maneira, questiono se para muitas pessoas essa sólida demarcação das diferenças não se apresenta como forma de proteção ao desejo de experimentações potenciais. Sendo mais claro e objetivo, proponho uma reflexão sobre o que realmente nos incomoda na figura das travestis. Será a concretude da quebra de regras naturalizadas como sadias pela cultura ocidental, ou os significados inerentes a constatação da plasticidade das sexualidades? De certo modo, as travestis resgatam velhos signos mitológicos por viabilizar a harmonização entre o masculino e feminino. Seres híbridos que transitam facilmente entre polaridades. Mulheres penianas que concretizam a simetria em um único corpo. Neste sentido, confesso que gosto de pensar nas travestis como sereias encantadas e encantadoras, que numa relação “metá-metá” brincam com as dimensões do imaginário e das subjetividades alheias. Nem humanas, nem peixe. Nem homens e nem mulheres, apenas seres concisas em si mesmas.

Mas no campo dos devaneios, não tem sido raro o contato direto com discursos oposicionistas por parte de ferrenhos conservadores e defensores da velha moral e dos bons costumes, que insistentemente se mantém presos na doutrina do esquartejamento dos corpos. Tendem ainda a entender os homens e mulheres em partes, de forma segmentada e não totalitária. O que é o homem afinal? O que o diferencia da mulher? Afora o pênis, na minha concepção, nada mais os diferencia além dos constructos culturais. Aprendemos a ser homens e mulheres através da cultura, o que significa que existem flexibilidades sobre as próprias concepções sobre o ser macho e fêmea. Não acredito que uma mulher possa, e deva ser vista e entendida apenas como portadora de uma vagina. Afinal de contas, nós humanos somos muito mais que apenas órgãos genitais. Neste sentido, os conceitos de masculinidades e feminilidades nos abrem um leque de possibilidades de entendimentos e concepções que talvez se encontrem mais alinhados com as necessidades e demandas da modernidade. Se sairmos do recorte biologista talvez se consiga entender que o pênis é um órgão tão importante quanto os demais, mas não tão mais operante que os outros a ponto de garantir nossa existência. Como se diria antigamente, talvez o problema consista no fato de algumas pessoas pensarem mais com a “cabeça de baixo”, justificando expectativas e comportamentos através de uma representação simbólica outorgada ao pênis. Neste aspecto, as pessoas falocêntricas tenderam a minimizar suas capacidades de vivenciar prazeres.

Muito tenho ouvido dizer que “as travestis são mulheres presas em corpos masculinos”, ou ainda pior, “homens com almas femininas”. Nestes casos, costumo dizer que definições romanceadas não inviabilizam configurações preconceituosas. A identidade sexual de um sujeito é resultado de um conjunto de fatores e não de uma única causa – a transgressão. No processo de desenvolvimento humano, ninguém nasce com a genuína vontade ou vocação para ser homem ou mulher. Pessoas se descobrem enquanto sujeitos do feminino ou do masculino. A orientação sexual sinaliza o foco do nosso objeto de desejo [ou dos objetos de desejos], para quem ou onde direcionamos nossa atenção e nos sentimos atraídos afetiva e sexualmente. E neste sentido, um pênis ou uma vagina não controlam comandos e impulsos instintivos e corporais no sentido de direcionamento dos desejos. Não é algo racional e manipulável, mais involuntário e inconsciente, pois que é do campo das subjetividades. E subjetividades não se moldam, mas se constroem ao longo dos tempos a partir das experiências individuais. No entendimento dessas novas configurações da sexualidade que se apresentam talvez a grande dificuldade se concentre no processo de abandono a norma milenar estabelecida a partir da biologia, para revisitar velhos conceitos a partir da concepção de gênero. Acredito que só através desse reordenamento poderemos entender e conceber a existência, bem como a viabilidade da existência de homens com vaginas e mulheres com pênis.

Neste sentido, sempre tenho questionado meus alunos sobre suas concepções de heterossexualidade e homossexualidade. Busco dessa forma, instigá-los a [re]pensar no quanto ainda estamos presos aos paradigmas conservadores e ultrapassados que tem respaldado nossas compreensões sobre a sexualidade humana. Como se diria os mais velhos, gosto mesmo de “cutucar o diabo com a vara curta”. Começo lembrando-os que o que caracteriza a heterossexualidade é a atração pelo sexo oposto - logo, homens sentem desejos por mulheres, e por sua vez, as mulheres por homens. Considerando-se então a cirurgia de transgenitalização, pela qual se torna possível a mudança de sexo, um homem que gosta de outro homem, quando transgenitalizado será retirado da categoria homossexual e passará a ser entendido como pertencente a categoria heterossexual. Claro que entre os alunos a colocação mostra-se perturbadora e impactante num primeiro momento, porém as reflexões começam a fluir de forma mais sistematizada. A celeuma se instaura no exato momento de se questionar o que demarca ou delimita a orientação sexual de uma pessoa. Se o que configura e determina nosso entendimento sobre o que é ser mulher encontra-se centrado existência de uma vagina, não existe motivos plausíveis para não se reconhecer uma transexual também enquanto mulher. Explicando melhor, podermos pensar: se antes da cirurgia a pessoa em questão era do sexo masculino pelo simples fato de possuir pênis, após os procedimentos cirúrgicos, automaticamente passará a ser concebido como mulher, pois que agora possui vagina. O silêncio sempre se faz presente nestes momentos. Considero mesmo que o seja inevitável. Porém o incomodo inicial é sempre quebrado com argumentos recorrentes: “mas ela não possui útero e nem trompas, logo não pode ser considerada ou classificada como mulher”. O mais engraçado de tudo é constatar a repetição da afirmativa seguinte, também recorrente: “pelo menos não é uma mulher natural”.

O velho discurso do que é natural parece ser bastante para justificar resistências, negando possibilidades de reflexões mais fundamentadas numa concepção lógica. O objetivo de tal provocação é possibilitar novos olhares sobre velhas concepções. A “mulher não natural” estabelece o lugar de negação e exclusão da “mulher artificial” – a mulher transgenitalizada. Por esse viés entende-se então que não é a vagina que determina o ser mulher. Agora trompas e úteros são evocados para reivindicar o lugar da norma, o que valida e respalda o discurso unicamente biológico entre estudantes ainda nos tempos atuais. Recorro então a uma nova provocação questionando-os se este recorte não nos levaria a entender que o fato de algumas mulheres não possuir útero as destituiria automaticamente do lugar de mulher. Novo silêncio se anuncia e dessa vez tende a se mostrar mais prolongado. Algumas argumentações fragilizadas são lançadas ao ar, até que a grande cartada é lançada sobre a mesa. “Mas mesmo com vagina, as transexuais não conseguem gozar”. Ponto final para a velha discussão, ou momento para ressuscitar Freud e sua polêmica teoria sobre o gozo clitoriano? Talvez momento propício e ideal para se questionar sobre gozo e as formas de gozar, penso eu. E lá vamos nós em novas buscas por respostas. Gozar é a mesma coisa que ejacular ou são coisas distintas? Ejacular é orgânico, logo biológico, enquanto gozar é emocional, logo subjetividade? Só existe gozo através e/ou via ejaculação? Será que um sujeito pode pela falta de envolvimento afetivo, por exemplo, chegar a ejacular sem gozar? E um sujeito envolvido emocionalmente e/ou afetivamente poderá chegar ao gozo sem necessariamente ejacular em algumas situações?

Mas uma vez os antigos diriam que “esse assunto daria panos para as mangas”. Assim, recorrendo ao dicionário verificamos que gramaticalmente gozar significa sentir prazer intimo, deliciar-se com; sentir prazer ou satisfação; experimentar prazer. Na cultura brasileira, gozar assume o sentido de se atingir o orgasmo. Entende-se então que orgasmo pode ser classificado como o mais alto grau de excitação dos sentidos ou de um órgão, especialmente durante o ato sexual. Já ejacular pode ser compreendido como derramamento com força, emissão, expulsão [de um líquido, por exemplo]. Neste sentido o ato de “ejacular algo” parece configurar-se como ação mecânica, que poderá ou não vincular-se a ação prazerosa. Prazer, ou gozo, por sua vez mostra-se como algo mais amplo por envolver sentimentos. O gozo sexual pode ser pensado pelo campo da subjetividade por agregar vários fatores, entre os quais, as sensações provocadas pelo toque, pelo atrito, pelo beijo, troca de suores, galanteios, encantamentos, paixões e amores, entre outros. O gozo em si independe da excitação sexual, o que não se aplica, via regra, a ejaculação. Assim, parece falarmos de coisas distintas, que logicamente quando unidas provocará uma espécie de prazer, mas não a única ou a melhor forma. Outro aspecto relevante é que o prazer não necessariamente se vinculará ao ato sexual. A ejaculação por sua vez, relaciona-se via regra, diretamente ao ato sexual, seja solitário, em dupla, em tripla ou nas mais variadas quantidades de conjugação. Ainda vale salientar que o gozo não será proporcionado apenas pelos pênis ou vaginas, até porque existem outras zonas erógenas espalhadas pelos corpos que podem provocar sensações tão ou mais prazerosas. Neste jogo de sedução e liberação da energia libidinal parece ganhar mais quem expande as possibilidades para outras partes corporais como dedos, bocas, línguas, pés, ânus, seios, entre outras. Neste sentido, o ato de ejacular mostra-se isolado e restrito a um único órgão, enquanto que o prazer tende a revelar outras dimensões corporais e sensoriais.

Acho que neste ponto torna-se interessante pensar que ninguém goza igual a ninguém, seja na forma, intensidade, localização da fonte de prazer ou sentido atribuído ao ato [e ao fato]. Se existe forma, ou regra regular para provocar a ejaculação, o mesmo não se aplica ao gozo. Este faz parte da descoberta, inclusive da própria sexualidade. Assim, acho que gozar é um estado de congruência psíquica e física, pelo qual o corpo torna-se loco das sensações sentidas e vivenciadas. Afirmar que uma pessoa transgenitalizada não goza é negar as possibilidades de descobertas individuais. É tentar generalizar algo que é pessoal e intimo demais para ser propagado como regra. Basta-se pensar que muitos dos homens dotados de pênis e mulheres dotadas de vagina [e também útero e trompas] não conseguem gozar durante as relações sexuais, o que também se aplica ao ato de ejacular, seja voluntaria ou involuntariamente. Neste aspecto, vale a máxima de que a intimidade é algo intransferível, pois que se torna subjetivado na particularidade de cada indivíduo.

Descobri-se do feminino ou do masculino não nos inviabiliza de experimentar novas experiências e configurações corporais e emocionais. Formas de vestir, andar, comer, sentar, falar, bem como comportamentos, são frutos de constructos sociais. Não são naturais ao indivíduo, mas aprendidos e apreendidos dentro de uma cultura específica. Homens escoceses usam saias e nem por isso são destituídos do lugar de masculino. Homens brasileiros esperam o carnaval para extravasar a feminilidade. É a nossa cultura, nem melhor ou pior. Apenas culturas diferentemente ricas. E é por via desta que atos e comportamentos são naturalizados como características peculiares ao masculino e ao feminino. A sociedade ocidental institucionalizou os papéis de gênero, que consolidados no censo comum das populações brasileiras, se estabeleceram como rígidas regras que devem ser seguidas. Então a dificuldade não consiste em aceitar as diferenças, mas no processo de quebra com os antigos paradigmas sociais. Também neste aspecto vale lembrar que a cultura nos dirá dos comportamentos, do processo de socialização, mas não dos nossos sentimentos e desejos mais íntimos. Assim, é preciso entender que orientação sexual não é fruto da aprendizagem, mas das descobertas pessoais. E para quem gosta do discurso “naturalizante” talvez seja aconselhável melhor observar a base da doutrina, uma vez que a própria natureza mostra-se vasta em diferenciações de espécies, onde heterossexualidade, bissexualidade e homossexualidade caminham juntas “desde que o mundo é mundo”.

Finalizo destacando apenas que o processo de naturalização dos processos pessoais e humanos parte talvez da nossa necessidade de diferenciação, processo pelo qual nos descobrimos a nós mesmos, e assim formamos nossa própria identidade. A necessidade de categorização é humana e não da natureza. É uma criação do homem. Assim, da mesma forma que tendemos a dividir e agrupar pessoas entre negros e brancos, altos e baixos, gordos e magros, feios e bonitos, nos sentimos tentados as categorias sexuais – gays, lésbicas, travestis, transexuais, intersexos, bissexuais, homossexuais, heterossexuais, pansexuais. Mas se estas categorizações nos respaldam a distinção do outro, nos tornando individuais [indivíduos], não devem nos servir para respaldar também as desigualdades. Até porque apesar das diferenças identitárias somos iguais em essência no que se refere à espécie animal. Como diz a sabedoria popular, “o mundo não foi construído em apenas um dia”. Do mesmo modo, uma identidade não se constrói do dia para a noite. Por isso, torna-se pertinente [re]pensar que orientação sexual não se configura como opção, pois que esta parte de uma decisão de escolha voluntária e consciente. A classificação ou terminação “opção sexual” nos serve apenas para consolidar a concepção de identidades e práticas desviantes da norma heterossexista que se pauta numa cultura falocêntrica que não cabe nos dias atuais, onde os metrossexuais parecem ditar as novas regras de conduta masculina e a moda. Assim, mais uma vez plagiando o Pepeu Gomes, lembro que “ser um homem feminino não fere o lado masculino” de ninguém, e que ser [e se mostrar] diferente é salutar, não podendo servir como justificativas para a destituição da honra e/ou caráter do outro.

sábado, 15 de outubro de 2011

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA PUBLICIDADE BRASILEIRA

O QUE É POLITICAMENTE CORRETO?
Muito tem se falado sobre comportamento politicamente correto. Neste sentido, a polêmica atual tem como base a nova campanha de lingeries da Hope, estrelada pela nada menos mega modelo Gisele Bündchen. Na referida peça publicitária, a estrela ensina como as mulheres devem dar péssimas notícias aos seus maridos. Ela surge então em dois momentos. No primeiro, vestida, anuncia que bateu com o carro, estourou o cartão de crédito e que sua mãe virá morar com o casal. Num segundo momento, retorna usando sofisticadas peças íntimas de cor vermelha. A situação geradora de conflitos é a mesma, as informações são as mesmas e a mulher é a mesma. O que muda então? O apelo à sensualidade e erotização como armas de sedução e barganha. E o que causa incômodo, a ponto de consumidores, movimentos feministas e secretarias de governo tentar impedir sua veiculação? A manutenção da idéia preconceituosa de que a mulher é o sexo frágil e que precisa usar o corpo para negociar com o parceiro, cultuado como o todo poderoso e dono do mundo – o homem. Neste sentido, o corpo torna-se então objeto capaz de reduzir ou minimizar a violência masculina. Mas, de que violência se está realmente falando? Da violência física resultante da possível cólera desenfreada do marido diante das catástrofes comunicadas pela esposa; ou da violência moral a que a personagem precisa se submeter para não ser agredida? Porque não apelar para o diálogo ao invés de precisar tirar a roupa? Poder-se-ia entender ou deduzir que neste caso específico, o corpo da mulher em questão torna-se moeda de troca, uma espécie de reparação ou compensação aos danos materiais provocados? Ou tudo não passa apenas de uma brincadeira, pautada numa cultura héteronormativa e sexista?
Na minha concepção, não acredito que proibir uma campanha se mostre menos agressivo do que o subtexto machista impresso no comercial. Afinal de contas vivemos em um regime democrático, pelo qual lutamos tanto, o que nos possibilita a livre expressão.  Porém, entendo e compactuo com o movimento que alerta para a necessidade de se chamar a atenção da população em geral, principais consumidores dos produtos vendidos, sobre as estratégias de marketing utilizadas pela empresas de propaganda e produtoras. A bem pouco tempo atrás a Juliana Paes aparecia dentro de uma garrafa de cerveja, que despertava no imaginário masculino que se poderia degustá-la inteira. Indiretamente, considerando que cerveja se consome pela boca, pelo qual se dá o ato de comer, entende-se que cerveja e mulher tornam-se comestíveis e que estão à disposição de todos. A fora isso se veicula a idéia errônea da mulher enquanto objeto de consumo. Mulher e cerveja no Brasil, de certa forma, viraram quase que sinônimo. A imagem de uma mulher nua, com os braços arqueados sobre os cabelos tornou-se rótulo e marca da “Devassa”. Entre linhas sugere-se que ambas, apesar de boas e prazerosas, podem provocar estragos – devassidão, a ponto de levar os homens a perderem a cabeça, ou o controle. Mas devassa, também tem significados mais negativos, tornando-se muitas vezes, pelo menos no Nordeste, sinônimo de mulher de caráter duvidoso. Uma mulher devassa pode, por exemplo, ser correlacionado a mulher prostituta. Esclarecendo aqui, que logicamente o ato de exercer a prostituição não necessariamente torna mulher uma devassa ou de caráter duvidoso. O que questiono é o porquê as mulheres ainda permitem que sua imagem seja vendida de forma negativa. A cerveja não pode ser devassa por si só, independente do recorte de gênero? O problema é talvez esteja no poder da publicidade em transformar até mesmo coisas negativas em imagens positivas. Assim, até certo ponto, algumas mulheres se sentem homenageadas no papel de devassa, ou da “boa”, que todo homem deseja e cobiça, mas a qual nem sempre respeita.
Penso que nesta discussão, nos cabe também chamar a atenção das pessoas ou personalidades, tidas como formadoras de opinião. Talvez o melhor caminho fosse questionar as/os próprias/os modelos sobre suas concepções e comprometimentos com as mensagens vinculadas as suas imagens. Se é que as ofertas monetárias possibilitam espaço para tais reflexões. No momento atual torna-se facilmente perceptível que algumas dessas personalidades também já se tornaram produtos. Talvez a falta de consciência política os faça pensar muito mais em suas contas bancárias do que nas repercussões de seus atos, gestos e palavras. Neste sentido também, se faz necessário entender que nem todo mundo tem a obrigação de levantar bandeiras alheias ou participar de movimento dos quais não conhece, acredita, ou pior credita respeito e/ou importância. Especificamente no caso da violência contra mulher, talvez quem nunca tenha sofrido agressões não encontre motivos para tanto alarde provocado por uma simples campanha publicitária. Mas considerando que o Brasil é um país com os maiores índices de violência doméstica, e que as principais vítimas são exatamente as mulheres, mostra-se contraditório que uma mulher bem sucedida como a modelo contratada precise utilizar de recursos tão primários e estereotipados para justificar suas falhas.
Sempre tenho dito em palestras, cursos ou mesmo em minhas aulas que ministro, que quando nos dispomos a ocupar um determinado lugar devemos assumir as responsabilidades inerentes ao lugar que ocupamos. Ou seja, nos tornamos responsáveis diretos pelos impactos causados no coletivo a partir de nossas próprias ações. Assim, talvez não seja realmente a campanha que deva ser censurada, mas as personalidades que contribuem para fortalecer os estigmas sociais delegados a determinados segmentos da população. E aqui, vale salientar que quando me refiro a censurar não me refiro a proibir, mas a chamar a atenção. Penso que a tão sonhada transformação cultural e social do país só se dará pela educação. Neste sentido, quero dizer que se a população feminina fosse mais esclarecida iniciaria um movimento de boicote as peças da referida empresa. Por esse viés, se cada vez que a população que se sentisse atingida e incomodada por determinada campanha substituísse as marcas dos produtos consumidos, provocaríamos uma alteração de comportamento por parte dos produtores e publicitários. Na verdade a linguagem mais poderosa do mundo moderno chama-se dinheiro, entendido aqui, como lucros. É o que sustenta uma organização comercial. Se as compras diminuem, os lucros caem, provocando reflexões sobre a qualidade dos serviços prestados. Talvez quando o consumidor entender que tem a grande arma nas mãos, consiga provocar um movimento contrário e consciente em prol do respeito ao exercício da cidadania. E a coisa é bastante simples. Se por exemplo sou mal atendido em um determinado restaurante, nunca mais volto ao local. A mudança na lógica consiste então, em fazer o consumidor entender o seu lugar de cliente – de provedor. Isso significa entender que somos nós os grandes responsáveis por determinadas ofensas e insultos a que somos expostos frequentemente pela publicidade midiática. Se me torno um consumidor consciente, contribuo de forma significativa para a transformação publicitária. Para mim, como diria a famoso investigador inglês, “isso é elementar meu caro!”.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

HOJE MORREU A ESPERANÇA



DESPEDIDA PARA WHITHNEY E LATÓYA

Hoje recebi a triste notícia de falecimento das gatinhas que tentamos salvar ontem. abandonadas de forma abrupta e animalesca em um coletor de lixo das ruas do Recife, infelizmente não resitiram devido a desnutrição e problemas causados pelo afastamento antecipado da mãe. Confesso que o sentimento de fracasso me invade na mesma proporção que a indignação. O fato só mostra o quanto da irresponsabilidade e desrespeito dos órgãos públicos e instituições de proteção aos animais de nossa cidade, que descomprometidos e despreparados, não cumprem com as premissas básicas dos serviços a que se propõem.

Tão pequenas quanto suas próprias vidas, Whithney e Latóya, que morreram hoje em uma clínica veterinária, figurarão para sempre em minha memória como exemplo da barbaridade e selvageria humana. Como diria o grande mestre, "Assim Caminha a Humanidade". Porém, só nos resta saber e refletir para onde.

Que se faça pelo menos um minuto de silêncio diante de tanta resignação e impotência dos homens. Esses sim, verdadeiros animais irracionais.





terça-feira, 11 de outubro de 2011

DUAS PEQUENAS VIDAS ABANDONADAS EM UM LIXEIRO QUALQUER DO RECIFE


JOGADAS AO LIXO NO CENTRO DO RECIFE


À CHEGADA DE "WHITHNEY" E "LATÓYA"

Hoje tive a infelicidade de encontrar duas pequenas e frágeis vidas depositadas em um coletor de lixo improvisado na Rua do Progresso, em pleno centro do Recife. Neste sentido, infelizmente sabe-se que estas não serão as primeiras, e muito menos as últimas, a serem brutalmente descartadas como restos inúteis. Nos dias atuais não de se estranhar que a crueldade e o desrespeito aos direitos humanos, muitas vezes pautados nas desigualdades sociais, tenham inevitavelmente condenado algumas pessoas a condição de verdadeiros lixos ambulantes. É sabido ainda que em Recife, como em qualquer grande metrópole, o lixo tem sido transformado constantemente em única fonte de sobrevivência, servindo de alimento para muitas vidas. E isto não é fato difícil de constatação, uma vez que nossas ruas estão repletas de crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, pessoas com transtornos mentais, pessoas com deficiência física, usuários e/ou dependentes de drogas, além de cães e gatos que perambulam perdidos e desassistidos pelas políticas públicas. Talvez essas vidas tenham sido realmente banalizadas pelo sistema capitalista, mas não me considero retrógrado ou conservador ao insistir na defesa da dignidade, ainda que viva em uma sociedade individualista e imediatista como a nossa onde tudo parece facilmente transformar-se em objetos sem valor. A coisificação da vida, na minha concepção, ainda é algo intolerável e insuportável. E não estou falando de sentimentalismo ou falsos moralismos, mas de preceitos morais e éticos que nos parecem cada vez mais ausentes. Principalmente se considerarmos que na escala das espécies habitantes da terra nos encontramos no topo por sermos considerados animais racionais.

Hoje também agradeci por ter tido a possibilidade de ser educado em outros tempos. Não que o passado tenha sido melhor, ou menos violento, que presente. Mas talvez por que na corrida pelo desenvolvimento econômico tenhamos nos esquecido de investir no desenvolvimento moral, consolidando valores mais alinhados a condição de humanos. Sempre aprendi a separar o joio de trigo, ou seja, o que nos serve do que não presta. Talvez essa aprendizagem antiga me tenha possibilitado enxergar e entender a verdadeira dimensão e valor de certas coisas já aparentemente esquecidas e abandonadas entre nós. A própria lei do desenvolvimento organizacional, tão disseminada e cultuada nos dias atuais, prega a existência ou estabelecimento de um lugar adequado pra cada coisa. Mesmo sendo anterior aos paradigmas da qualidade total e da tão sonhada qualidade de vida, sempre aprendi que lixeiro nunca foi espaço para depósito de vidas. É neste sentido, que acredito que as contradições humanas tem se revelado cada vez mais cruéis, chegando mesmo a barbárie e selvageria. Na situação das duas criaturinhas abandonadas a sorte em meio a entulhos e dejetos urbanos, não seria maior a contradição se o referido coletor de lixo não se encontrasse instalado quase em frente a uma unidade hospitalar. Não é assustador imaginar que em uma mesma rua se salva e eliminam-se vidas? Mas estranho ainda, não seria pensar que pessoas da área de saúde conseguem passar apressadas por pequenas criaturas que gritam por socorro sem percebê-las? Não é aterrador constatar que o sistema político e econômico que estabelecemos como modelo de sucesso apropriado as nossas necessidades insensibilize pessoas a ponto de se mostrarem indiferentes a dor alheia?

Eram apenas duas pequenas e indefesas criaturinhas que choravam o abandono espontâneo ou forçado da mãe. Eram apenas duas insignificantes recém nascidas que imploravam cegas pela chance de continuar vivendo. Apenas duas minúsculas guerreiras diante dos desafetos de uma grande cidade. Como se manter inerte e indiferente às suplicas quase que finitas de duas criaturas que nem mesmo abriram os olhos para a imensidão de um mundo, que caminham a ermo, atropeladas por cordões umbilicais ressecados pela poeira e sujeira das ruas? Como negar socorro a quem não sabe o que é a vida, mas instintivamente insiste em contrariar a própria sorte? Como não chorar diante da decadência e putrefação da sociedade? Como não lastimar o produto ou substrato em que nos transformamos? Eram apenas duas pequeninas vidas que consegui enrolar e agasalhar em uma camiseta velha e suada. Dois pequenos seres que conseguimos acomodar em uma velha caixa de papelão, também retirada do coletor de lixo. Duas minúsculas viventes que poderiam ser estraçalhadas entre os pneus dos carros estacionados próximos ao meio fio onde foram deixadas. Eram apenas duas frágeis criaturinhas com poucos dias de vida dependendo apenas de um pequeno gesto de solidariedade e respeito.

Acomodadas em trapos e panos velhos ambas choraram a dor do abandono. Choraram a dor da fome e do frio. Sofreram ao buscar o aconchego materno que lhes fora negado de forma tão grosseira e desumana. E ambas miaram pela noite desconhecida, amontoadas uma sobre a outra como que buscando a cumplicidade do aconchego. Ambas me negaram o sono, por não saber como lidar com a situação. E eram duas criaturinhas tão minúsculas que mal cabiam numa palma das mãos. Vidas que se mexiam agoniadas ao mínimo atrito com a pele estranha. Seres que adormeciam cansados e vencidos pelo inevitável. Confesso que nunca chorei tanto em minha vida. Segurar aqueles dois desprotegidos corpos que cabiam em apenas uma das mãos me fez refletir sobre nossa própria impotência diante dos nossos próprios destinos. Eram apenas duas gatas recém nascidas, apenas dois animais abandonados, apenas duas vidas, como tantas deixadas pelo meio do caminho. Eram tão novinhas que não suportariam uma noite nas ruas. Mal têm pelos para proteger-se do frio. Suas patas são tão finas e transparentes que mal conseguem possibilitar que se arrastem em busca de comida. Seus gemidos eram tão fracos que pareciam anunciar o fim. Estavam tão desnutridas que um sopro mais forte poderia lhes tirar a vida. O ultimo fio de vida que lhes restavam e que pareciam agarrar como algo extremamente precioso.

Hoje penso que uma noite de sono perdida não é nada diante de uma vida que se salva. Uma noite angustiada não representa perda diante da possibilidade de se fazer o bem. E varar a noite acordado para acarinhar e/ou acalentar tamanha fragilidade não representa nenhum grande esforço diante do significado da vida. Não é preciso grandes sacrifícios, basta sensibilidade. Atos e ações simples que podem mudar o mundo. Não o mundo como um todo, pois que este não muda mais, mas pelo menos o destino de poucos. De alguns que sejam. O próprio destino, que parece nos chamar a atenção para o congelamento de nossos sentimentos. Eram apenas duas gatinhas friorentas e enrugadas, mas poderiam ser duas crianças humanas. Apenas duas felinas assustadas e ainda cegas pela pouca idade, mas poderiam ser duas idosas já cegas pela velhice e falta de amparo e assistência adequada. Duas criaturinhas que de tão pequenas mais pareceriam duas ratinhas despeladas, como tantos recém nascidos humanos que dormem sozinhos sobre velhos papelões em baixo de marquises impregnadas.

Hoje penso depois de passado o primeiro sufoco no quanto estamos despreparados para proteger vidas e garantir direitos. É que depois de uma noite atordoada, tentando alimentar ao mesmo tempo dois seres famintos através de uma seringa com leite desnatado, o dia não se fez menos estressante ou indigno. É que se a rede de proteção a vida, destinadas a proteger pessoas humanas em risco de morte, em nosso Estado, apresenta falhas e deficiências que comprometem a atuação imediata e segura; a rede de proteção aos animais, quase inexiste. Das poucas instituições e equipamentos acionados, ainda na madrugada, consultados e identificados através da internet, nenhuma retornou o pedido de socorro e ajuda. Dos tantos “S.O.S bichos” e ou “pró-bichos” da vida, nenhum se dignou ao menos a responder perguntas ou auxiliar ações. Para quem é marinheiro de primeira viagem no socorro e salvamento de vidas, sejam humanas ou animais, talvez a experiência de correr contra o relógio sirva como ponto de reflexão sobre nossas próprias insanidades e inércias. Talvez nessas horas consigamos perceber o quanto continuamos permitindo que alguns discursos ideológicos tenham e continuem apenas se transformando em marketing pessoal e/ou institucional. Talvez nos apontem de fato sobre o que é feito com os recursos públicos que advêm de nossos sacrificados impostos. Talvez nos falem da nossa própria insensibilidade e descompromisso e/ou alienação política. Talvez nos evidencie o quanto nos acostumamos a banalizar e desmerecer o direito a vida e a dignidade cidadã. Mas talvez, também não nos diga nada, o que é uma pena lastimável porque precisaremos continuar desembolsando nossas próprias verbas para garantir um serviço que é responsabilidade e obrigação do setor público.

Hoje me sinto realmente feliz, porque poderei dormir o sono dos justos, como se diz popularmente pelas bandas daqui. Não por ter feito algo que considero mais do que obrigação de qualquer ser humano, mas por saber que as duas pequenas vidas depositadas bárbara e covardemente em um depósito de lixo qualquer, agora dormem alimentadas e bem cuidadas em uma clínica especializada.

E neste sentido, na ausência das fundamentais e eficientes instituições protetora dos animais em nosso Estado, em nome de “Whithney” e “Latóya”, obrigado a Normando Viana, pelo apoio, atenção e profissionalismo em mais uma empreitada em nome do respeito ao direito a vida, direito fundamental a qualquer ser.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O [DES]RESPEITO AS DIFERENÇAS NA PÓS MODERNIDADE


MODELO ANO 1992





O DIA QUE MINHA TELEVISÃO VIROU RÁDIO


Esta semana minha televisão virou rádio. Na verdade perdeu a imagem, o que dá na mesma coisa. Não é isso que diferencia os dois aparelhos? Assim, tenho em minha sala um rádio enorme, no melhor estilo anos noventa, pelo qual tenho tentado me manter informado e logo, antenado com o mundo. E garanto a vocês que voltar a ouvir o rádio tem se mostrado uma experiência prá lá de inusitada. Sentado no estofado, diante da TV, me coloco a identificar pessoas e personagens pela voz. Seria mais ou menos o mesmo processo ou habilidade utilizada pelos deficientes visuais. Lógico que no meu caso existe um referencia anterior que me possibilita, por exemplo, reconhecer oral e visualmente o William Bone anunciando a entrada do Jornal Nacional. Sua voz é inconfundível assim como o é a de vários atores, atrizes, políticos e personalidades públicas que diariamente invadem nossas casas. Neste caso a memória conecta-se a audição, e juntas formatam uma imagem visual que será codificada e reconhecida pelo cérebro. Pelo som também nos é possível reconhecer determinados caráter. Digo isso, porque facilmente se reconhecerá na voz da Lílian Cabral o talento e a competência comuns as grandes atrizes. A veracidade transmitida através do texto torna-se perceptível, principalmente quando em oposição aos ditos novos talentos que apenas vomitam diálogos. Esses nada revelam além dos seus próprios egos que anulam a existência de personagens verossímeis. Traduzindo no bom português, o que desejo realmente dizer é que pela voz facilmente se reconhece quando o emissor é um sujeito digno ou um falsário nato. Tentem por experiência, ou mesmo por curiosidade, fechar os olhos ao escutar os discursos de determinados políticos. Neste sentido, acho até este seria um excelente recurso para a escolha correta de nossos candidatos a cargos públicos, e automaticamente representantes do povo.
Mas deixando a política de lado, até porque não é este o meu objetivo no momento, digo que ouvir televisão nos possibilita ampliar visões. Talvez porque as imagens traiam os objetivos e interesses ocultos. Talvez porque as embalagens tenham ganhado mais destaque do que a verdadeira qualidade dos produtos. Mas independente destas conjecturas, o fato é que não sei o que fazer com um aparelho, que pela lógica capitalista que estimula o consumo desenfreado, tornou-se totalmente ultrapassado. Se os tempos fossem outros o mandaria a uma assistência técnica, onde trocariam suas peças. Em poucos dias teria de volta minha televisão. Mas hoje em dia não existem mais assistências técnicas. Pelo menos, não como antigamente, instaladas e/ou espremidas em pequenos estabelecimentos espalhados por todas as esquinas. Nos dias atuais os eletrodomésticos com mais de dois anos são transformados em lixo. Assim, penso que o destino de minha televisão seja o deposito coletivo que se localiza na escadaria de meu prédio. Imagino então uma espécie de enterro. Um funeral para o passado. Em um dia qualquer pegarei o velho aparelho, sairei pela porta, me dirigindo as escadarias. São seis degraus até o coletor de lixo onde a mesma será depositada e aguardará até que o funcionário a carregue para onde não sei. Na verdade já o fiz, mas confesso que levei certo tempo para tomar a decisão. É que de certo modo, se livrar dos mortos me parece mais fácil. Mas minha televisão ainda falava, logo estava viva. A falta de imagem era apenas um defeito, provavelmente desenvolvido pelo desgaste causado pelo longo tempo de serviços prestados. Anos após anos ela me trouxe notícias e informações importantes que contribuíram significativamente para o meu desenvolvimento pessoal, e até para minha formação intelectual. Ou seja, aquele não era apenas um eletrodoméstico. Era na verdade uma companheira que me mostrava um pouco de tudo, ou o tudo de cada pouco. Imparcialmente me revelava grandes verdades, muitas vezes escondidas nos subtextos ou entre linhas. Nunca emitia opiniões, nem mesmo revelava cansaço, e muito menos contrariedade durante minhas noites de insônia. Sempre lá, quieta e funcional, como um antigo criado que alivia ou abafa os próprios passos para não incomodar o sinhozinho. 
Só sei que por motivos lógicos, ditados pela modernidade desafeta, eu mesmo condenei aos lixões minha velha e antiga amiga portátil. Com certeza alguns pensarão que estou louco ou sofro de algum transtorno por me apegar a um aparelho cafona e fora de moda. Outros questionarão se sou materialista ao ponto de chorar por uma televisão sem identidade própria que de uma hora para outra se tornou rádio. Digo então que não é a matéria, mas a essência que me causa falta. Na verdade reflito sobre o porquê trocá-la por outra mais moderna e eficaz. O fato de ter ficado velha e ultrapassada não a destitui do seu lugar significativo e simbólico na minha história. Assim como o fato de não mais possuir imagem não a destitui da condição de televisão. Na verdade minha reflexão não é em si sobre a TV, mas sobre o quanto descartamos os intoleráveis defeitos. Penso que como as pessoas, as televisões não precisam ser iguais. A minha, por exemplo, poderia continuar apenas falando, pois que continuaria cumprindo com sua principal finalidade – a de informar e atualizar conteúdos. O problema em si não está na dificuldade de conviver com coisas ou seres, digamos “incompletos”, mas no desrespeito às diferenças. Não sabemos ainda conviver com isso. Basta ouvir o que as próprias televisões nos dizem cotidianamente. Quantas violências elas nos tem revelado sucessivamente dia após dia? Quantos negros, homossexuais, pessoas obesas, pessoas com deficiência, miseráveis ou apenas pobres tem protagonizado os folhetins da Rede Globo, por exemplo? Onde essas pessoas, ou segmentos da população encontram-se representados além das páginas policiais, programas de humor duvidoso ou programas sensacionalistas, onde despertam piedade elevando os ibopes?
Mas na novela da Manoel Carlos tinha uma tetraplégica e uma negra como protagonista e antagonista, reclamarão os insensatos. Na novela do Gilberto Braga tinha a maior quantidade de gays, jamais visto numa novela do horário nobre, dirão outros menos sensatos ainda. Na novela do Agnaldo Silva a protagonista é pobre e batalhadora, aplaudirão os desavisados. Neste sentido, repito mais uma vez que televisão não é só imagem. É preciso escutar para entender e contextualizar os processos de transformações sociais. Relembro então de uma reportagem antiga, onde a atriz Rute de Souza falava sobre sua trajetória fantástica nas artes cênicas. O destaque era um grande prêmio recebido pelo excelente desempenho em um espetáculo de teatro. Falava-se de reconhecimento quando lhe perguntaram sobre a sua maior mágoa. Com os olhos cheios de lágrimas e com orgulho ferido, revelou seu sonho de ser um dia capa em uma revista de grande circulação. Mas as revistas não estampavam mulheres negras em suas capas, mesmo que fossem talentosas e competentes em suas áreas de atuação. Diante da pergunta sobre a possibilidade da realização de seu sonho, a grande mulher apenas retrucou: “agora não precisa mais”. É nesse contexto que quando digo que a TV mostra mais que imagens, refiro-me a contradição do público aplaudir o fato da Thais Araújo ser a primeira atriz negra a protagonizar uma novela das oito na Venus Platinada. Alas duas, pois anteriormente já havia protagonizado uma novela das sete. Na verdade não vejo motivos para se aplaudir reconhecimentos tardios e involuntários. Afinal de contas, os negros “se tornaram gente”, no senso comum brasileiro, através do poder aquisitivo. Não é mesmo caminho trilhado pelos homossexuais? Não é verdade que quando os pobres chegaram ao horário nobre foi porque a burguesia migrou para as TVs por assinatura? Resumindo, é preciso entender que se atualmente as diferenças povoam novelas e programas, é simplesmente porque as camadas sociais das classes C e D tornaram-se os principais consumidores das TVs abertas e não por reconhecimento, respeito ou cidadania. Isso é analisar o discurso que se apresenta por trás do discurso.
Logo o tão falado respeito às diferenças também tem se estabelecido pelo viés do capital. Quem tem se faz representar. Quem não tem se mantém na invisibilidade. Assim, as transformações sociais parecem ainda se pautar nas possibilidades e não no estabelecimento de direitos. Acho que essa é a maior falta que a minha velha televisão me fará. Acho que não precisamos, ou mesmo devemos cobiçar o consumo de imagens esteticamente limpas e             “multi-tridimensionais” onde as pessoas comuns e profissionais precisam aparecer maquiadas de forma extravagante para esconder imperfeições. Não precisamos de imagens que transformam pessoas e profissionais negras em personagens menos étnicos, desfigurados pela ditatória regra higienista. Não basta colocar negros, pessoas com deficiência, homossexuais e pobres na tela plana, mais lhes conferir dignidade. Não nos basta apenas ver para acreditar numa imagem de igualdade forçada e camuflada, mas é preciso ouvir para contextualizar os discursos. E aí sim, talvez na experiência de ouvir mais e acreditar menos nas imagens pasteurizadas, consigamos entender o continuísmo da exclusão social que ainda é vendida como modelo de democracia no Brasil.
Dessa forma, mais uma vez me coloco na contramão da mídia imediatista e vazia da modernidade, para lembrar que ao contrário do que pregava determinado comercial, “imagem não é tudo!”