segunda-feira, 16 de abril de 2012

VITÓRIA DO SPORT E DUAS MORTES NA BOA VISTA

AV. CONDE DA BOA VISTA EM 14.04.2012


FORAM APENAS DOIS GOLS E DUAS MORTES.

Ontem, 14 de abril, foi dia de jogo. Como diriam os fanáticos: “Dia de Clássico!”. E como sempre acontece, a batalha que se iniciou na Ilha do Retiro, sede do Sport Futebol Clube, se estendeu a Av. Conde da Boa Vista. Dois gols e duas mortes consagraram a vitória do Leão. Semelhanças a parte, acredito que está na hora de providências mais sérias e assertivas. Talvez seja necessário, urgentemente, redefinir as regras do jogo. Não do que acontece no gramado da grande arena, mas do que acontece nas ruas do centro da cidade, transformadas em verdadeiros campos de guerra. No ano passado postei sobre as dificuldades dos moradores do centro em sair às ruas em dia de jogo. É preciso contar mais do que com a sorte. É preciso criar estratégias de sobrevivência.

Em dia de jogo, a cidade sinaliza a inevitável barbárie. Ônibus chegam repletos de jovens uniformizados que se penduram pelas janelas aos gritos de guerra: “Ão! Ão! Ão! É no cu do campeão”. Dessa vez era a Inferno Coral, torcida organizada do Santa Cruz Futebol Clube, que as pressas tomaram a avenida. Em dias anteriores a Torcida Jovem, do Sport já vez suas vitimas, assim como a torcida organizado do Náutico. Mas ontem eram milhares. Estatura mediana, faixa etária demarcando a juventude, comportamento de malandros. Talvez o perfil desse tipo de torcedor possa variar um pouco, mas no geral torna-se via de regras a todas as torcidas. As ruas ficaram brancas, mas não sinalizaram a paz e fraternidade. A movimentação de patrulhas alterou, mais uma vez, a dinâmica da cidade. Pessoas correram de um lado para o outro, desorientadas e inseguras. Não que o recifense seja alienado, mas ninguém é obrigado a saber os dias de batalhas e selvagerias que se tornam cada vez mais comum no centro urbano. Talvez os patrocinadores do espetáculo sangrento, ou mesmo o governo, devessem estabelecer um calendário para as batalhas autorizadas e distribuir junto à população informações de como agir em situações de emergência. Isso com certeza não evitariam as tragédias, mais minimizariam os riscos para as pessoas inocentes, cidadãos que pagam altos impostos, pegos de surpresa.


O fato é que quem mora no centro do Recife torna-se prisioneiro em dia de clássico. Portas e portarias trancafiadas acuam os moradores em celas domiciliares. As janelas ficam repletas e se transformam em verdadeiras arquibancadas. E não é preciso esperar muito, pois logo termina a partida no campo a outra se estabelece diante dos olhos atônitos. Com um pouco de sorte, podemos inclusive presenciar a brutalidade de perto. Ontem, por exemplo, ao sair do cinema do Shopping Boa Vista, me vi em meio a uma multidão que seguia rumo ao cruzamento com a Rua do Hospício, ponto de concentração e demonstração de força e irracionalidade. Não se tem alternativas de fuga a não ser correr para casa e torcer para não ser alvo de pedradas e pancadarias sem pretextos ou motivos. Nestes casos, inclusive, é preciso entender que caso você se torne vítima das agressões, que podem ser físicas ou verbais, não terá sido nada pessoal. É apenas mais um reflexo da torcida ensandecida com o resultado do jogo. E neste sentido, ganhar ou perder também não importa. O fundamental é extravasar a energia acumulada. É exteriorizar os demônios, que quase sempre não estão relacionadas aos jogos, mas aos fracassos e as frustrações de vidas sem grandes perspectivas. O jogo em si, torna-se canal para liberar tensões. Um espaço para a catarse. Um meio para esvaziar o corpo e a mente já vazios de tudo, e assim aguentar os dias que se seguem e delimitam futuros insertos e insólitos.

 As batalhas de ruas já se tornaram problema e fenômeno social plausível de análises mais sérias e precisas. Claro que os jogos não são as fontes ou causas diretas da violência urbana. Esta, também enquanto fenômeno social da modernidade tem outras raízes. Os jogos de futebol apresentam-se apenas como a ponta de um iceberg que esconde fatores relacionados ao sistema socioeconômico que estabelece desigualdades, seja de classe, de etnia, de gênero ou geracional. A falta de acessos a serviços e bens comuns, com certeza, abre espaço para a criação e o estabelecimento de alternativas. Se não se tem acesso a espetáculos de qualidade, por exemplo, criam-se os próprios, onde inclusive se pode ser protagonista. E é neste aspecto que homens comuns tornam-se heróis, mesmo que agindo na contravenção. Não importa! O que verdadeiramente se se torna urgente é saciar a necessidade do protagonismo da situação, mesmo que de forma momentânea. Tornar-se dono do momento e do fato. Quebrar as normas excludentes e ditar as regras que definem as posições de poder. Um poder alcançado pela força. No peito e na raça, como no jogo. Isso também é um jogo, ou extensão deste. Se no campo se sai vitorioso é preciso se fazer reconhecido nas ruas. Se no campo se sai derrotado é preciso compensar em outros espaços, outros aspectos. Tudo se torna campo, tudo se torna jogo. O importante é entender as regras e saber jogar. Assim, as barbáries nas ruas, a meu ver, nada mais são do que movimentos de massa em prol de reivindicações de direitos a igualdade, mesmo que forma inconsciente.


Apesar de constantes, essas batalhas vêm ganhando espaços e corpo cada vez maiores. A de ontem atingiu o recorde de violência contabilizando duas mortes. Os espetáculos ganham novos recursos e efeitos a cada dia. Estabelecem-se as tramas onde os personagens se transformam em vilões e bandidos que disputam em arena aberta. A sonoplastia é enlouquecedora. O ruído provocado pelas sirenes e pneus das viaturas da polícia dá um toque surreal à cena. A fumaça provocada pelos fogos de artifício e spray de pimenta nos remete as imagens dos filmes americanos. Os transeuntes se transformam em figurantes correndo transloucados por todos os lados. E quem está nas janelas nem precisa pagar ingresso. Neste aspecto, penso que sendo este, o primeiro de uma série de jogos que definirá o torneio, poderia mesmo cobrar certo valor sobre o aluguel de minha janela. E vou logo avisando que a localização é privilegiada. De minha sala vejo todos os ângulos e ainda posso filmar para rever em câmera lenta mais tarde. Talvez seja essa uma alternativa viável aos moradores do centro. Quem sabe assim tiramos um pouco de proveito da violência que se espalha a nossa frente e nos igualamos aos patrocinadores da barbárie, representados pelos dirigentes dos clubes de futebol local. Se eles podem se preocupar apenas com o arrecadado nas bilheterias, sem se importar com as consequencias sociais e políticas de seus negócios milionários, porque nós simples mortais não podemos? E agora, com a possibilidade de presenciar mortes reais, em tempo real e vítimas reais, melhor ainda. Quanto mais sangue, mais lucro. Não é a lógica do capitalismo selvagem em que vivemos?


É o retorno ao pão e circo de sempre, e que sempre se mostrou como estratégia de controle e regulação da massa. Não é verdade que a contravenção, e consequentemente a violência, chega sempre onde o Estado se omite? E nestes casos, a violência não vem das ruas, mas para as ruas e avenidas onde se armam trincheiras e frontes de guerra. Definitivamente não se desce as ruas em dias de jogo. Não, não se desce! Pois que o melhor espaço é a janela de onde se presencia o resultado de um sistema sociopolítico e econômico fadado ao fracasso. Ontem foram apenas dois gols e duas mortes. Que venha a Copa do Mundo de 2014! Que venham os grandes clássicos, pois que estamos prontos para o confronto nos campos, regados por bebidas alcoólicas autorizadas, e também nas ruas desprotegidas, onde se estabelecem as verdadeiras batalhas. É ganhar ou perder. Façam suas apostas, porque os ingressos para o meu camarote particular já estão à venda.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

RECIFE

SOU DE RECIFE, SEU MOÇO
Epitacio Nunes
 
Se me perguntar de onde sou, bato no peito e digo: sou daqui mesmo, seu moço!
Da cidade onde o mar se arrebenta nas pedras complexas de vidas.
Das favelas repletas de vigas.
De palafitas suspensas sobre as marés.
Dos velhos sobrados e mucambos.
Das casas históricas, com ou sem eiras e beiras.
De morros e ribanceiras.
Das palmeiras onde conta o sabiá.
Sou daqui mesmo, seu moço!
Nativo das ilhas interligadas por pontes que se sobrepõem aos rios.
Da Veneza brasileira onde atracaram navios.
Que trouxeram estrangeiros de todos os cantos.
De onde os negros entoaram seu canto.
E encheram a cidade de luz para nos fazer multiétnicos e multiculturais.
Tenho origem mestiça e sou nordestino.
Não sou de além mar e nem dali.
Simplesmente sou daqui.
Sou assim mesmo, seu moço, e desde menino.
Mistura de mundos e fundos, de tudo e de todos.
Múltiplos em essência.
Junção de três raças, multiplicadas em cores.
União dos quatro elementos transformados em odores.
Atrevidos como a água que abranda o fogo, mas também mansos como o ar que percorre terras socadas.
E das mãos do Mestre Vitalino, saímos da terra molha.
Temos a pele suada, salgada no mar e dourada no sol.
Herdamos a beleza dos antepassados.
Fizemos a força nos braços.
Abrimos ruas ao Príncipe, à Princesa, à Imperatriz e ao Imperador de sangue azul.
Criamos terreiros para os Reis e as Rainhas do maracatu.
Construímos a Palmares de Zumbi.
Defendemos as florestas e matas de Tupan.
E olha seu moço, se nosso sangue é quente é devido à dor das guerras travadas.
E foram tantas as batalhas, que nem cabem nos dedos das mãos.
Acho até que essa gente daqui inventou a revolução.
Por isso quando me perguntam de onde sou, bato no peito e digo: sou daqui mesmo, seu moço!
Parente de Holanda e irmão de Olinda.
E das ladeiras gritei: Oh, que cidade mais linda, onde nasceu a primeira República.
Pela qual tombou Padre Roma, enforcaram Frei Caneca e mataram Abreu e Lima.
Mas também teve batalha nos Montes Guararapes, revolta nos Afogados e luta em Itputinga.
Por isso seu moço, não por acaso somos o Leão do Norte.
E não sem motivos nosso brado se fez forte.
Porque nunca contamos com a sorte.
Mas pela terra, seu moço, ofertamos a própria morte.
E se o sol castiga o corpo, a gente levanta cedo.
Pois é na marra que a gente vence o medo.
É no grito que a gente ganha à guerra.
Foi na força que moldamos a terra.
Terra de Lampião e Maria Bonita.
Da morte de João Pessoa.
Onde Maurício de Nassau fez o boi voar.
Até o “Zepelim”, um dia, seu moço, resolveu aparecer por cá.
E saiba que nestas ruas que por ora pisas já desfilaram a Rainha e autoridades.
O Galo da Madrugada, o Homem da Meia Noite e o Bloco da Saudade.
Temos as mais velhas e belas cidades.
Lugar onde nasceu a sobriedade e se forjou o caráter de homens fortes.
Por isso, seu moço, se me perguntar de onde sou, bato no peito e digo:
sou da terra do grande Paulo Freire e Miguel Arraes.
Do Francisco Brennant , Manoel Bandeira e muito mais.
Morada de Gilberto Freyre e de João Cabral de Melo Neto.
Destino dos tantos Severinos e Severinas.
Das edificações de Joaquim Cardoso, sem iguais, como as campinas.
Da sensibilidade de Ariano Suassuna à irreverência de Hermilo Borga Filho;
Da melodia de Luiz Gonzaga à sabedoria de Luiz Inácio Lula da Silva.
Todo filho do nordeste conta, canta, escreve e encanta suas sinas.
E até mesmo o Jomar Muniz de Brito com sua língua ferina,
ressalta as belezas da “cidade menina dos olhos de mar”.
E saiba seu moço, foi daqui que nasceram os versos de Carlos Pena Filho,
Ascenso Ferreira, Levinto e Capiba, que tanto encanta os carnavais.
Aqui também brincou Clarisse Lispector que encantou seus quintais.
Somos o berço dos maracatus, caboclinhos, samba e afoxé.
Somos da terra que ferve ao som de Alceu Valença, Lenine, Chico Science, Lia de Itamaracá e André. Somos o povo que dança o forró de pé de serra, coco de roda, ciranda e baião.
Acima de tudo seu moço, somos da terra do inesquecível Gonzagão.
Por fim, seu moço, se deseja saber mais, bata no peito e abra os braços.
Seja bem vindo à terra dos arrecifes de corais.

Texto apresentado na abertura do II Encontro Brasileiro de Geoprocessamento
Eletrobras/Chesf - 12 e 13.04.2011

terça-feira, 3 de abril de 2012

PRENUNCIO DO INVERNO

De minha sala escuto o cantar “zig-zadeado” de uma cigarra. Meus olhos correm para fora da janela, mas me defronto com as grandes paredes de concreto repletas de persianas coloridas. Estas torres de quadrados metálicos, forrados por cortinas, substituíram as árvores de minha infância. E era das árvores frondosas de meu quintal que as cigarras anunciavam a chegada do inverno. Quando elas cantam é sinal de chuva. Todo mundo sabe disso. Mas aqui a chuva também é diferente e não tem a mesma magia de outrora.

Chuva com sol, casamento da raposa com rouxinol, cantávamos quando crianças. Há quanto tempo não tomo um banho de chuva? Acho que da última vez estava a caminho do trabalho, e provavelmente reclamei e xinguei o mal tempo ou a má sorte. Quando nos tornamos adultos passamos a estabelecer outros tipos de relações com a natureza. É como se deixássemos de observá-la. O tempo da infância é diferente, parece maior. Os dias são mais longos e preguiçosos. Depois que a gente cresce não encontramos mais tempo para nada. Estamos sempre atrasados, o que nos gera angustia e estresse.

Não sei exatamente onde, ou quando, me perdi do menino que fui. Na verdade pouco me lembro dele. De um garoto que queria ser veterinário e desenhava em folhas de caderno. Que corria junto a um cachorro de pelo malhado, que dizíamos ser cor de burro quando foge. Um garoto que queria ganhar o mundo e descobrir coisas diferentes. Que se enfiava em livros e se perdia em mundos desconhecidos. Que subia em árvores e saltava de galho em galho durante o dia inteiro. Que comia azeitona roxa e pitomba, pitanga, araçá e caju. Que imaginava que podia ser “como gente grande” e pensava que sabia da vida. Não sabia!

Acho que todo mundo cultiva um pouco do complexo de Peter-Pan, querendo permanecer criança para sempre. As coisas parecem bem mais simples. Tudo é interpretado e absorvido com mais facilidade e sem grandes questionamentos racionalizados. Quando aprendemos a tornar as coisas complexas demais? Chatas demais? Difíceis demais? Provavelmente quando perdemos a ingenuidade. Quando insistem que não somos mais crianças e que devemos abandonar as fantasias e sonhos. Quando passam a nos tratar e nos olhar de outras formas. São essas coisas que vão demarcando nossos ciclos de vida. O próprio mundo parece se encarregar de nos dizer quando devemos abandonar a infância, quando saímos da adolescência, o quanto não se é mais jovens, e logicamente, quando nos tornamos idosos.

Provavelmente, o mundo também se encarregará de nos avisar quando deveremos nos preparar para morte e fim de nossa história. E neste ponto, planejo seguir a sabedoria dos elefantes, que se afastam do grupo para morrer sozinhos longe do bando. Não solitários, mas em paz consigo mesmo.