sábado, 17 de julho de 2010

A HISTORIA DA MINHA VIDA - Inserção na Área Social

Capítulo VII – Lutando Por Garantias de Direito



Quarenta anos depois, estava eu de volta ao meu passado. Era como se na verdade nunca tivesse abandonado aquele lugar, ou mesmo, nunca houvesse conseguido sair realmente do meu subúrbio. Acredito que não conseguimos fugir as nossas origens e em alguma situação ou momento da vida voltamos em busca de novas respostas. Lembro-me que em um dos espetáculos que participei, um velho balseiro explicava pacientemente ao jovem Sidarta que “o rio sempre volta por onde outrora passou” (pois é também li o Hermann Hesse). E neste sentido, mais uma vez o rio de minha vida me traria de volta através dos projetos sociais. E tudo começou ainda no inicio de 2003, quando fomos convidados por uma distribuidora de energia para desenvolver e executar um projeto voltado à educação e orientação da população sobre o uso eficiente da energia elétrica. Mas uma vez recorremos ao teatro enquanto ferramenta de educação, e através das aulas espetáculos mantivemos o projeto vivo por um período de quase oito anos. Iniciava minha vivencia com o que hoje chamamos de comunidades. No final do ano, efetivamos parceria com a Secretaria de Desenvolvimento e Turismo de Ipojuca e desenvolvemos o Projeto Porto Verão, objetivando promover o resgate e fortalecimento da cultura da Região. E pude viver a prática dessas comunidades que classificamos como em vulnerabilidade social.



Já em 2007, meu “grande mestre de olhos verdes” idealizou um projeto de inserção social através da arte circense, voltado a crianças, adolescentes e jovens de nove comunidades em situação de vulnerabilidade social, localizadas no município onde, como diria o Naum Alves de Souza, vivi toda “a aurora da minha vida”. Não sei se por coincidência ou destino, mas o fato era que voltava as minhas origens. A cidade não era mais a mesma, como também não eram mais os mesmos, seus habitantes, comércio e infra-estrutura. Tão comum aos grandes centros urbanos, observava-se agora um crescimento demográfico desenfreado e sem planejamento.



Meu antigo subúrbio, aquele que guardo até hoje nas lembranças, e me persegue em sonhos, agora não existia mais. Tinha sido alçado ao patamar de município mais violento do país e revelava nuances que nunca tinha percebido. Era outro olhar, outra percepção e outro nível de consciência. Mas posso dizer que participei, e de certa forma pude acompanhar tal processo de desenvolvimento. Relembro por exemplo, que em 1982, ano que o antigo distrito tornou-se emancipado e foi elevado a categoria de município, participei de um concurso que objetivava a criação de sua bandeira (e imaginem fiquei em segundo lugar). Também participei de forma efetiva da primeira eleição para prefeito, indo a comícios, distribuía os famosos “santinhos” e realizando pesquisas de opinião pública. Até boca de urna já fiz. Só nunca transferi meu voto, ainda que acreditasse nas propostas políticas de meu ex-cunhado, porque sempre acreditei que como cidadãos conscientes, devemos participar ativamente de lutas e conquistas que beneficiem o município em que residimos de fato. Assim, não me sentia mais membro daquela sociedade e também não me permitiria agir de forma politiqueira visando meus próprios interesses. Sou do tipo que acredita na força do voto e no valor da democracia.



Quanto as oficinas de circo, consideramos as oito comunidades localizadas nos bairros com os maiores índices de violência. Passei a conhecer meu espaço de outra forma, sob outro prisma e perspectiva. Era impressionante observar como o tão sonhado progresso alterara a cultura e costumes do meu antigo povoado. Em uma dessas comunidades, brinquei muitas vezes correndo por plantações de macaxeiras e mandiocas. Existiam casas de farinha, e muitas vezes, acompanhava minha mãe em visitas a um tio meu. Hoje reflito sobre tais situações e vejo o quanto de violação de direitos e vulnerabilidades sociais éramos todos vitimas. Digo isso, considerando que em minha inocência de criança, adorava “brincar de trabalhar” na casa de farinha. Claro que para mim era apenas diversão e novidades, mas o mesmo não se dava com uma grande quantidade de crianças que ali ajudavam seus pais. Também é claro que não tinha noção do que seria exploração do trabalho infantil. Pensava que se divertiam tanto quanto eu, e até de certo modo, os invejava por morarem ali e poderem desfrutar daquele espaço o dia inteiro. Não entendia que tal fato significava a não inclusão escolar e falta de acesso a informações e condições mais dignas de sobrevivência.



Assim, muitas vezes os ajudava a torrar a farinha sobre o enorme forno redondo, colhia junto a eles as mandiocas, carregava-as em feixes pesados, ajudava-os a descascar e lavar, bem como a varrer o espaço a cada nova remessa. Divertia-me ao vê-los melados, como que pintados de branco, que hoje entendo como decorrência dos longos períodos de exposição ao pó da farinha e massa da mandioca. Aquelas crianças e adolescentes carregavam grandes latas com o leite que saia das mandiocas quando trituradas em “máquinas de moer”. Esse líquido depois de passar por uma espécie de decantação tornava-se goma, que seria utilizada em bolos e demais especiarias da culinária local. Também fazíamos “beijus” com o resto da farinha e comíamos anda quente. Mas também não percebia que muitas vezes, aquela seria para eles a única refeição do dia. Muitas vezes, alguns adultos ou mesmo crianças cortavam os dedos nas engrenagens das máquinas, e aí, parava-se as “brincadeiras” e o clima pesava no local. Não havia assistência médica, mas apenas pessoas mais experientes que faziam o sangue estancar. E assim, os acidentados ficavam afastados até poderem voltar às atividades, muitas vezes mutilados. Hoje vejo perplexo que para aqueles, o cotidiano nunca foi diversão e sim trabalho. Nunca foi emprego, era situação de exploração e risco. E acima de tudo, nunca foi exemplo de respeito, mas sim descaso e ultraje a dignidade humana.



E agora estava ali, diante do meu passado fantástico, com outro olhar. Não via mais os encantos, mas apenas as miserabilidades e falta de alternativas. Não existiam mais casas de farinha, mas em seu lugar havia agora um grande lixão que servia como fonte de renda aos que se aventuravam a catar entre os entulhos algo que pudesse ser comercializado. E catavam também comida, roupas, sapatos, móveis. Homens, mulheres e crianças catando sonhos no lixo de uma sociedade indiferente e injusta. Vi a dignidade humana jogada na vala fétida da pobreza de uma comunidade limítrofe abandonada por questões políticas que envolviam dois municípios vizinhos. Havia se passado três décadas e apenas os atores tinham mudado, pois as histórias de vida inseridas num cenário de violações eram as mesmas e se repetiam através das gerações. E neste ponto, confesso que tenho minhas restrições ao programa bolsa família e tantos outros programas de benefícios sociais, mas não posso negar a importância e eficácia do plano de governo atual no sentido de garantir e possibilitar o mínimo de condições de dignidade para os tantos milhões de excluídos que ainda vivem a margem e abaixo da linha da miséria.



Percebi naquele momento que tal cidade não tinha crescido, mas apenas inchado. Tínhamos agora pessoas em situação de rua (nomenclatura floreada para designação dos antigos mendigos). As drogas se espalhavam pelas ruas e o tráfico invadia as comunidades, (classificação que também substituiu as antigas favelas). A saúde da população continuava precária, tanto quanto era no meu tempo de infância. Talvez até pior, pois que nos dias atuais não se via mais a atuação das antigas benzedeiras. E lembro que quando menino sofria com uma doença esquisita que se chamava “cobreiro” (nunca consegui descobri o que realmente significava). Era uma espécie de bolha d’água que se multiplicava e se espalhava pelo corpo formando uma faixa na barriga. Os antigos diziam que se as duas partes dessa faixa se juntassem, formando uma espécie de cinturão, a pessoa morreria. Assim fui levado a uma dessas benzedeiras e ela “me rezou” com folhas de mamão. Acho que na verdade o que “sarou” o tal cobreiro foi muito mais o leite da folha do mamão que era colocado sobre as bolhas, do que precisamente a reza. Mas também não desconsidero o valor da fé e os efeitos positivos que a crença popular agrega as práticas terapêuticas. Esses conhecimentos tácitos e empíricos são heranças de nossas raízes indígenas e africanas. Não se pode esquecer que a sabedoria popular está pautada num conhecimento anterior a medicina moderna, e que cada povo conhece seus males e suas riquezas muito melhor do que qualquer grande estudioso ou especialista teórico.



Esse tal tio que visitávamos no outro lado da linha do trem era diferente dos demais parentes de minha família. Muitas vezes chegou inclusive a ser internado no antigo manicômio da cidade. Era o hospital dos loucos, como se falava naqueles tempos. Um lugar estranho e afastado, onde crianças não deveriam ter acesso. Eram pessoas “perigosas” que podiam nos fazer mal e por isso precisavam ficar isoladas da sociedade. Nunca consegui esquecer a vez que consegui ultrapassar os muros daquela “prisão de loucos”. E isso eu tenho que agradecer mais uma vez a minha mãe, que talvez por falta de alternativas, me levava a muitos lugares inusitados e que poucos tinham acesso. Lá as pessoas andavam nuas, perambulando pelos espaços como se estivessem ausentes dos corpos. Eram uma espécie de alma penada como se dizia com os seres desconhecidos que assustavam nossos sonhos. Não eram pessoas na verdade, eram semi-humanos, pois que eram “doidos” e devido a isso não poderiam ser considerados, ou pior ainda, tratados como “pessoas de bem e de direitos”. E é estranho perceber que ainda hoje, mesmo depois da reforma psiquiatra espaços como esses ainda consigam se estabelecer e se manter como equipamentos da saúde.



Mas, hoje refletindo melhor sobre esse tio, que nos contava histórias sobre “crocodilos e brabuletas”, percebo que não era louco, e sim, dependente de álcool. E não precisava de hospício e sim de tratamento para dependentes de substancias psicoativas. Precisava sim de emprego e de inserção social, num processo que incluiria educação, saúde e alimentação adequadas. Precisava de que o Estado possibilitasse o fortalecimento de seus vínculos familiares e comunitários ao invés de excluí-lo ou trancafiá-lo em fortalezas que protegiam o povo de suas loucuras e alucinações. Meu tio morreu atropelado, vitima do descaso de uma sociedade atrasada e de um Estado ausente e despreparado em relação à definição e efetivação de políticas públicas. Mas também posso dizer que ele, como tantos outros, morreu vítima de seu tempo.



Não que considere hoje as coisas tão diferentes, mas analiso a atual situação como processo de transformação e consolidação de direitos. Temos por exemplo, uma política nacional de assistências social e temos hoje um sistema único de saúde que se tornaram referências, inclusive para países classificados como desenvolvidos. Não digo também que tudo funciona as mil maravilhas, até porque se o dissesse estaria sendo demagógico ou louco. Mas temos as diretrizes que norteiam as grandes práticas. São ações embasadas e amaradas numa lógica de sustentabilidade. Temos os entraves sim, mas estes a meu ver estão relacionados à falta de qualificação profissional para atuação na assistência. Hoje não temos ausência de políticas públicas voltadas à garantia de direitos para a maioria dos segmentos da população. Temos sim, falta de entendimento e comprometimento com a aplicação e práticas de tais políticas. Estamos amarrados ao conceito assistencialista que norteou as práticas desde os tempos mais remotos de nossa história. Estamos ainda atrelados a noção de caridade empregada pelas igrejas, fazendo com que a pobreza seja útil e necessária para purgar nossos pecados. Temos um problema de cultura, onde se resiste às mudanças e se substitui política por negociações e arranjos eleitoreiros. Estamos ainda na era dos apadrinhamentos e por isso falamos de “oportunidade aos pobres” ao invés de garantia de direitos e cidadania.



E neste sentido, confesso que nada me incomoda mais do que ouvir gestores, técnicos sociais e mais uma enorme quantidade de pessoas que ocupam indevidamente cargos públicos, falarem nas tão valorizadas “oportunidade oferecidas”. Penso em que, e sobre que tipo de oportunidades está se falando? Não que tenha nada contra a palavra em si, mas contra a todos os conteúdos, preconceitos e noções de exclusões sociais que se encontram impregnadas e evidenciadas nas entonações utilizadas para verbalizá-la. Talvez por isso tenha preferido substituí-la em meus discursos por possibilidades. Prefiro não falar de ajuda, pois que isso implica nas noções de favor, doação, caridade e bondade. Troco-as por garantia de direitos, que se respaldam em leis e tratados universais. Falo de serviços que devem ser efetivados pelo Estado em cumprimento ao seu papel. Dissemino direitos constitucionais. E assim, penso que contribuo para o verdadeiro processo de transformação que se dará apenas através da educação e acesso ao conhecimento para todos. Trabalho pela conscientização da população sobre o entendimento de que não precisamos pedir esmolas, mas exigir a aplicação adequada de nossos impostos. E acima de tudo, de que governo somos nós e não apenas os políticos. E que estes sim, nada mais são do que apenas representantes, que escolhemos através do voto direto e democrático.



Descobria naquele momento, e sob a orientação do meu adorado mestre de olhos de esperança, com quem tenho enorme prazer de conviver e compartilhar opiniões, pontos de vista, posicionamentos e a vida, que sempre trabalhei e lutei por garantia de direitos. Primeiro como técnico de segurança do trabalho, viabilizando e favorecendo melhores condições de trabalho; depois como profissional de recursos humanos e gestão de pessoas, efetivando programas de desenvolvimento profissional e logicamente pessoal; como psicólogo clínico, facilitando os processos de autoconhecimento; como autor de teatro, levando através de meus textos informações e esclarecimentos a públicos e populações distantes e excluídas de informação e cultura; e por fim, como consultor e técnico social, através da elaboração e desenvolvimento de projetos e ações de inserção social. Talvez a mais importante e bela lição que tenha me ensinado refere-se a constatação de que para se trabalhar com direitos humanos, mas importante do que conhecimento de conceitos, é o entendimento da lógica que rege as concepções de igualdade como fundamento da vida humana.



Acho as vezes que as coisas acontecem em minha vida, como se numa sequência predestinada. Assim, minha inserção nas políticas públicas se deu em paralelo a entrada no mestrado. E ambos favoreceram um ao outro. Na academia descobria as teorias e pensadores dos direitos humanos. Na assistência social vivenciava a prática e aplicava conceitos e técnicas. Nesse aspecto, sempre me considerei um critico ferrenho ao funcionalismo público, e confesso decepcionado que me angustia verificar na prática que sempre estive certo em minhas convicções. Digo decepcionado, porque logicamente minha certeza se estabelecia pela observação dos serviços públicos, que a meu ver sempre deixaram a desejar enquanto serviços e produtos de qualidade. E porque verifico que atualmente a prática se mantém a mesma, sem eficácia e sem eficiência. Pensava eu, que tal situação se daria por uma questão de comodidade gerada pela tão sonhada estabilidade (e ainda acredito, pelo menos como uma das determinantes), porém constato que mesmos os prestadores de serviços temporários acabam incorporando tal sentimento de segurança e efetivam suas práticas, pautados na mesma cartilha. Considero mesmo importante se analisar o fato sob a ótica de vários fatores, porém não considero oportuno fazê-lo nesse momento. Mas confesso ser a favor do final dessa falsa estabilidade e na intensificação de uma cultura de empregabilidade, pela qual as pessoas precisem se manter empregáveis e competitivas no mercado de trabalho.



Assim, a vida acadêmica tem me possibilitado o embasamento necessário às ações e atuações que tento efetivar. Viajar pelo mundo do sexo comercial e dos boys de programa de Recife me abriu portas que me levaram para dentro do mundo real. Um mundo que se estabelece paralelo e que por questões de estratégias de defesa e sobrevivência se faz invisibilizar aos olhos menos atentos ou atenciosos. Um mundo que não pertence apenas a quem se prostitui, mas a todos que foram excluídos, marginalizados e estigmatizados pelas sociedades e governos. Assim, a vivência e convivência com quem sobrevive das ruas me ampliaram horizontes e favoreceu reflexões e posicionamentos que considero mais assertivos enquanto pessoa e enquanto profissional. A lida cotidiana com as mais variadas modalidades de violência e violação de direitos que atinge mulheres, idosos, crianças, populações em situação de rua, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, e tantas outras categorias e subcategorias representativas da população em geral, tem me possibilitado a reflexão e análise sobre o verdadeiro conceito de cidadania, e principalmente sobre o que é ser verdadeiramente cidadão.



Neste sentido, academia e prática social têm me possibilitado ir ainda mais longe e levar minhas opiniões e observações sobre assuntos que me são cotidianos. Seja através de seminários, congressos internacionais e nacionais, apresentação de trabalhos ou publicação de artigos em livros, a verdade é que encontrei mais uma forma de me fazer escutar e ser levado a sério. Até porque sei que falo de um lugar que me permite outro tipo de reflexão, a análise de quem já esteve na exclusão e estigmatização. Considero que minhas experiências pessoais me permitem a sensibilidade necessária para me colocar no lugar do outro e tentar entender determinados contextos, mesmo que contrários as minhas próprias posições. E acima de tudo tentar me manter neutro a ponto de não construir julgamentos de valores pautados em minhas próprias concepções pessoais.



E tudo junto tem possibilitado que me surpreenda comigo mesmo. Me mostrado que sou capaz de realizações diversas e diversificadas, em várias frentes de atuação, em momentos e contextos dispares. Mas acima de tudo tem me evidenciado que minha trajetória tem seguido uma lógica, que consciente ou inconscientemente, tem se dado de forma continua e complementar. Hoje posso dizer que gosto de pensar que estou próximo a metade de minha vida, e que logicamente não me arrependo de ter feito ou passado por nada do que fiz, passei e vivenciei. Talvez me arrependa um dia pelo que não fiz ou fiquei por fazer. Mas tenho plena consciência que esse conjunto de dúvidas, certezas, fragilidades, seguranças, erros e acertos, é o resultado de minha vida. E isso pra mim é precioso. Saber que tenho uma história própria, que em alguns momentos ou fatos se assemelha as demais, mas que independente disto é única e exclusivamente minha história de vida. Nem melhor e nem pior, apenas a história de uma pessoa que aprendeu que a vida se vive a cada dia e a cada momento. E é por isso que hoje posso mesmo dizer que tenho consciência de meu papel na sociedade e no mundo. Sei onde estou e principalmente o que sou. Acredito, acima de tudo, que posso dizer que me encontrei ao saber que vivo intensamente minhas opiniões, contradições e transformações pessoais e diárias, pois que preciso e quero manter-me impreciso e imprevisível até o fim de minha história.

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