quarta-feira, 7 de julho de 2010

A HISTÓRIA DA MINHA VIDA - A Infância


















Auto Retrato/2007

Capitulo II - LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA

Como já dito, nasci diminutivo. Pelo que sei, no bairro da Tamarineira. Gosto de imaginar que tinha de antemão o primeiro requisito para uma vida futura bem sucedida: viver em bairro nobre. Mas as grandes catástrofes naturais têm o poder e papel de mudar destinos, vidas e histórias. Criar uma reviravolta e mexer com as pessoas. Tal como tantas crianças, atualmente castigadas pela cheia que atingiu as várias cidades de Pernambuco nos últimos dias, tive meu destino tragado pelas correntezas. Acredito que eu devia ser uma criança linda e feliz.

Mas, também como essas tantas que hoje se encontram desassistidas, em meio à lama e escombros, também devo ter me sentido desamparado. De forma violenta um rio mudou para sempre meu destino. A força das águas me levou a terras distantes e mal habitadas. Como se diria no popular, fui parar no “cafundó de Judas”. Eu e minha família. Pai, mãe e sete irmãos. Sim, éramos oito irmãos até a chegada de mais dois, totalizando dez filhos. Logo, posso dizer que sou de uma época onde as famílias eram extensas. E é engraçado constatar que a redução da taxa de natalidade brasileira pode ser comprovada através de minha própria família. Num cálculo simples, verifica-se por exemplo, que o número de filhos foi sendo reduzido consideravelmente e as famílias se tornaram mais compactas.

Minhas duas primeiras irmãs tiveram três filhos. Os três irmãos subsequentes tiveram apenas dois, e uma teve apenas uma filha. Logo, pode-se imaginar que se todos os dez filhos de meus pais tivessem seguido uma filosofia familiar cristã que se pautava na idéia de que “cada filho era um saco de dinheiro”, teríamos hoje cem novos rebentos. Porém, tais criaturas foram reduzidas a apenas treze, o que significa uma queda de mais de 85% na taxa de natalidade familiar.

Bem, mas é melhor voltar a 1966, dois anos após o golpe militar, quando uma linda e singela criança foi traída pelo destino. Levada em um caminhão, que gosto de pensar, se assemelhava aos velhos paus-de-arara (só para dar um toque brejeiro e regionalista), descobriu a pobreza. E que, afastada da civilização, em um bairro longe, de um subúrbio distante, sem energia, saneamento e sem água encanada (não se iludam, era assim que se chamava), criou um mundo de fantasia em um reino encantado só seu. Também gosto dessa passagem, pois acho que lembra um pouco as histórias de grandes heroínas como a Noele Page em “O Outro Lado da Meia Noite”, do saudoso Sidney Sheldon, ou mesmo, da Scarlet Hohara, vivida pela Vívian Li, no clássico cinematográfico “E o Vento Levou”.

Nestas lindas, encantadoras e bucólicas terras, brincávamos nas ruas até a lua se pôr “por detrás da bananeira” e tomávamos banho com água de cacimba. Nos dias de chuva corríamos no quintal e às vezes nos banhávamos na biqueira (espécie de calha que adaptada ao telhado fazia a chuva correr em jatos fortes). Nos dias seguintes comíamos bagos de jaca serenada para não resfriar, subíamos em árvores frondosas e ficávamos com as línguas roxas de tanta azeitona. Também tinha pitomba, caju, abacate, carambola, jambo, graviola, goiaba, araçá, jenipapo, ceriguela e umbu. Havia um viveiro grande com uma variedade enorme de pássaros: papa-capim, pintor, crista de galo, sangue de boi, casais de burguesas, sabiás, azulão e periquitos coloridos. Espalhados pelo quintal andavam guinés, galinhas, galos, pintos surús e patos. Ah, quase esqueço os coelhos e os preás.

Lembro de uma cabra chamada “bita” e acho mesmo que todas as cabras de estimação se chamam assim, talvez como diminutivo de cabrita. Fora essa verdadeira fauna aparecia cobras, e essas eram muitas; tejus, que comiam os pintos; sapos, grilos, gafanhotos e timbus que atacavam as frutas. A esses servíamos aguardente misturada a açúcar, numa bacia de alumínio. No dia seguinte encontrávamos os animais embriagados ao lado da armadilha. Era um fim trágico para os selvagens cachaceiros.

No topo da escala de preferências estavam o cachorro chamado “Ping” e gata chamada “Pong” (qualquer referência ao chiclete ping-pong não terá sido mera coincidência). Depois veio “Paquito”, que logicamente muito antes da Xuxa, já nos trazia alegrias ao correr conosco em meio a canteiros e árvores. Era um cachorro que ria e demonstrava afeto como gente. Foi também um grande sobrevivente. Jogado duas vezes na cacimba, atropelado pelo menos umas cinco vezes, esfaqueado e muitas vezes apedrejado por pessoas da vizinhança. Era nosso protetor, pois que ninguém entrava em meu reino sem recear um ataque. Era nossa fortaleza e também mascote das muitas brincadeiras, que variavam entre “trinta e um alerta”, “barra ou bandeira”, jogar espeto, bolas de gude e queimado (que na época era chamado de matar-morreu).

Fazíamos pernas de paus com cabos de vassouras, patas de cavalos com quengas de coco, carrinhos com latas de leite ou óleo. Tinha os patinetes e carrinhos de rolimã. Só não podíamos brincar de amarelinha (que antes se chama academia, e não me perguntem o motivo ou a origem), porque dava azar. Segundo os mais velhos era “agouro” e que por isso o chefe de família poderia morrer. As crendices eram tantas, que muitas vezes se misturavam as histórias reais, contadas e recontadas nas noites enluaradas. Na verdade era um mundo fantástico, onde os vizinhos se falavam e a comunidade em si formava uma rede social onde todos cuidavam de todos e todos se protegiam e protegiam a todos.

E novamente vinham as chuvas e com elas uma quantidade enorme de formigas. E dos formigueiros voavam tanajuras. A gente corria, com galhos nas mãos, tentava acertar as coitadinhas que saiam para acasalar. Um dia desses vi meninos na beira de uma estrada a correr e a gritar como fazia no passado: “Cai, cai tanajura. Tua bunda tem gordura”. Depois todos os meninos se reunião para contar as picadas, que muitas vezes sangrava. Mas, o que importava mesmo era pegar o maior número das formigas gigantes. Arrancávamos suas asas e elas eram cozidas na manteiga. Depois se misturava farrinha e a gente comia como se fosse alguma especiaria gastronômica.

Aliás, neste sentido, deve-se destacar que antigamente as crianças tinham uma relação mais próxima com a cozinha. Em dias de festas, se fazia buchadas. Os menores acompanhavam atentamente os preparos e até participavam das atividades. No São João, a briga era para quem ficaria com a panela onde era preparada a canjica. Tinha fogueira, onde se assava milho e se formava rodas de conversas. As noites ficavam iluminadas com tantos fogos. No cardápio de minha infância ainda entrava as “cambrimbas”, peixinhos pequenos assados que serviam de petisco. Já ouviram falar em passarinha? Até hoje sinto o gosto na boca. Depois descobri que eram feitas do baço do boi, que depois de escaldadas eram assadas e servidas ainda quente. Na Páscoa só se comia peixe e feijão de coco. E brêdo, alguém conhece? Uma espécie de hortaliça (acho eu), que cozinhada ao coco é servida com peixe.

Aos domingos tinha galinha à cabidela, preparada por minha mãe. A galinha era abatida na hora e o sangue escorria em uma vasilha. Adicionava-se vinagre para que o mesmo ficasse qualhado e desse aquele sabor especial. Também era servido feijão com farinha, que com as mãos fazíamos bolinhos. Quantas vezes me divertir comendo de mão? Acho que depois que cresci fiquei “metido a besta” e meio que esqueci esses detalhes e simplicidades da vida de quem é pobre.

A culinária se estendia as brincadeiras e era muito divertido imitar os adultos. As vísceras das galinhas, por exemplo, nos serviam de ingredientes para fazermos cozinhados. Usávamos latas de carne Wilson como panelas e preparávamos fogareiros com gravetos e pequenos pedaços de madeira. Em nossas experiências infantis, bancávamos os arquitetos e assim íamos construindo casas com pequenos pedaços de tijolos e telhas, colados com areia molhada. Os animais eram inventados. Com os guinchos das palmas de bananas inventávamos cavalos. Com buchas do mato e palitos de fósforos surgiam bois e vacas. Muitas vezes prendíamos gafanhotos, que amarrados viravam animais alados. Fazíamos o mesmo com os “zig-zag”, que a gente conhecia como cavalo do cão. Não tínhamos brinquedos caros e elaborados, mas tivemos a feliz oportunidade de exercitar nossa criatividade, inventando e reinventando tudo. Hoje me questiono se teria sido mais feliz se tivesse recebido tudo pronto. Considero meus pais exemplos de vida, pois nos mostravam a todo o momento que a felicidade estava nas coisas simples. Não se faziam de forma consciente ou inconsciente, porém sei que o afeto e o carinho substituíam as ausências e faltas.

Não sabíamos o que era o lúdico, mas nossa imaginação era exercitada a cada minuto, contribuindo de forma direta para nossa formação cultura, pessoas e logicamente intelectual. Aprendemos a criar e a desenvolver alternativas, exercitar as possibilidades, experenciar a autonomia e acima de tudo tomar decisões. Isso não é pedagógico? Lamento que, pelo menos em minha família, essas possibilidades se restringiram a minha geração. Penso no quanto seria gratificante ver meus sobrinhos repetirem e vivenciarem tais experiências.

Nas vendas (ou barracas) se comprava “língua de sogra”, suspiros, confeitos xaxá e azedinho, pirulito zorro, chiclete “ploc” que vinha com anéis de pedras coloridas, pipocas e guaraná fratelivita. O vinagre era vendido em garrafas de vidro, feito as de cerveja de hoje em dia. Manteiga era comprada em quilo, pesada em balança e embrulhada em papel de ceda. E o mel de engenho era misturado em farinha para ser comigo com os dedos na boca. Na padaria do bairro, além do tradicional pão francês, se comprava pão bolachão, pão carteira e pão criolo. Tinha também os pães em forma de jacarés, tartarugas, além do pão bengala.

Pegava-se estrume de vaca para espantar muriçoca, se dormia com mosquiteiros e os colchões eram de palha, forrados com chita colorida. Tinham também as “colchas chenil” em variadas cores entre laranja claro, bunina e azul natiê (adoro esse nome). Nos quartos, trepávamos em beliches, de onde ficávamos conversando até chegar o sono. A gente tinha “venta” (nariz), “zoio” (olho) e “zoreia” (orelha), tinha “suvaco” (axila) e “furico” (ânus). Éramos felizes numa ignorância inocente, peculiar as crianças de subúrbios.

Como mecanismo de proteção social contra os adultos maus, meus pais contavam histórias sobre o “papafigo” e tarados. Acho que o papafigo era o que se chama hoje de pedófilos, pessoas que sentem atração sexual por crianças. Segundo esses relatos, crianças eram capturadas e tinham o fígado comido por tais criaturas. Gosto muito da “Cabra Cabriola”, espécie de animal que batia a porta três vezes e tentava capturar crianças que ficavam em casa sozinhas, quando os pais saiam pra resolver questões médicas ou profissionais.

Imaginava uma cabra enorme, furiosa e de couro ouriçado que devorava crianças indefesas. Na mata morava a “Comadre Folôrzinha”, que também as capturava e prendia em gaiolas para o processo de engorda. Depois, jogava os inocentes num grande caldeirão e fazia uma sopa de criancinhas. Até hoje quando vejo fumaça saindo da mata, penso na chaminé acesa da comadre folôrzinha. Essas coisas me remetem imediatamente à infância e me vejo com medo, me escondendo do antigo Rural azul, espécie da veiculo antigo, que pra mim pertencia ao papa-figo.

O medo era nosso companheiro em muitos momentos e isso nos tornava precavidos. Um dia minha mãe me disse que quando estivesse sozinho e com medo, assoviasse uma canção qualquer, ou que ainda cantasse baixinho. Hoje me pergunto quantas vezes fiz esse exercício mental? São coisas que a gente aprende e não esquece nunca, até porque o medo parece nos acompanhar pela vida inteira. Talvez seja um mecanismo de defesa. Mais uma das perfeições da vida. Ou talvez seja sinal de fraqueza. O sei é que continuo assoviando ou cantando baixinho para me sentir forte e vencer desafios e dificuldades. E é incrível como tem funcionado.

O caminho que levava a minha casa, ou reino encantado, se chamava ladeira do Príncipe, que findava numa grande chácara onde morava uma família feliz. Lembro de um casamento, para o qual, logicamente, não fomos convidados. Passamos o dia contando o número de carros que subiam a ruela de paralelepípedos pontiagudos. Era uma rua encantada que nos levava a outro mundo, o dos ricos, e que não podíamos acessar. Tinha piscina e grandes campos verdes com enormes jardins coloridos. Mas para mim, aquele cenário se assemelhava aos contos de fada. E se a rua era do príncipe, é porque logicamente existia uma realeza, o que me fazia acreditar que reis e rainhas, príncipes e princesas, e logicamente, as bruxas e demais seres sinistros e cruéis eram mais que simples fantasias.

Outra rua que tenho como referência se chamava Ladeira do Alemão e também dava acesso a uma chácara que pertencia a pessoas ricas. Por esse caminho se chegava a Escola de Dona Marival, como era conhecida no local. Dona Marival era uma senhora séria e muito exigente. Foi professora de meus irmãos e logicamente minha também. Ela falava alto, e numa foz anasalada e fina, que até hoje mantenho viva na memória, gritava: Meninooooo! A extensão do “ó” é proposital, como forma de tentar revelar a dor que nos causava nos ouvidos a entonação ameaçadora que saia daquela boca quase infernal. A palmatória não existia mais, porém a temível criatura se utilizava de uma enorme régua de madeira para nos bater na cabeça no mínimo sinal de desobediência ou desatenção. A gente apanhava a cada vez que errava os cálculos da tabuada. Acho que detestava Dona Marival, mas ela era amiga de minha mãe, ou melhor, acho que de todas as mães, e isso lhe conferia autoridade máxima sobre nós.

Assim, estudar parecia um suplicio. Um castigo imposto às crianças que completavam sete anos. Algumas vezes não tivemos cadernos e chegávamos a usar até papel de embrulhar pão para fazer as lições. Às vezes recebíamos cadernos usados de outras pessoas, acho que de parentes “mais afortunados”, com algumas páginas ainda em branco. Os lápis eram usados até o final, e os livros eram emprestados ou doados.

Mas o sofrimento era amenizado pela televisão. A nossa era de uma marca chamada “Colorado RC”. Os aparelhos da época possuíam válvulas, que quando queimadas precisam ser trocadas para garantir a transmissão. O sinal era fraco e quando chovia muito era preciso colocar lã de aço (ou Bombril) nas hastes das antenas. Agente assistia Tarzan, Robson Cruzué, Daniel Bonn, Dinnye é um Gênio, a Feiticeira, Terra de Gigantes, Túnel do Tempo. Tinha também o Dr. Smity (oh, céus... oh, terra... oh, dor) que a gente não podia gostar muito porque diziam que ele era gay (naquela época, se chamava mariquinha ou fresco).

E tinha ainda as novelas como Bicho do Mato, Meu Primeiro Amor, Uma Rosa com Amor, que a gente só podia assistir até as 18:00 horas porque éramos crianças. Lembro-me que antes de cada programa surgia na tela o registro do governo federal, com carimbo bem grande da censura que estabelecia a faixa etária apropriada a cada programação. E quantas vezes as cenas sumiam... No melhor da trama a programação saia do ar e agente ficava na sala aguardando e contando bolinhas pretas que pareciam borbulhar diante de nossos olhos. Muitas vezes, quando voltava, a gente ficava sem entender o que tinha acontecido. Não sabia o que tinha sido dito.

Nesta época tudo ainda era em preto e branco, como foram os anos de chumbo. O jornal nacional era apresentado por Cid Moreira e Sergio Chapelen (é assim mesmo?), mas as noticias eram veladas, incompletas e não muito claras. Iniciava-se o processo de alienação cultural encabeçado pela “Venus platinada” e que tomou conta do país por mais de vinte anos (será mesmo que acabou?). Mas tinha o globinho. Ah, que saudade da Paula Saldanha! E também dos Flistones, Formiga Atômica, Tutubarão, A Lula Lelé, Corrida Maluca e Ton e Jerry. Lembro do Willy, desenho sobre uma turma de motocicletas crianças, onde um dos personagens sempre dizia: Eu te disse, eu não te disse? Até hoje repito esse bordão.

Já existia até “radiola” e os discos eram de vinil. Tinha LP e compacto, com lado A e B. Os LPs tinham em média de seis a oito faixas de cada lado e sempre ao final das músicas, tínhamos que suspender o braço da radiola, trocar o lado do disco e recolocá-lo para tocar. Imaginem que num desses compactos, o ator Francisco Cuoco recitava poesia, com um fundo musical melodramático. Como era tempo de ditadura, não se podia ouvir ou cantar Chico Buarque, Caetano Veloso e nem Gilberto Gil.

Não entendia nada, pois nada era explicado e as conversas de adultos eram sempre muito baixas e por isso, só escutávamos algumas palavras ou nomes, que não sabíamos o que significavam. Mas diziam que eles eram comunistas e que por isso eram perigosos. Dessa forma se a gente cantasse ou repetisse suas palavras de ordem, seriamos considerados comunistas também e seriamos presos.

Nas escolas era ensinado a rezar a Ave Maria e o Pai Nosso, que devíamos repetir todas as noites antes de dormir (e pensar que tantos anos depois me pego muitas vezes repetindo o mesmo ritual, ainda que não seja católico). Uma de minhas irmãs se tornou professora e lembro-me de ir com ela até a escola onde ensinava adultos analfabetos a ler e escrever. Era o Mobral, uma versão precursora do programa de educação para jovens e adultos, que hoje se chama EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Começava minha vida acadêmica. Com ela aprendi a soletrar as sílabas e a construir palavras. Era fantástico saber ler e descobrir a cada dia uma palavra nova. Por falar nisso, a primeira palavra que aprendi na escola foi chocolate. E olha que nem sabia o que era, nunca tinha visto e muito menos provado. O ensino era por correlação aproximativa, do tipo: a torneira faz “Chó”, a galinha faz “Có”, e o cachorro “Late” = a Cho-co-la-te. Impossível de acreditar? Pois te digo que eu vivi para ver isso. E pensar que da primeira palavra que aprendi, tinha apenas uma referência ilustrativa aproximativa.

Penso se não foi esse processo didático, a base para que nós brasileiros, politicamente incorporássemos a “cultura do papagaio”, repetindo apenas o que se manda. Logicamente, na época eu não conseguia fazer esse tipo de reflexão, afinal de contas deveria estar ocupado demais com a infindável quantidade sílabas e contas da tabuada que precisava decorar. E entenda-se que decorar não correspondia a entender. O objetivo era saber falar certo, mesmo sem ter noção do significado literal.

De qualquer forma, não tinha com o que me preocupar, pois que só viria saber sobre Paulo Freire muito anos depois. O importante é que conseguia andar pelas ruas lendo os nomes e palavras que surgiam na minha frente. Isso me dava o status de inteligente. E eu, claro, me orgulhava por ser inteligente, mesmo que isso não fizesse sentido nenhum para mim. Descobri que ser inteligente era um passaporte para o reconhecimento e respeito por parte das pessoas. Eu tinha o que muita gente não tinha, e pior, nem chegaria a ter: conhecimento.

Mas como tudo na vida, paguei um alto preço por me destacar. Era ameaçado, ridicularizado e muitas vezes perseguido na escola. Naquela época não existia o “bulling” e as violências sofridas faziam parte do cotidiano escolar. Eu era considerado um menino fresco demais. Educado demais, inteligente demais e que gostava de mostrar que sabia mais que os outros. Percebi que quando te tratam de forma diferente, a melhor arma é validar e salientar a diferença outorgada. Também não queira ser igual a todos.

Acho que já entendia o sentido de singularidade e individualidade. Destacava-me e me destacavam porque realmente era diferente. Gostava de coisas diferentes das coisas que a maioria das pessoas gostavam e consequentemente aprendi a pensar de forma diferente. Nem melhor, nem pior. Apenas diferente. Mas, não podia brincar em grupo, porque era diferente. Não podia me relacionar com os garotos da mesma idade, porque era diferente. Não podia me pronunciar, porque era diferente. Não conseguia valer meus direitos. Eu era diferente e pronto. Todo mundo via, todo mundo sabia e todo mundo dizia. Só eu, o diminuto diferente não entendia onde estava a tal diferença tão proclamada. Como não me restava outra saída, aprendi a viver essa diferença. E talvez dela tenha feito minha marca, minha conduta e acho que meu caráter.

Pela terceira vez, fui levado a encontrar e montar estratégias de sobrevivência. E só consegui quando descobri que o que causava, muitas vezes, a ira das pessoas, causava também desejo e/ou despeito. De certa forma, me tornara diferente por possuir algo que muitos gostariam de possuir para poderem se sentir iguais. Contudo, não tinha maturidade suficiente para repartir. Dividir conhecimento talvez fosse à arma necessária e simples para conquistar meus algozes. Mas a maturidade só vem com o tempo e com as experiências de vida. Eu era apenas uma criança, que acuada colocava, ainda que instintivamente, em prática a lei da ação e reação (é de Isaac Newton?). Assim, penso que em muitas situações o ataque é a melhor forma de defesa e essa se tornou minha principal estratégia de sobrevivência.

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