domingo, 25 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VI - Imagens Insolitas de Nós Mesmos

Os Paparazzos Urbanos

 
Era outubro de 2004, e voltando de Olinda pela Av. Agamenon Magalhães entramos pela Rua Henrique Dias. Reduzi a marcha e seguimos em frente. De repente um outro veículo surge em nossa frente e em alta velocidade. Estava na contramão e agora vinha em nossa direção. Tudo foi muito rápido, mas lembro de ter anunciado o desastre: vai bater! Gritei na tentativa de avisar meus companheiros de viagem. Mas foi em vão, talvez um ato impensado "disparado" pelos mecanismos de defesa e preservação.

De repente tudo parecia calmo. Não conseguia me mexer e muito menos pensar coerentemente. Acho que permanecei assim por alguns instantes, e só fui despertado de meu transe por uma senhora, que a minha porta falava algo que não conseguia entender. Ela, de forma calma, perguntava-me se estava bem e se conseguia me movimentar. Também tentava manter afastadas as pessoas que buscavam verificar quem ou quantos estavam no carro. Estão vivos? Tem alguém morto? Eram perguntas que ouvia ao longe, sem saber ao certo de onde ou de quem vinham. Estava paralisado, e ao certo nem sabia se estava vivo. Minha vista estava turva e as imagens distorcidas que apareciam no meu campo de visão não se faziam reconhecíveis.

Atentei para o fato de me manter pregado na direção, com os braços rígidos e os olhos vidrados no retrovisor. No banco detrás, um dos meus amigos se encontrava desmaiado. Ao seu lado, outro chorava de dor com a boca cortada e os olhos inchados. Tinham se machucado ao bater contra os bancos dianteiros. Pensei de forma alarmada e imediatista: matei uma pessoa. Um sentimento de impotência me invadiu e me fez congelar. O que seria de mim agora? Como conviver com o peso da morte de alguém? O que eu tinha feito? Enquanto me perdia em devaneios, a senhora tentava me despertar e arrancar das ferragens. Você está me ouvindo, insistia ela. Está sentido dores? Pode se movimentar? Tente abrir a porta do carro...

Lentamente soltei a direção, pois tinha medo de ter quebrado os braços e pernas. Ao meu lado, no banco de passageiros, um terceiro amigo estava imóvel, talvez tão perplexo e atordoado quanto eu. Minha porta não abria. Estava tão empenada que incomodava minhas costelas. O teto rebaixou até minha cabeça e o motor estava praticamente em meu colo. Estava preso numa lata de sardinhas remoída. Conseguiram abrir a porta do outro lado e lentamente me ajudaram a sair. E não existia mais carro, apenas um bolo de ferragens retorcidas e amassadas. O painel dianteiro tinha sido arremessado para dentro e o pára-brisa, agora estilhaçado se espalha pela rua.

O outro veiculo tinha sido arremessado a uns duzentos metros e agora fumaçava próximo a uma árvore. Um amontoado de gente rodeava os dois veículos e as conversas e brincadeiras (acreditem) se misturavam criando tumultuo. Outros flashes de máquinas digitais me atingiram em cheio. E foram se sucedendo num apagar e acender de luzes que me deixaram quase cego. Mas afinal estavam fotografando o acidente. Lembro também que alguém filmava a cena num misto de curiosidade e diversão. Era um acontecimento. Era um fato. E era a noticia da noite.

Outros automóveis, alguns conduzidos por amigos, pararam a frente e assim começaram a nos remover. Para nossa sorte estávamos em frente a uma clinica medica, para onde formos conduzidos para atendimento. Só depois de ajudar a socorrer a todos, numa mistura de tensão, medo e remorso, pois me sentia responsável pelo ocorrido, o médico chamou minha atenção para o sangue que escorria de minha perna. Meu joelho estava aberto e a hemorragia encharcava minha calça. Horas depois saí com uma perna engessada e meus amigos com grandes curativos.

Fora da clinica, o irmão do condutor do outro veiculo me aguardava, e se mostrou prestativo e tenso. O responsável pelo acidente era adolescente, não tinha habilitação e tinha consumido grande quantidade de bebida alcoólica numa festa familiar. Não tinha se ferido e também já tinha sido retirado do local devido as implicações legais diante da perícia. Em seu lugar assumiu e registrou a responsabilidade uma parente, que logicamente estava sóbria. O tal rapaz tenso e prestativo se dizia procurador de justiça de um outro estado e não queira escândalos para a família (nada mais natural, não?). Logo alegou o falecimento recente do pai, como justificativa para a indelinquência do irmão. Não fizemos objeções, e ainda meio atordoados fomos colocados em um taxi e enviados as nossas casas (não disse que ele era prestativo?).

Eu queria sair dali o mais rápido possível para não ter que ouvir mais as insistentes e constantes perguntas óbvias que viam de todos os lados, e principalmente desaparecer para sempre da frente daquelas câmeras, que agora pareciam infernais e persecutórias. Se realmente todo mortal tem direito a seus quinze minutos de fama, já me sentia agraciado (e confesso não ter gostado de tanta exposição desnecessária e sem fundamento).

Sei que acordei com dores no corpo e permaneci deitado por uns dois dias. Acho que esse tempo foi o suficiente para analisar os problemas e fatores envolvidos naquele acidente. E considero que mais grave do que as irresponsabilidades envolvidas, foram a indiferença e inércia das pessoas que presenciaram aquela tragédia. Não havia solidariedade, mas apenas um misto de curiosidade e fascínio. Talvez por terem presenciado ao “vivo e a cores” uma cena digna dos filmes de cinema. Confesso que me espantei com a quantidade excessiva de fotos disparadas e das tão comuns filmagens de celular. Não havia consideração com os ocupantes dos veículos, mas apenas, e talvez, a intenção em obter os melhores ângulos que revelassem reações, expressões e sangue (E isso realmente emociona as pessoas, não? Quem lembra da Princesa Daina?).

Mas aquelas pessoas pareciam histéricas em seus intentos. Fascinadas pela oportunidade de experimentar e registrar os avanços tecnológicos de seus equipamentos ultramodernos. E assim, absorvidas por uma curiosidade mórbida, agiam insanamente diante de pessoas gravemente feridas. Naquele momento de euforia histérica não era a vida que interessava, mas apenas o registro de um momento inusitado, que provavelmente serviriam para longas conversas posteriores. E logicamente, depois aquelas fotos poderiam ser trocadas, enviadas e distribuídas via internet entre os integrantes de um pequeno grupo burguês descompromissado e indiferente aos valores morais imprescindíveis a sobrevivencia e manutenção das sociedades.

Digo isso, não por revolta, mas por constatar que aquelas benditas fotos não serviriam como base ou provas para definição e julgamento de culpados. Se destinariam apenas a satisfazer o egocentrismo de pessoas que buscam se auto-afirmar na sociedade através da divulgação e exibição de suas posses (e provavlelmente seriam apagadas num próximo acidente, certo?). Acho que isso funciona como uma espécie de passaporte que permitirá o acesso a determinados grupos antes nunca frequentados. Penso que para a geração atual tenha se tornado preciso e fundamental se integrar em grupos homogêneos e homogenizados, e para isso nada melhor do que falar a mesma língua, usar as mesmas roupas e agir das mesmas formas (afinal, só as diferenças são excluídas, não?). E assim a juventude parece ter se tornado pasteurizada, não só em imagem, mas em ações e comportamentos.

O que se verifica na atualidade é um movimento coletivo, que podemos denominar como fenômeno de massa da satisfação instantânea. Acho que a mídia nos dotou dessa necessidade incessante e insaciável pela novidade e pelo bizarro. Para essas pessoas parece ser preciso se alimentar a cada instante de novas informações e acontecimentos inesperados e fora do comum. Talvez para que consigam sair de suas rotinas vazias de vidas utópicas. É necessário gerar felicidades momentâneas para se manterem na ativa. Chamar a atenção dos outros para se sentirem aceitos e reconhecidos pelo que possuem e não pelo que são. Mesmo que para isso percam a noção da realidade e reneguem os princípios de civilidade. Tornaram-se individuais e individualistas em suas obsessões pelo simples registro de momentos, que por serem tão fugazes e passageiros precisam ser substituídos sucessivamente.

Não conseguem mais parar para pensar e muito menos refletir sobre seus atos. Precisam apenas ser rápidos, ágeis e perspicazes a fim de primeiro registrar e divulgar acontecimentos que alimentarão as solidões urbanas. É preciso ser o detentor da informação ou fato que lhes proporcionará certa espécie de prestigio e status, mesmo que precisem se tornar indiferentes. Não importa mais os sentimentos ou emoções, e pior ainda, se estas são verdadeiras ou simuladas. O que importa é fotografar qualquer coisa numa tentativa de perpetuar ocasiões. Assim se comportam como robôs e desenvolvem ações mecânicas, pelo simples fato de fazer o que a maioria faz.

Talvez tenhamos nos transformado em “paparazzos urbanos imediatistas”. Se estivermos numa praia, lá estarão as máquinas e seus flashes a pipocar em nossa frente. No campo, tudo se torna motivo para uma aparente admiração e consequentemente novas fotos. Num ônibus lotado alguém visualiza um pretenso conhecido e já se coloca a fotografá-lo. Num supermercado, um dia desses vi uma senhora fotografar uma embalagem porque gostou do tom verde oliva impresso (e logicamente não queria comprar o produto). Constumeiramente vejo pessoas fotografando desconhecidos porque gostaram de determinadas roupas, adereços ou estilos de penteados. Algumas chegam a clicar na cara de pessoas que julgam bonitas ou feias, com objetivos diversos e duvidosos.

E assim somos obrigados, a todo instante, a servir como figurantes para compor panos de fundos e paisagens de fotografias anônimas. Quantas vezes somos pegos de surpresa com os flashes disparados em nossa direção porque algo a nossas costas interessou ao fotografo do momento. Já vi pessoas fotografarem artistas projetados em telões, estando elas em pleno show ao vivo. Em boates tornou-se comum se fotografar no melhor estilo “estive aqui”, ou então, “veja eu também vim”. Na era digital fotografar e ser fotografado tornou-se uma ação compulsiva. Tanto que ninguém acredita mais se lhe contarem uma história e não tiver as fatidgas fotografias como testemunhas.

Já pensaram em quantas vezes somos praticamente obrigados a percorrer todos os arquivos fotográficos adicionados em celulares ou máquinas digitais alheias? É que esses se tornaram utencilios de primeira necessidade (Todo mundo tem uma máquina no celular ou na bolsa. Já colocou o sua?). E quantos e-mails temos que receber com avisos de que amigos atualizaram seus álbuns em intermináveis sequências, postadas em páginas de Orkut, sônico, MSN e mais uma enorme quantidade de redes de relacionamento disponíveis na internet? (vão me achar muito pernostico se disser que já aprendi a deletar todos?). E muitas vezes, ainda, esses nem podem ser considerados verdadeiramente amigos, mas apenas conhecidos ou pessoas que nos solicitam para serem adicionadas. Isso, lógico, com o objetivo apenas de ampliar uma suposta mega rede de relações e não de estabelecer amizades (afinal o importante é mostrar ao mundo o quanto somos capazes de estabelecer contatos e relações, não é mesmo?). No meu orkut mesmo tem pessoas que realmente nunca vi, conversei ou trocamos idéias, mas que me mandam fotos evidenciando momentos e felicidades que não compartilhei (será que seria melhor aprender a negar tais convites?).

Outro aspecto que considero relevante neste fenômeno digital e ultra/hiper moderno se refere a pasteurização de imagens. Penso que de certa forma, as poses deixaram de ser naturais e passaram a revelar uma artificialidade incomoda (talvez porque todo mundo que ser Gisele). As pessoas estão sempre rindo e felizes, como se isso fosse uma praxi constante e real em suas vidas. Os cabelos estão sempre impecavelmente arrumados, as maquiagens sempre prontas e até as expressões de surpresa ou espantos parecem meticulosamente pensadas e montadas. É como se vivessem na eterna espera por um flash que mudará para sempre suas vida, e isso causa uma imensa, constante e obsessiva preocupação com a imagem.

Lembro que no último jogo do Brasil estava com um amigo sentado a mesa de um bar da Metrópole observando a movimentação. Uma moça toda enfeitada em verde e amarelo (claro) sacou de um pequena bolsa uma grande máquina. Queria registrar com os amigos aquele momento tão importante para a posteridade (será que no futuro irá mostrar aos filhos?). Ela fazia poses incrivelmente desconexas e estranhas na tentativa de esconder das poderosas lentes as imperfeições do corpo (entendem porque considero as fotos artificiais?). Eram poses no estilo "melhor de mim". E neste momento, automaticamente várias outras pessoas também sacaram suas armas e iniciaram uma verdadeira guerra de flashes e disparos automáticos (e o jogo, acho que esquecceram de resgistrar). Só nós não tinhamos levado nossas máquinas, mas logicamente fomos solicitados como fotógrafos.

E assim, as fotos perderam o caráter privado e se tornaram públicas para a satisfação de um narcisismo de massa. Não é preciso apenas se ver, mas que todos vejam, e consequentemente elogiem (mesmo que também de forma superficial e mecânica). Penso mesmo, que o artístico e a sensibilidade cedem a cada dia mais espaço ao bizarro e ao histriônico. Parece que perdemos a noção de privacidade e muitas vezes nos expomos, ou pior ainda, somo expostos a, e em, situações vexatórias (e porque não ridículas?) sem autorização prévia.

Quantas vezes recebemos e-mails com fotografias de pessoas anônimas, acompanhadas das classificações de "feia", "bonita", "medonha"... ? (Você já foi classificado? Então cuidado, poderá ser o próximo) E tantas outras, que incluem adjetivos pejorativos e discriminatórios, tais como "bonecas", "safadas", "taradas", "abusadas", em referencias a homens, mulheres, pessoas idosas, obesas, negras, com deficiência mental ou física  e crianças? Quantas pessoas assustadas ou alarmadas em seus desesperos, ou em situação de calamidade são expostas e ridicularizas em páginas frias que não contam de suas histórias e nem dos motivos para determinada reação ou comportamento? E quantas vezes nos colocamos a rir de tais situações e momentos (e reenviamos as mensagens), sem nunca pensarmos que poderia ser conosco ou com conhecidos nossos a quem estimamos?

O ato de fotografar desgraças e transtornos tornou-se, a meu ver, instrumento de sadismo e desprezo pelo humano. E de certa forma, tornou-se também uma arma nas mãos de pessoas inescrupulosas e inconsequentes. De uma hora para outra corremos o risco de acessar a internet e nos encontrar em situações comprometedora através de montagens e fotoshops da vida. Mas os transtornos e prejuízos sofridos nunca são registrados e muito menos reparados pelas lentes frias da modernidade. Assim, aprendemos apenas a nos divertir as custas do outro, ou ainda nos prestar a diversão alheia, sem analisar os riscos e conseqüências de nossos disparos automáticos e luminosos. E neste sentido, digo que já presenciei milhares de flashes atrapalhando performances de uma bailarina russa, interrompendo shows de artistas ou causando conflitos por invadir a privacidade de cidadãos comuns. Já vi relações duradouras findarem por fotos desavisadas, como já vi mortes e acidentes servirem como motivos de diversão.

Acho que com as novas tecnologias banalizaram-se as melhores lembranças. Transformamos-nos em caça e caçadores da vida alheia, que como oportunamente diz o Miguel Falabella, parece “sempre mais interessante que a nossa”. Talvez devamos isso ao francês Joseph-Nicéphore Niépce que conseguiu em 1826, de sua janela registrar a primeira imagem impressa em papel, iniciando uma nova forma de ver o mundo. Mas penso também, que como as máquinas capituram sempre as imagens numa lógica inversa, de cabeça para baixo, talvez tenham nos ensinado o poder da diversão distorcida. E talvez até tenhamos nos acostumado a aplicar essa mesma lógica na inversão também de valores morais e sociais.

Independentemente disso, o fato é que criamos a cultura fantasiosa do “cada mergulho é um flash”, mesmo que esse, seja no vazio de nossas próprias vidas. Desenvolvemos a fábrica instantânea do glamour fugaz e efêmero por onde buscamos incessantemente a visibilidade e projeção imediatas. E assim, tornamo-nos nos tempos atuais e modernos, sarcasticos “paparazzos de nós mesmos”, talvez para registrar, divulgar e eternizar nossas próprias solidões.




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