terça-feira, 27 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VIII – O Carnaval e o Lugar do Feminino

A Gastronomia dos Corpos

Lembro que na época de infância ia com meu pai e alguns irmãos ao bairro de Água Fria. Era um subúrbio localizado na área metropolitana, a poucos minutos do coração da cidade, que cortado pela Av. Beberibe finda em um velho mercado público. Contam que era um dos bairros mais populares e desenvolvidos da capital, já tendo vivido seus tempos áureos nas décadas de cinquenta e sessenta quando o bondinho cortava as ruas em extensos trilhos metálicos. Lá moravam minha avó e duas tias, Duque e Duquesa (da mesma espécie) e ainda Pirulito que tinha pelos caramelados (e estes eram tratados como gente). A casa era recuada e uma passarela nos levava até o portão que dava para a avenida. Por vários carnavais brincamos sentados ao muro, dando banhos nas pessoas que passavam em nossa frente, fantasiadas ou não. Era um tempo de inocência em comparação aos dias atuais, como dirão os mais velhos, porém relembro que os conflitos gerados por tais brincadeiras ou práticas, que hoje entendo como atos de violência e violação de direitos, já existiam. Assim, um dia um senhor que não gostou do molha-molha sacou da cintura um revolver como forma de demonstrar seu descontento. Acho que ali se acabaram nossas peripécias carnavalescas e ficamos restritos as matinês no Clube do Santa Cruz.

Mas ainda assim, voltávamos ao portão para ver os desfiles de blocos e agremiações, que hoje abandonaram aquele corredor da folia. Ficava fascinado com as “La Ursas” que batiam as portas cantando “a La ursa quer dinheiro e quem não der é pirangueiro”, e com a variedade de “papa-angus” coloridos que corriam assustando as pessoas. Depois vinham os Maracatus Rurais com suas golas em lantejoulas policromadas e reluzentes, e Reis e Rainhas dos Maracatus de Baque Solto (ou será Baque Virado?) invadiam a passarela acompanhados por suas negras côrtes. Homens trajando roupas femininas brincavam com garrafas nas mãos, e abraçados formavam verdadeiros “clubes do bolinha”. Nossas tias improvisavam fantasias e ao final das tardes íamos aos bailes. Eram dias agitados, mas a gente não cansava e queria que a festa não acabasse. Acho que ali descobri minha paixão (e porque não alucinação) pela festa pagã.

Como estávamos em plena ditadura militar às brincadeiras, muitas vezes, precisavam ser moderadas sob controle e repressão severa. O famoso mela-mela que se restringia a melar as pessoas com farinha de trigo molhada em água, passou a ser substituída por substancias mais agressivas. E tornaram-se comuns os registros de pessoas atingidas nas ruas por jatos de água com creolina e/ou ácidos; ou lama e até fezes, que em “pombos-correios” explodiam nas janelas dos ônibus lotados. Usavam também solda caustica que resultava em grandes queimaduras e graves ferimentos, que divulgados nos jornais tornaram-se argumentos para a proibição definitiva da brincadeira.

Mesmo assim, outras “brincadeiras etílicas” sempre se mantiveram presentes no carnaval, e animadas ao som de músicas e marchas de frevo com duplos sentidos e de conotações sexuais e morais, serviam para extravasar as tensões e frustrações de uma sociedade reprimida. Lembro que dentre as marchinhas tão tocadas nas matinês e manhãs de sol dos clubes, uma nos orientava a “meter o dedo e rodar” alguma coisa. Mas antes mesmo que se pensasse em safadezas o interprete nos explicava que era sobre o “telefone” que ele estava falando (É que os antigos aparelhos, domésticos ou de orelhões, tinham círculos de discagem com pequenos “orifícios” onde metíamos os dedos para girá-los e registrar os números das chamadas). Na sequencia nos orientava ainda, a pegar “a cabecinha e chupar”, numa espécie de metáfora ou analogia usada para descrever as delicias e sabores dos pirulitos coloridos que se comprava no mercado ou nas antigas barracas dos bairros.

Mas percebo hoje que o satírico das musicas e machas carnavalescas sempre foram usadas para propagar e colocar em pauta as mudanças de comportamento. Temas tabus entravam nas agendas públicas e privadas. As melodias tornavam-se instrumentos de divulgação e debates, muitas vezes contrariando antigos dogmas da “santa igreja”. Mas analiso também, tais sátiras sob a perspectiva das construções sociais. E esclareço que talvez para melhor compreensão se faça necessário evidenciar que na literatura latina, as sátiras são consideradas obras de caráter livre, em gênero, forma e métrica, que objetivam censurar costumes, instituições e as idéias contemporâneas através de um estilo irônico e mordaz (Dicionário Aurélio, 2010).

Num sentido mais amplo, pode ainda ser entendida como composição poética que visa censurar ou ridicularizar defeitos ou vícios. E neste sentido, me vem a memória uma das músicas que muito cantei em grandes bailes. A letra nos chamava a atenção para a longa “cabeleira do Zezé”, nos sugerindo indagar repetidamente sua orientação sexual através do refrão: “será que ele é? será que ele é?”. E em certa estrofe poética põe em duvida a masculinidade de várias categorias de homens ao questionar: “Será que ele é bossa nova? “Será que ele é Maomé? Será que ele é transviado? Mas isso, eu não sei se ele é!”E neste sentido, tanto o Zezé (personagem figurativo), quanto admiradores da Bossa Nova ou seguidores religiosos do profeta de cabelos longos tiveram suas sexualidades e também culturas colocadas em xeque e ironizadas (e por que não dizer, ridicularizadas?). Penso que mesmo de forma inconsequente, e logicamente no intuito apenas de divertir, tais compositores através de suas letras terminam contribuindo de forma direta para validar velhos preconceitos e esteriotipações estigmatizantes sobre determinados comportamentos que contrariam a norma social e burguesa.

E neste aspecto, considero mesmo que as melodias de rimas fáceis encontram no politicamente incorreto suas fontes de inspiração. Se observarmos bem, verificaremos que as minorias tornaram-se o grande alvo das “modinhas” zombeteiras que criticam e enxotam veados, cornos, velhos, solteironas e mulheres. Essas por sua vez, serão sempre as “Marias”, sejam elas a “sapatão, que de dia era Maria e a noite é João” ou ainda, a “escandalosa, que apesar de mentirosa e preguiçosa, é gostosa”. A mulher torna-se sempre desvalorizada em caráter moral em detrimento dos atributos físicos, e assim correlaciona-se ao ideal feminino "sinônimos" como burrice, beleza e atrativo sexual (não é o mesmo mote das campanhas de cerveja?). E “Booooaaaa!” mulher ou mulher boa, tem que ser sempre assanhada, insaciável sexualmente e gostosona, e por isso desejada e cobiçada por todos os homens. Mas tem que ser também a mulher do outro, e nunca a nossa. E novamente equipara-se a gostosa a imagem da mulher fácil ou disponível. E mulher fácil faz a rua. E se seguirmos na analogia chegaremos a conclusão que a mulher boa torna-se prostituta por natureza, pelo simples fato de ostentar ou possuir atributos físicos que despertam a tesão dos machos. Ou será o cio? (será que meu discurso é muito feminista, ou será sem fundamento?).

Mas se as musicas daquela época cantavam e validavam exclusões, pautadas em conceitos étnicos, raciais, sociais ou de gênero, nos dias atuais a coisa não tem se mostrado muito diferente (que diga o João do Morro e tantos outros astros emergentes, de talentos duvidosos, que cantam nada mais nada menos que suas próprias realidades sociais e culturais). Mas o que importa é a percepção do quanto o carnaval tem se evidenciado enquanto território do masculino, onde a mulher, ou o feminino, lhes servirá apenas como objetos que saciam desejos e impulsos sexuais, ou ainda, como motivos de diversão e sátira. Talvez por isso, para muitos a única mulher de verdade tenha sido a falecida Amélia, do Mário Lago, pois que não tinha a menor vaidade e achava bonito não ter o que “comer” (qualquer analogia sexual terá sido pura coincidência ou sátira?). E ainda satirizando um pouco, não terá sido esse o motivo de sua morte?

Penso também que as correlações de impuras, fatais e ameaçadoras, bem como os menosprezos direcionados por parte dos machistas de carteirinhas às tantas Marias, talvez, e de certo modo, possam se encontrar pautadas num Complexo de Édipo mal resolvido pela frustração diante de não poder possuir a própria mãe (será que Freud explicaria?). Pois que toda Maria é Mãe, e segundos os religiosos torna-se Sagrada, logo intocável e inviolável. Não cabe nos desejos impuros dos pecadores. Por outro lado a Grande Mãe de todos (simbologia extensiva as mães mortais, será?) também é Rainha. E logo, se rainha detém e ocupa lugar de poder e torna-se figura de autoridade (mas essa não é uma característica dos homens?). E se tem poder precisa ser neutralizada ou eliminada para que se mantenha a supremacia do macho diante da subjugação feminina (não parece ser essa a mesma lógica que fecunda a mente doentia dos que matam ou violentam esposas, namoradas e filhas?).

Se ao se tornarem Marias, (como as sagradas e as assanhadas), as mulheres ameaçam a cultura da macheza exigindo direitos pela equidade de gênero, nada melhor do que um recurso da cultura de massa para lhes fazerem lembrar seus pressupostos (e aqui no sentido de circunstância ou fato considerado como antecedente necessário de outro) e impostos papéis e lugares sociais. Talvez músicas sem textos, ou grandes contextos (que a meu ver hoje já se configuram enquanto fenômeno social nefasto as lutas por igualdade de direitos), possibilitem ou desencadeiem uma alienação que também é de massa; e de forma aterradora, tenham funcionado como eficazes e eficientes instrumentos para seus intentos.

E neste ponto reflito sobre a possibilidade deste também ser o motivo para que algumas (ou melhor, várias) mulheres, em indumentárias e performances erotizadas (no melhor estilo “pintei meus cabelos e me valorizei”) das tantas e quantas bandas de brega estilizado, abnegam “Pagus” e “Leilas Diniz” para se identificarem e se auto-reconhecerem, e ainda se firmarem e auto-afirmarem, enquanto “tiazinhas”, “feiticeiras”, “mulheres peras” ou “mulheres melancias”? Será que tal fato ou lugar não nos soará como perpetuação dos conceitos e contextos relacionais? Sim, porque “tia” é parentesco, logo desejo incestuoso, já que a tia é substituta da mãe; “feiticeira” é mistério, magia e perigo, e assim sinônimo de fragilidade masculina; e “pêras e melancias” são frutas, que como a maçã, se cometerá o pecado ao comê-las. Não seria lógico então pensarmos que tanto comer, como desmistificar ou cometer o incesto está diretamente correlacionado ao desejo sexual? E se ainda, nos atrevêssemos a ir mais longe em hipotéticas conjecturas, não poderíamos afirmar que o carnaval enquanto festa da carne, apresenta-se como melhor espaço às fantasias eróticas masculinas? (será que a conversa descambou para o campo psicanalítico?).

De uma forma, ou de outra, fato é que carnaval e cerveja se completam, e neste âmbito, a tríade perfeita se forma com o feminino, aliás com o corpo do feminino. Engarrafa-se então a Boooaaaa, para que possa ser consumida (no sentido literal de prender para devorar ou engolir, que se traduz no ato de comer). e se "loura gelada não descer redondo", pode-se recorrer a "ruivinhas", "lourinhas" ou "negrenhas" porque essas são "Devassas" (alguém já levou uma Devassa prá casa?). Assim, comer e beber a mulher, não é Baco? E se pensarmos que o ato de comer se transforma (simbolicamente falando, claro) também num ato de devorar e aniquilar, para depois engolir (absorver o outro) fazendo-o sumir, não seria relação de força e poder? E não é essa a base das relações de gênero?

Dessa forma penso seriamente, se em nossa cultura que ainda sofre os resquícios do coronelismo patriarcal, e tenta manter-se sob a centralização do poder no masculino, o carnaval pernambucano (pelo menos) não torna-se apenas uma extensão de princípios machistas? Afinal, temos uma festa comandada pelos estereótipos máximos do simbólismo das machezas. O sábado, por exemplo, que é do “Zé Pereira” e não da “Zezinha”, também é do Galo e nunca da galinha, e extensivamente nunca do “frango”. E olha que dizem muitos, que o carnaval é uma festa gay. E até nesse sentido, o feminino parece tornar-se derivativo do masculino (que digam os grandes desfiles de fantasias que superlotam os bailes de Recife). O masculino comanda a festa, seja nas baterias de escolas de samba, nos afoxés, maracatus e caboclinhos, ou ainda no simples passo do frevo rasgado. E assim demarca espaços nas ruas e apenas reforçam a “fantástica” (no sentido de irreal) supremacia do caçador que escolhe sua caça. E nessa luta do "vale tudo", permite inclusive que peitorais bombados (e não misturem com seios turbinados) se exibam, e que músculos suados exalem testosteronas e virilidades entre os pares, mas que em movimentos bruscos podem capturar inocentes donzelas e devorem-nas em beijos bruscos, no melhor referencial Marlon Brandeanos (será que exagerei?). Mas é bom lembrar aos mais desavizados que nestas confrarias, na escassês ou ausencia de mulheres, o feminino pode se configurar em corpos masculinos, o que possibilita o apalpar de másculas nádegas ou beliscões carinhosos em pequenos mamilos.

E se em longas avenidas, mulheres “portam bandeiras”, são os “mestres salas” que parecem conduzi-las numa espécie de balé magistral, e girando ao seu redor cortejam arquibancadas. E nas baterias ensurdecedoras e frenéticas os homens tocam para que suas “rainhas” sambem. A mulher é exaltada, mas de preferência que esteja nua, sem armaduras que escondam curvas atrativas, e se mostre indefesa diante da devoração (e não falei devoção) dos olhos masculinos. E quanto mais novas melhor, quanto mais fresca a carne maior o apetite (novamente as relações de poder?). E esse apetite viril ou voráz pode se traduzir em gula, que em quanto pecado capital se personifica no desejo ao "proibido" – a mulher do próximo, o corpo do outro ou a carne alheia.

Então que pelo menos uma vez ao ano, possamos comer e beber o meu, o teu e o nosso corpo, pois que este será dado por nós e a vós! (ou por vós e a nós?). E se a carne é oferecida, também torna-se oferenda e oferta aos deuses, para dessa forma se fazer sagrada no desejo do outro. E se no carnaval o masculino se sobressai e se esbalda em folias gastronômicas ou canibalescas, é o feminino das cinza que regula os limites. Pois que cinza é o mesmo pó de onde viestes e para onde retornarás, para somente assim descansar saciado e em paz no ventre da mãe terra, que logicamente é do feminino!

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