segunda-feira, 26 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo VII - Carnaval de Recife

Corpos que Brincam

Há anos sou acordado ao som dos galos. Tal fato poderia até parecer comum aos moradores dos subúrbios ou da zona rural de Pernambuco. Mas longe disso, estou no centro do Recife e os sons a que me refiro vêm de apitos, que na boca de ambulantes anunciam que o “reinado de momo” começou. O galo instalado na ponte Duarte Coelho mostra-se imponente, colorido e magistral (incrível como as relações de gênero são perpetuadas também nas expressões culturais de um povo, não?), e do alto parece vigiar o pálio que se alastra pelo corredor da Av. Guararapes. Assim, o Galo e o Pálio tem se tornado com o passar dos anos, símbolos máximos de nosso carnaval. Registros vivos de nossa cultura e história, que enquanto referências simbólicas tornam-se concretas ao transformar a fantasia em realidade. Mas é preciso pressa pois que noventa e seis horas passam num piscar de olhos, e assim “o bom pernambucano esperará novamente um ano interiro para se meter na brincadeira”.

Mas somos diferentes porque em nossa irreverência espichamos o carnaval. Já não são somente quatro dias, mas um mês inteiro onde o fantástico “abre alas” a um povo que se transforma. E velhas Colombinas, Arlequins e Pierrôs invadem as ruas e misturam-se aos tantos “Mateus” e “Catirinas” para mostrar que em Recife a grande festa torna-se também multicultural (principalmente por sua dimensão étnica e social). Acima de tudo, nosso carnaval se torna uma aula viva de história e democracia, onde Reis e rainhas dos maracatus trazem o passado de colonização para nos relembrar como os negros escravos transformaram o sincretismo religioso em movimento de luta e resistência. Caboclos com lanças coloridas parecem fugir dos canaviais da zona da mata e em paus-de-arara chegam “à cidade, cansados”, para ensinar como se quebra limites geográficos e temporais.

Escolas de samba invadem a avenida para contar e recontar histórias e estórias de um povo que é múltiplo em estilos, sentidos e raças. O sofrimento parece ressignificar a dor para transformá-la em alegria de vida, e assim, temas e enredos cantados a uma só voz ecoam o passado de lutas de quem viveu e vive as margens. Atravessar a passarela do samba representa glória e revela força e resistência de comunidades populares que margeiam o centro urbano. A alegria da favela redime a elite burguesa que reverencia a beleza dos pobres. E as arquibancadas balançam ao ritmo do negro, que dançando e cantando parece resgatar, exigir e impor o respeito e dignidades devidas.

Por outras ruas os afoxés chegam com os orixás espalhando axés e trazendo  o religioso e o divino, que não é só católico, mas também afro-brasileiro e indígena, para abençoar e comemorar a liberdade e a igualdade entre os povos. Passado e presente se misturam e transformam a dimensão temporal em algo que agora se faz relacional. Tanto que Senhorias em grandes saias rodadas em rendas giram ao lado de jovens e inesperientes brincantes ao som dos grandes e antigos blocos de rua que espalham cores e formas na cidade que reluz a luz do sol ou da lua.

Mas o sábado é do Galo da Madrugada, que mesmo já não tendo mais hora exata se espreme pelas velhas ruas de Recife. E milhões de pessoas formam uma massa homogênea e compacta na ilusão da comunhão. Somos grande e somos recorde, e por isso nos sentimos orgulhosos e inclusos. Somos velhos, adultos, jovens, crianças e até recém nascidos. E somos também sem noção e sem limites, pois que a exatidão cronológica torna-se dispensável. Não contamos mais o tempo e por isso o dia entra pela noite, atravessa a madrugada e só findar numa quarta-feira “ingrata que chega somente para contrariar”.

O céu num amarelo incandescente esquenta e ferve os corpos com raios dourados, para mais tarde voltar novamente a escurecer. E assim se sucedem os dias e revezam o sol e a lua para nos fornecer talvez a única informação lógica e precisa. Estamos numa terra chamada Recife e isso nos basta, pois que somos pernambucanos e sabemos brincar. E se não existem horários parecem também não existir regras, e principalmente normas, que não se façam flexíveis, pois que tudo se combina e harmoniza na alegria que parece cansada de esperar para se fazer presente em lindos e longos sorrisos que acompanham gingados. Tudo se torna possível e permitido porque não existe “pecado do lado de baixo do equador” e talvez por isso as possibilidades, identidades sociais, e principalmente sexuais, apareçam diluídas, fluidas ou elásticas.

Plagiando DaMata (2009) diria que nosso carnaval se caracteriza por uma movimentação direcionada as mudança de posições e/ou posicionamentos. Trocamos de lugares para juntar e misturar o superior com o inferior, o patrão com o empregado e o rico com o pobre. Nos misturamos num sentido ideológico criando uma massa indiferenciada, onde nossas casas se abrem e se confundem com as ruas, que por sua vez, tornam-se extensivas também aos prédios para que numa gramática carnavalesca o ritual exprima importantes dimensões de nossa sociedade.

Em Recife essas “mudanças de lugares” transformam-se em característica e condição fundamental a quem chega para a festa. No reinado de momo, homens enormes e mulheres fortes se tornam crianças inseguras e carentes e que, muitas vezes, brincam ao lado de seus filhos super-heróis. Invertem-se os papeis sociais e em outras situações, os lugares de poder pautados nas relações de gênero, serão divertidamente alterados para que mulheres subjuguem seus homens. E presos por coleiras verdadeiros brutamontes se transformam em escravos sexuais. As masculinidades cedem espaços ao feminino para assumir o tom da gozação e machões vestem roupas de mulheres, muitas vezes de suas próprias esposas ou namoradas, para desfilarem sensualidades e seduções nunca antes permitidas. Os papeis de gênero ao se reconfigurarem neutralizam a norma heterossexista e “abrem-se alas” as mais variadas experimentações.

Acredito que nosso carnaval torna-se então um espaço de autorizo para viabilizar as emergências das novas identidades. Tudo se torna plural e nada é verdadeiramente o que parece ou representa ser. Nesse jogo ilusório a catarse se personifica nas vivências das sexualidades e homenzarrões sérios e másculos se comportam como verdadeiras mocinhas perigosas e atrevidas para dispensarem cortejos e carícias a outros homens ou mulheres. Penso que neste sentido, a liberdade ou libertinagem permitida autoriza uma certa e momentânea bissexualização dos corpos numa conduta que excita e desperta para desejos latentes e inconfessáveis. As variações e variedades das parcerias afetivas e sexuais multiplicam-se ao passo que marujos barbados e musculosos acompanhados de efebos mancebos simulam ou revelam envolvimentos eróticos e/ou erotizados entre si. Gregos e Romanos se juntam e desfilam de saias ou em roupas curtas e decotadas, e em seus movimentos firmes ou macios, parecem se transformar em seres híbridos.

Mulheres fartas se apertam em frágeis colêtes ou exibem os excessos em minúsculos biquínis coloridos. São espanholas, portuguesas, lavadeiras, empregadas domésticas, evangélicas e freiras, que juntam-se a tantas outras, em noivas, mulheres maravilha, secundaristas e melindrosas. Mas também brincam de piratas caolhos, policiais, palhaços e presidentes. E têm de tudo. Numa festa onde a irreverência dita as formas, a lista de animais e objetos inanimados espanta tanto quanto a criatividade que as vezes se torna duvidosa e confusa. Assim, enormes quantidades de vacas, misturadas a coelhos e coelhas, gatos e gatas e cachorros se encontram com galinhas e galos (e porque não frangos?) em meio à multidão. E lá se vão também bacias sanitárias, mosqueteiros, bacias de lavar roupas, ferros ambulantes e bóias infláveis, em meio a anjos e demônios que caminham de mãos dadas. Penso que estes corpos parecem imersos numa espécie de processo de subjetivação coletiva, onde vilãs/ões e mocinhas/os compartilham da mesma cumplicidade cênica, e onde já não existem o bem e o mau, e nem o certo ou errado, pois o carnaval recifense é assim.

E claro que para muitos estudiosos, esquecemos todos que o carnaval é uma festa de origem litúrgica, e que foi, e ainda é muitas vezes, associada com aos antigos “Bacanais” (Netto, 1999). Mas se tais associações têm causado até hoje, posicionamentos controversos entre os acadêmicos, ao povo pouco importa o quanto santificado ou satânico o carnaval possa parecer. Importa menos ainda se sua origem se mostra e continua incerta e imprecisa. Porque apenas nos interessa a palavra e seus sentidos correlatos. Não etimologicamente falando, mas simbolicamente referenciada (a etimologia da palavra ao que tudo indica decorre de “carnavalet” que se associa ao sentido de se poder comer carne, já que na quarta-feira de cinzas se inicia a quaresma, e a partir de então, durante quarenta dias fica proibido seu consumo). Mas acredito que é na correlação de sentidos e significados que a palavra emprega que o carnaval toma sentido e se caracteriza como festa da abundância de carnes e vinhos. E talvez neste aspecto, o autorizo a carne se estenda aos corpos já que o carnaval também se estabelece como festa da exibição e do consumo (simbólico, as vezes) que se dará através do ato de “comer com os olhos”.

Durante o reinado de momo, a estética se faz renegada e corpos magros, fartos ou malhados, desfilam “desavergonhadamente” livres do rigor moral. Roupas ou fantasias salientam partes intimas e assim, peitos, bundas, pênis e vaginas, tornam-se muitas vezes peças importantes aos jogos de sedução. É a carne exposta que, molhada de suor, excita e desperta o erótico (e o tesão?), transformando-se em objeto de desejo e causando frissons e delírios.

E novamente em consonância com DaMata, diria que o carnaval torna-se espaço para rituais orgásticos. A sublime luxuria que alimenta e sacia desejos, também provoca descontrolados movimentos corporais que apenas ambicionam aproximações. E na ebulição dos esfregões e roçados esses corpos se ouriçam e se cobiçam em excitações também incontroláveis. E na cumplicidade coletiva, inocente e/ou "indecente", a carne nos alimenta e revigora.

Seja em Recife ou Olinda, os corpos se tornam instrumentos para o movimento de liberação do proibido, tanto que, grupos estabelecem seus territórios redefinindo novas regras morais e de condutas. O que é permitido e o que é proibido mostram-se negociados e/ou negociáveis. E se a química não funciona para o estabelecimento de possíveis parcerias, logo as renegociações partem em direção a novos alvos. Surgem novas situações ou circunstancias onde as “pegações”, “azarações” ou “sarrações” possibilitam os contatos corporais. Espremidos em longas filas que se formam em corredores e ruas apertadas e estreitas, os corpos exalam libidos. E ao ritmo do frevo, do maracatu ou do samba, movimentos possibilitam toques nervosos, que propositais e/ou involuntários revelam e possibilitam a evidência de intenções explícitas e implícitas de tenso (e intenso) prazer e desejo sexual. Assim, bocas se colam ou se engolem, corpos se apertam e músculos e nervos enrijecem em parcerias momentâneas e urgentes. É a consagração do “deus Baco” que se revela nas possibilidades dos encontros e desencontros.

Depois tudo se acalma, até que o ano termine e o pipocar dos fogos de artifício anunciem a hora dos clarins voltarem a tocar, chamando o povo prá rua. “Acorda Recife! Acorda que já é hora de estar de pé. Levanta que o carnaval começou no bairro de São José”.


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