quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

MERCADO SEXUAL HOMOERÓTICO DE BUENOS AIRES - Capítulo IIII


 
 
Viernes, 11 de Enero de 2013.

Após uma extensiva e exaustiva semana de aulas, reinicio minha peregrinação pelas ruas de Buenos Aires em busca de informações sobre o mercado sexual homoerótico da Argentina, objeto de minha pesquisa de doutorado. Uma consulta na internet facilita a definição de meu alvo: Calle Gascon. A “Boate B” fica situada em uma rua extremamente calma, em um bairro residencial. Sua fachada em tijolos aparentes revela uma imponência que sinaliza a diferenciação do publico. O ingresso é mais caro, porém a cerveja é livre durante toda a noite, pelo menos as sextas-feiras e em algumas festas realizadas aos sábados. O protocolo de entrada se repete. Homossexuais portenhos vão chegando, e aos poucos vão se posicionando em esquinas próximas ou pontos menos iluminados da rua. Raramente alguém para em frente ao estabelecimento. É como se houvesse um código, um ritual, que parece objetivar a invisibilidade. Segundo Ernesto Meccia (2011), sociólogo portenho, a homossexualidade na Argentina passa por um processo de transição social e histórica que se dá de uma perspectiva de “la homosexualidad” para “la gaycidad”. Em outras palavras, os argentinos se encontram em pleno processo de restruturação e consolidação de uma nova representação da homossexualidade, e logicamente da identidade gay, pela qual buscam se firmar diante de uma sociedade ainda fortemente guiada pelo modelo heteronormativo. De certa forma, a situação me parece estranha, uma vez que o país tornou-se o primeiro da América Latina a oficializar leis que estabelecem as garantias de direitos das pessoas de orientação sexual “no-heterosexual”, tais como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adoção de crianças por homossexuais e a lei de gênero que garante a cirurgia de transgenitalização e mudança de documentação civil, inclusive para as travestis e transexuais estrangeiros residentes.

Posiciono-me próximo a boate, pouco afastado da entrada, cumprindo o ritual local. Tal localização favorece a minha observação. Dois jovens se encontram e iniciam uma conversa. Os argentinos falam rápido, o que quase sempre dificulta a compreensão. Eles falam sobre a noite, trazendo banalidades cotidianas. Começo então a observar comportamentos e posturas corporais. Diferentemente de Recife, os gays de Buenos Aires portam-se e vestem-se de maneira bem mais formal. Quase não gesticulam. Em duplas ou em pequenos grupos travam conversas mantendo o tom de voz baixo e discreto. Não existe a ferveção noturna recifense, muito menos a euforia dos encontros. Neste sentido, o que me chama a atenção é a diferença cultural que se revela no cumprimento social entre os homens, que se estabelece com um beijo no rosto. Uma “lesbiana”, classificação nativa para as homossexuais femininas, me aborda tentando vender seu ingresso, que comprado antecipadamente tem abatimento de 20%. Já meio alta, ela tenta me convencer das vantagens da barganha. Recuso a oferta e ela se afasta irritada. Nesse aspecto, percebo que as mulheres homossexuais parecem mais a vontade com o posicionamento social. A postura corporal e as indumentárias revelam de maneira mais evidente suas identidades e orientações sexuais. Penso então como se estabelece esse processo de transformação sóciohistorica e política também para as mulheres homossexuais portenhas. Minhas reflexões são interrompidas com a chegada de uma “Van-Escuela” (Van-Escolar) de onde descem uma travesti, acompanhada por seu companheiro, uma lesbiana e um homossexual, que aqui pode ser classificado como “munhequita”, denominação popular para os afeminados. Os boys de programa parecem seguir o modelo de estereótipo universal. Malhados, revelam a definição de musculaturas cuidadosamente trabalhadas em horas de academia. As roupas justas revelam volumes e também sensualidades. O mesmo ocorre com os munhequitas, em grande parte com seus cabelos descoloridos, tingidos ou modelados em gel. Por sua vez, as travestis parecem mais a vontade, imponderadas de uma autoridade garantida em lei. São reconhecidas e identificadas como mulheres. Porém, mesmo nesses grupos de categorias identitárias a discrição se estabelece como padrão.

Resolvo entrar na boate e aproveito para observar mais uma vez a movimentação. Aos poucos os homossexuais vão chegando a pés, de taxi ou em carros particulares. Outro ponto que chama a atenção refere-se ao fato de não existir filas de entrada. Com a abertura das portas, eles parecem seguir novo protocolo. Não se aglomeram, mas entram de forma individualizada e rápida. No exterior um mundo novo e específico parece se abrir as novas possibilidades. A socialização parece mais intima, com abraços e beijos. A música é alta e de pancada forte. Da pista principal, duas escadarias paralelas levam aos mezaninos, onde bares bem equipados e coloridos servem como espaços grupais. Já são quase duas horas da manhã e o dancing está vazio. Uma travesti magra e alta movimenta-se “bailando” pelo salão, como a convocar a todos para a grande festa. Um vestido vermelho vivo ajustado ao corpo revela sua magreza. Os cabelos ondulados cobrem-lhe parte do rosto e servem as performances das caricatas. No bar principal, de frente a pick-up, várias pessoas esperam sentadas, com copos nas mãos. O champanhe parece tradicional, que servido em copos finos e longos (canillas), parece reluzir em cores vibrantes ao comando da iluminação computadorizada. O espaço é amplo, com capacidade para mais de duas mil pessoas. No pavimento superior um mini-dancing aglomera pequenos grupos. Pergunto sobre a existência de fumódromo e sou direcionado ao banheiro masculino. A concentração de fumantes torna o ambiente quase insuportável, envolvido por uma espécie de neblina. Algumas cabines e mictórios compõem tais espaços, dotados de grandes espelhos. Enquanto fumo, observo o comportamento dos portenhos e constato a não existência da famosa pegação, comum as boates brasileiras. Indago se o fato é cultural ou imposto pela presença de seguranças da casa.

Três horas da manhã e finalmente o dancing está cheio. Apesar da multidão é possível se mover com facilidade e sem grandes tropeções ou atropelos. Os argentinos pedem passagem com um breve “permición” mesmo em lugares lotados. A cada esbarrão ou tropeço pedem “perdón”, o que nos obriga uma radical mudança de comportamento. No palco, onde se encontram os DJs, dois go-go boys dançam de forma sedutora. Os corpos musculosos, mais uma vez, se sobressaem e despertam a atenção do público. Uma pequena aglomeração se concentra diante dos deuses apolíneos. Mulheres aproveitam a proximidade para as fotos que insinuam erotismo. Os homens se mostram reservados e menos eufóricos. Novos dançarinos assumem o posto e dançam de forma comum, cumprindo um ritual específico. Os corpos bem torneados e suados parecem atiçar as libidos, mas diferente de Recife, as demonstrações de aprovação mantém-se dentro de um modelo de reserva.

Em um dos mezaninos uma grande cortina me chama a atenção. Resolvo explorar o ambiente que é acessado por duas escadarias em lados opostos. No corredor de acesso várias pessoas se mantêm em uma espécie de bem-me-quer. Sigo em frente e chego a um espaço que serve como dark-room. Centenas de pessoas se aglomeram em uma espécie de suruba generalizada. São homens, mulheres e travestis em práticas sexuais. Confesso minha surpresa diante da inusitada cena. De repente um único espaço abre possibilidades a dois mundos. Observo que as luzes se mantem acesas, o que possibilita a visualização de tudo que se passa. Naquele espaço não existe o anonimato comum a estes ambientes. É possível verificar as variações de encontros e práticas sexuais envolvendo duas, três, quatro ou multidões de pessoas. Por todos os espaços que já andei ou circulei nunca havia presenciado nada tão grandioso no que se refere à concentração e envolvimento de pessoas. Relembro que algo desta magnitude só havia presenciado na Praça da República, em São Paulo, durante uma das paradas da diversidade, fenômeno que denominei como “Árvore de Avatá”, em relação direta ao filme.

O sexo parece quebrar barreiras e liberar tensões. Ali, naquele espaço, parecia não haver medos, culpas ou receios de exposição. Existe de certa forma uma espécie de liberação consentida. Não sei se é precipitado de minha parte registrar a presença de seguranças da casa como forma de manutenção da ordem ou segurança, ou apenas como curiosos. Fato é que estes não se envolvem ou interferem nas ações. Acho que aquele é o melhor exemplo para reafirmar a sabedoria popular que diz que a noite todos os gatos são pardos. Não existem diferenças ou diferenciações. As identidades e desejos se misturam. Assim, pude observar a livre interação entre um homem, uma mulher e uma travesti, ao mesmo tempo em que constatava as interações entre homens, entre mulheres e entre grupos mistos. Do alto do bem-me-quer pude observar a indiferença da maioria das pessoas presentes nos demais ambientes da boate. Eram realmente dois mundos em um mesmo espaço. Para mim, era o inicio da compreensão de um universo que se estabelece em modelos universais, ao mesmo tempo em que define e expõe particularidades e especificidades: o mercado sexual argentino.

Cinco horas da manhã e resolvo voltar pra casa. Saio para a rua que se mantém calma e alheia. Nada chama a atenção ou viola a tranquila normalidade da cidade. Da faixada à estrutura arquitetônica, a boate se mostra integrada ao contexto da clandestinidade, também comum a outras cidades e regiões. Chego a Avenida Córdoba e a encontro vazia. Poucas pessoas transitam no local, talvez se direcionando aos locais de trabalho, ou chegando de outras festas. Tudo é muito calmo e discreto. Não há barulhos, espalhafatos ou algazarras. Sigo quatro quadras caminhando pelas calçadas até chegar a Jean Jaurés. Alguns grupos de jovens encontram-se sentados em frente aos prédios bebendo e conversando, enquanto algumas outras pessoas passeiam com seus cachorros. Tudo é muito silencioso, inclusive a circulação das viaturas da polícia municipal que parece garantir a tranquilidade e segurança de quem vivencia a noite portenha.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

MERCADO SEXUAL HOMOERÓTICO DE BUENOS AIRES - Capitulo II


Comunidade Peruana
 
DE VUELTA A LA TERRA DE LOS HERMANOS

Quatro de janeiro de 2013. Chegamos com o por do sol. Eram oito horas da noite e o céu estava amarelo. Abaixo de nós, nuvens cinza e espessas contrastavam a beleza colorida e luminosa. Uma inclinação suave para a direita e iniciamos o pouso. Não posso negar meu próprio espanto. Estava absolutamente tranquilo e pela primeira vez viajava sem medos ou receios. Acho que a idade trás sobriedade. Estávamos voltando à Argentina depois de seis meses e era de certa forma como se retornássemos para casa. Este lugar me trás a estranha sensação de algo conhecido e muito próximo. Algo que não consigo explicar e muito menos entender. Ainda do alto vislumbra-se uma cidade que parece geometricamente organizada, com vias longas e retas que parecem não ter fim. Apesar do verão anunciado, chovia bastante. Relâmpagos iluminavam o céu que era cotado por grandes e sucessivos raios. O Aeroporto Internacional de Ezeiza estava apinhado de gente. A mistura de idiomas sempre me deixa meio confuso e o fluxo de raças me desperta atenção. A burocracia para registro do visto provisório de residência toma mais tempo que o previsto. Apanhar as malas, se organizar, contratar um taxi, consomem mais alguns preciosos minutos. Significava um atraso que acarretaria multa. Na Argentina os incômodos são pagos em dólar. Quem aluga apartamento em Buenos Aires deve dar entrada no imóvel até às dez da noite, e saída a partir das oito da manhã. Não há acordos e muito menos o famoso “jeitinho brasileiro”. Assim, já estávamos no prejuízo. Quarenta minutos por estradas bem conservadas e devidamente sinalizadas revelam as vantagens da privatização das principais vias e rodovias. Um primeiro sinal para salientar as diferenças culturais. O veículo parecia deslizar sobre a pista molhada, livre dos solavancos tão comuns aos brasileiros.

Pela Av. Córdoba chegamos a Callle Jean Jaurés, no bairro de Abasto, nosso destino nos próximos vinte dias. O prédio é antigo e segue o padrão da arquitetura que classificaria como novo-portenha. Descemos do taxi em baixo de chuva e corremos para a marquise. Mas aqui elas não existem. Como bem sinalizou Tulio Carella, marquises é invenção brasileira. O interfone de estilo europeu é dourado e repleto de botões que indicam os andares por letras. Diferente do Brasil, as letras substituem os números dos apartamentos. Não havia ninguém para nos receber e o receio de ficar na rua nos apavorou por alguns minutos. Tempos depois, um casal de argentinos nos abriu a porta e contatou a síndica. Simpáticos e solícitos quebram uma antiga impressão pessoal relacionada à receptividade de “los Hermanos”. Não tenho dúvida de que tal impressão é resquício de uma antiga e fantasiosa rivalidade que alimentamos por décadas. A síndica é uma senhora meio agitada. Meio desconfiada nos recepciona e conduz ao apartamento. Uma sala grande é dividida em dois ambientes por um biombo. Um banheiro e uma cozinha completam o ambiente. Uma janela grande dá para os fundos de uma escola, onde vejo uma bandeira de Israel. Por um minuto receei o barulho durante a manhã. Com o tempo descobrir que os portenhos não incomodam vizinhos. Isto é regra. A síndica fala bastante rápido, o que dificulta a compreensão precisa das coisas. É necessário tempo, e certa paciência, para ajustar a escuta.

Na manhã do dia seguinte saímos cedo e percorremos as ruas para mapear pontos e identificar caminhos mais curtos que nos levem a universidade. Diferente do inverno, Buenos Aires se mostra mais colorida e leve. Também parece menos agitada, provavelmente devido ao feriado prolongado do final de ano. Para alguns estabelecimentos as férias se estendem até março. As praças estão floridas e as ruas mais limpas, ao contrário do que presenciamos em julho passado, período de grandes greves. O calor está ameno, mas o ar está abafado. Na Avenida Corrientes, esquina com a Calle Paraná, entramos no La Faina para uma refeição rápida. O tostado misto (que nada mais é do que nosso famoso mixto quente) acompanhado de café com leite ou gaseosa (refrigerante) está em promoção e custa a pequena bagatela de $ 23,00 (vinte e três pesos), equivalente a mais ou menos R$ 9,20 (nove reais e vinte e cinco centavos), dependendo da cotação do dia. Esse é um problema a se enfrentar de imediato, pois nunca sabemos realmente o valor das coisas. A carestia revela a fragilidade econômica e a desvalorização da moeda local. Fala-se muito em recessão e inflação, o que me faz lembrar a década de oitenta e inicio dos anos noventa no Brasil. Com um mapa sobre mesa sinalizamos o retorno pela Marcelo T. de Alvear, onde se localiza a Universidad Del Salvador. Já situados, retornamos ao bairro onde Carlos Gardel viveu ao lado de sua mãe seus últimos dias de vida. Sua antiga casa foi transformada em museu e serve como referencia ao local.
O bairro é residencial e apresenta uma mistura étnica e religiosa. Apesar da força da religião católica no país, pois a Argentina não é um país laico, pelo menos neste bairro é comum à presença de judeus. Ao lado se encontra uma rua denominada popularmente como corredor peruano. A identificação torna-se inevitável. Mulheres e crianças descansam embaixo de árvores ou sentadas nas portas das casas. Os homens por sua vez, se reúnem nos bancos das ruas para beber e conversar. De menores estaturas e pele morena, os peruanos circulam por várias quadras que parecem formar um gueto. Em meio a tudo isso, uma variedade de casas de show, bares, cabarés e kioskos com fachadas coloridas se espalha pelas ruas, revelando a força do tango. Carlos Gardel parece surgir em cada esquina, em cada estabelecimento. Várias escolas de dança oferecem opções para iniciantes e turistas que pretendem se arriscar nos passos de uma dança que já foi considerada imoral. 

Sigo pela Viamonte em direção ao centro. Pelo caminho revejo velhos endereços que compõem o mercado homoerótico da cidade, aos quais precisarei voltar para novas observações. As aulas só começam na segunda-feira, então resolvo continuar bancando o turista fascinado. Chego ao Teatro Colón. Na praça em frente há uma exposição de fotografias que remontam sua história. Torna-se engraçado perceber a passagem dos anos e as consequentes transformações urbanas que caracterizam cada cidade. Paro diante das fotos em preto e branco e me perco imaginando sobre a vida daquelas pessoas, que agora estampam sorrisos congelados no tempo. Dos jardins eleva-se a sinfonia de Bethoven e o caminhar lento e tranquilo dos visitantes mais parece um bailado. Existe uma harmonia encantadora entre natureza e historia naquele local. Arrependo-me por não ter trazido a máquina fotográfica. Pelo lado oposto chego novamente a Av. Corrientes e sigo em direção ao Obelisco, símbolo máximo da cidade. A diversidade de flores coloridas que o rodeiam me chama a atenção. Finalmente encontro a Calle Florida, centro de compras e fluxo de artistas populares. Ali também as diferenças étnicas se fazem presentes. Imigrantes, em sua maioria, “latinos”, pedem esmolas nas calçadas de ricas lojas de departamentos. Crianças e adolescentes perambulam em meio à multidão. Raças, estilos e tonalidades de peles se misturam formando um grande mosaico humano. Uma espécie de Torre de Babel onde os povos se encontram, cruzam, mas não se conhecem. A Galeria Pacífico está lotada, assim como as demais lojas e estabelecimentos comerciais locais. Homens e mulheres abordam transeuntes divulgando os serviços de prostitutas. Os panfletos em formas e cores diferentes se espalham pelo chão. Identifico alguns homens que supostamente parecem garotos de programa, porém não tenho dados ou informações suficientes que confirmem a hipótese. Cansado, inicio o retorno e volto para casa.

À noite volto a Boate, que aqui denominarei como “Boate A”. Justifico a utilização de códigos para os estabelecimentos como forma de preservar os segredos da cidade. Não me sinto no direito de expô-la de forma inconsequente, e nem desejo que minhas impressões sirvam como roteiros para o turismo sexual. Já é meia noite e o fluxo de homossexuais é pequeno para um sábado de um grande centro urbano. Garotos conversam encostados a um muro e parecem se proteger da visibilidade imposta pela rua. Um carro da patrulha municipal encontra-se estacionada na frente do estabelecimento. Observo que os gays portenhos são bastante reservados. Muitos se posicionam em esquinas paralelas esperando a abertura da casa noturna. As aglomerações também são pequenas, diferentemente de Recife. Acredito que existe certa repressão em relação à diversidade sexual. Muito raramente verifica-se a troca de carinhos ou demonstrações de afetos entre homens homossexuais nas ruas. Casais de homens andando de mãos dadas nem pensar. Até as travestis se mostram discretas e reservadas.

Inicio uma conversa com um rapaz que aguarda na frente da boate. Ele é de estatura mediana e pele bastante clara. Diz ser venezuelano e que está em Buenos Aires a estudo. Outro se aproxima e entra na conversa. Aproveito para conhecer melhor a realidade local. Questiono porque poucos se aproximam da boate e eles explicam que a reserva é uma característica portenha. Pergunto como se denomina popularmente os homossexuais. Respondem que vulgarmente se chamam “munhequitas”, porém tal classificação se emprega apenas aos “afeminados” e não aos “normais”. Questiono então sobre o que é ser um homossexual normal. Respondem que significa ser um homossexual discreto e que se veste como homem. Pergunto se sabem algo sobre a prostituição masculina nas ruas e informam-me alguns endereços que visitarei posteriormente. Chama-me a atenção uma categoria que utilizam para denominar heterossexuais que se envolvem ou se relacionam sexualmente esporadicamente com homens homossexuais. Estes são classificados como “Homo-Curiosos”, uma vez que as relações estão vinculadas a curiosidade, descobertas ou as possibilidades de novas experiências. Uma espécie de exercício ou elasticidade da sexualidade ou vivência sexual. Observo uma placa na entrada da boate. De imediato imagino que sinaliza as diferenças de classes sociais. Tal estabelecimento é descrito como espaço de diversão destinada a “Classe C”.

Os demais jovens parecem isolados, conectados ao mundo via celular. Ninguém fala, ninguém brinca, ninguém chama a atenção. Depois de um dia exaustivo decido não prolongar a noite e volto para casa sem conhecer o estabelecimento. Penso que terei bastante tempo e que as informações colhidas já representam um bom começo. Já consigo me comunicar com os nativos, mesmo não tendo a fluência necessária. São duas horas da madrugada e muitos moradores passeiam com cachorros pelas ruas. Apesar da grande violência anunciada, Buenos Aires mantém um ar de calmaria que me agrada.

O domingo é extremamente calmo. Acordo sem a tradicional suada do comercio da Boa Vista. As ruas também em nada lembram o Recife dos últimos quatro anos. São limpas e organizadas. Algumas obras revelam a ampliação da rede de metro, aqui chamado de “Subter”. As árvores estão floridas e a cidade parece paralisada no tempo e no espaço. Os restaurantes, cafés e kioskos estão abertos, contudo não interferem na calma silenciosa. Placas de sinalização pedem desculpas pelos transtornos das obras. Observo que as calçadas possuem estruturas de acessibilidade, possivelmente devido a grande concentração de pessoas idosas. O envelhecimento da população é uma constatação inevitável, porém o número de pessoas com deficiência física e/ou cadeirantes parece bem reduzido. As pessoas passam silenciosas. Não há gritos, ninguém anuncia produtos nas frentes de lojas. A população em situação de rua se espalha por vias e praças menos visíveis. Nas praças, pessoas se deitam nos gramados e jardins para curtir o sol. Como não existem casas, e muito menos terrenos, as praças são invadidas por várias famílias. Crianças correm e brincam sem grande baderna. Casais foram toalhas e armam espreguiçadeiras. Grupos de rapazes bebem e conversam amenidades. Tudo parece um grande pequi-nique.
Da janela observo a rotina de uma família portenha que mora ao lado da escola. São três mulheres e um menino de mais ou menos cinco anos de idade. Sobre a laje do primeiro andar, um terraço se estende até os muros da unidade de ensino. As mulheres, sentadas a mesa, conversam calmamente enquanto tomam chimarrão. Penso que podem ser irmãs ou amigas em folga. Da interior da casa surge a voz de Adele. A melodia me traz lembranças e saudades. A tarde chega e elas continuam no mesmo lugar e na mesma sonoridade. O dia parece preguiçoso para aquelas mulheres. A tarde finda, mas não escurece. São oito horas da noite e elas continuam bebendo e conversando. O céu ainda está amarelado. A noção de tempo é outra. A rotina é outra. A cidade é outra.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MERCADO SEXUAL HOMOERÓTICO EM BUENOS AIRES - PARTE I


 

Um Estrangeiro na Capital Federal

Pela segunda vez em Buenos Aires, me ponho a refletir sobre a condição de ser estrangeiro. Descobrir ou desvendar uma cidade nunca foi ou será uma tarefa fácil. Penso que tenho me colocado na contramão das convenções. Sou um turista às avessas. Não me interessa o comum, o convencional. Sou um homem do mundo, e neste sentido, busco pelas partes e fragmentos que compõem o todo. Cada mundo estará sempre dividido em submundos, onde se estabelecerão novos universos. E cada uma dessas dimensões terá seu lugar, papel e valor. Cada submundo tem sua importância e sua historicidade especifica, assim como sua dimensão espacial, econômica, social e politica. Os submundos de uma cidade se transformam em fragmentos de um mundo dentro do próprio mundo. Tornam-se peças de um quebra-cabeça, que aos poucos se unem para revelar uma paisagem ou retrato de algo que supomos conhecer, mas que em essência é apenas superficialidade. Não se conhece algo em profundidade sem recorrer as suas bases. E estas não se revelam a olhos nus de forma imediata. As bases que formam uma cidade, um povo, uma sociedade, estarão sempre escondidas ou camufladas. Faz parte de outro mapa, uma espécie de guia que não encontramos em bancas de revistas. É preciso olhar além das fachadas, ler os subscritos e entender os nãos ditos.

Assim, não me basta à beleza, não encanta a superfície do mundo aparente. O que busco não é a verdade absoluta, pois que esta não existe. O que procuro está nas partes que compõem as verdades individuais, ou em suas representações, que formam ou estabelecem um mosaico coletivo e vistoso, porém não menos traiçoeiro. Parto das partes que compõe o todo, ou a representação coletiva deste. Neste sentido, sei que o que se apresenta de imediato nunca será realmente o que pretende se mostrar, mas apenas fragmentos de algo bem mais complexo. Assim é Buenos Aires, que não se revela instantaneamente diante do estranho. Suas verdades estão no obscuro do que não se diz ou se divulga, no escuro da noite, no submundo que forma suas margens. Minha intenção e propósito é conhecê-la pela raiz e não pela copa, que tende a se mostrar sempre frondosa e sedutora, e que por isso engana ou ilude. Meu objeto de investigação está entranhado em seu subsolo, em suas sarjetas, quinas e esquinas que formam o universo marginal. E neste ponto, sei que as margens são sempre menos belas e interessantes que os centros, focos dos olhares e flashes seduzidos. Penso que toda cidade é uma Medéia que petrifica olhares. Não se pode olhá-la de frente. Não se pode fita-la aos olhos. Faz-se necessário um protocolo. Pedir licença para acessar seus segredos. E isto, é o que tenho feito, cautelosa e pacientemente. Desvendar códigos de acessos, passes de autorizos que me levem além das transparentes cortinas que separam seus mundos. Dois mundos – superfície e subsolo. Dois espaços que geométrica e socialmente dividem e demarcam uma cidade em subúrbio e centro, compondo uma mesma dimensão.

Metaforicamente falando, Buenos Aires é realmente uma linda e frondosa árvore fincada nas entranhas culturais da Argentina. Mas ao contrario de muitos não olho para cima. São as raízes que me interessam, pois que estas adentram profundezas e conduzem a espaços e lugares aonde poucos chegam. Uma vez nestes, torna-se preciso encontrar as chaves através das quais se abrirão novas portas. Sem as chaves ou códigos de acesso corretos, corre-se sempre o risco de se perder no caminho, ou pior, de não poder retornar a superfície. Ninguém acessa segredos sem pagar um preço. No melhor das hipóteses o revelar dos mistérios nos imporá reformulações sobre nossas próprias concepções de mundo. Em casos extremos, a loucura. Ninguém se mantém indiferente diante do não dito, do não visto, do invisibilizado. Jamais se é o mesmo após acessar as margens e os submundos, pois que neles encontramos a essência humana. O homem-superfície é o mesmo homem-subsolo, contudo suas concepções de vida e de mundo se alternam e/ou se alteram em conformidade as regras e normas de cada espaço. Em um, se mostra racional e cumpridor de formalidades; no outro, se desvincula e nega a razão para se entregar aos instintos. Mas é no subsolo que lidamos com o cru, com o áspero, com as vísceras e com os restos. Não sei ao certo se o submundo estabelece os sistemas de poder, e consequentemente, os sistemas políticos que governam as massas nas superfícies, ou se apenas lhes servem como esteio e base de manutenção da hipocrisia social, culturalmente construídas para omitir perversões. Independente destas elucubrações, tendo a refletir sobre a relação dualista intricada na relação visibilidade/invisibilidade que separa e define tais espaços. Não existe o submundo sem o mundo superfície. Um necessita do outro, para juntos coexistirem e se manterem. Ambos, criações e construções humanas, e assim, servem apenas aos interesses dos homens. Neste aspecto, o mercado do sexo não se mostrará diferente.

A noite demarca seus limites, mas não define suas extensões. Ruas calmas e tranquilas parecem possuir portais mágicos que se abrem as permissividades condenadas na superfície. Paredes separam mundos e tornam-se fortalezas para possibilitar que o não dito e não visto se efetivem sem censuras ou repressões. Uma espécie de acordo de cavalheiros. Um espaço e um tempo para cada coisa. Um lugar onde se retira as roupas sociais. Um universo, onde parece não haver necessidade de máscaras. Penso, contudo, que o mundo do sexo comercial é tão ilusório quanto o mundo superfície. O que muda são os códigos, sejam corporais ou comportamentais. Porém as regras são tão rígidas, e detalhadamente definidas e negociadas, quanto no mundo-superfície. As normas são produções humanas que nos servem de guia e ao direcionamento de condutas. Não existem mundos sem regras ou normas. Digamos então, que o mundo do sexo comercial é uma tentativa do desmantelo organizado. Mas apenas uma tentativa utópica, não real. Os que acessam os dois mundos, parecem ansiar pela quebra de rígidos paradigmas, contudo, automaticamente reformulam e introjetam novos modelos que nada mais são do que novos contratos sociais. A norma se reestabelece, ou apenas se reconfigura, compondo novos códigos de condutas onde se delineiam o velho duelo entre o proibido e o permitido. A ilusão de liberdade genuína cria apenas uma nova ilusão de pretensa ou utópica liberdade. O homem se mantém preso em seus próprios sistemas, seja na superfície ou no subsolo, onde também nada parece ser o que realmente é, ou se mostra.

Saio às ruas e identifico estes novos códigos. Não há nada realmente novo em essência, nada imprevisto. Aqui ou lá os corpos se comunicam. O olhar torna-se o campo do não dito, do não explicito, onde os pares e/ou semelhantes se encontram. Mas é preciso astúcia para entender e decifrar mensagens ocultas, palavras não verbalizadas, não permitidas. Tudo funciona como uma espécie de intercambio invisível, ou melhor, propositalmente invisibilizado. É como se disséssemos: estou aqui e te vejo. Não mais te fazes oculto a meus olhos. E a cumplicidade se faz no silencio das palavras. A confirmação se estabelece em um breve movimento de cumprimento ou saudação. Uma espécie de confirmação pela qual se sinaliza: também te vejo e te reconheço. Estabelece-se o primeiro passo para uma potencial interação, seja social ou sexual. Só a experiência permite a identificação dos códigos específicos de dois mundos que se cruzam e se relacionam simultaneamente dentro de espaços de um ou de outro. O olhar também sinaliza recuo ou avanço, pois que entrega intensões. Objetivos e propósitos parecem ser codificados para evitar surpresas ou problemas. É preciso que o olhar codifique também os movimentos e posturas. Tudo é sinalização, tudo é aviso, tudo é alerta. Nada é bastante claro ou explícito. És a principal regra de quem acessa o universo do sexo comercial: ler e entender o não dito, o não explícito.

Desta forma, a experiência em Buenos Aires tem me proporcionado momentos incríveis e inusitados. Não se pode esquecer a condição de estrangeiro, que nos coloca em uma outra posição, em um outro lugar. As perspectivas se alteram, e neste sentido assumimos o lugar de “outro”. Tornamo-nos os diferentes, e em certo sentido, os intrusos. Muitas vezes, as interações sociais se estabelecerão em uma relação de receptividade e/ou repulsa, e o acesso a espaços, costumes e rotinas se fará lento. As diferenças se estabelecem a partir do idioma, e se estendem em hábitos, costumes e condutas. A tradição estabelece as regras e normas. Na perspectiva em que me encontro sou observador, ao mesmo tempo em que me torno observado. Lembro-me então do Tulio Carrela, professor argentino que viveu em Recife no início dos anos sessenta e que de forma biográfica revelou o submundo do universo homossexual da cidade. Apesar das diferenças temporais e socioculturais que separam nossos momentos, em muito as situações se assemelham. Num caminho oposto, saí do Recife para desvelar o submundo do universo homoerótico argentino. Enquanto suas impressões sobre a temática surgem de uma constatação quase que inusitada, não prevista ou pretendida, as minhas revelam-se como desdobramentos intencionais e previamente planejados. Representa a continuidade de minhas pesquisas sobre as sexualidades masculinas.

Identificar e conhecer um mercado homoerótico em Buenos Aires, para depois compará-lo ao de Recife, me estimula a analisar a influencia de diferentes culturas sobre a estruturação e consolidação das relações de gênero. Assim tenho estabelecido estratégias que me possibilitem a circulação e interação com a capital portenha. A cada estadia em Buenos Aires tenho me instalado em um bairro diferente. Anteriormente no Congresso e hoje no Abasto. As localizações geográficas tem se mostrado decisivas para o mapeamento do grande centro urbano que parece se estender por quilômetros de extensão. Outra estratégia é a inserção na rotina e no cotidiano local. Se envolver no emaranhado social na tentativa de diminuir a visibilidade estigmatizada pelas marcas corporais. Somos latinos. Não que os portenhos não o sejam, mas nos diferenciamos em estatura física, cor da pele e sotaques. Em contra posição, os nativos desta cidade se classificam como “Europeus de espírito latino”. Em meu entendimento tal classificação não representa apenas um conjunto de palavras, mas um conceito. Falamos de uma identidade que os diferenciam de seus pares. Nesta cidade não só a arquitetura é europeia, mas também os costumes revelam sua forte influencia. O argentino é pacato e reservado. Não é efusivo. À primeira vista nos parecem isolados, solitários e intransigentes. Mas cada povo tem seu jeito e suas características. De forma simplista poderíamos dizer que aqui, o espaço do outro termina na porta de casa. Existe um limite muito sólido entre o público e o privado. Os segredos são mantidos da porta para dentro. A vizinhança se estabelece pela cordialidade formal. Não há espaço para violação ou invasão, características tão comuns aos brasileiros. Assim, falar a mesma língua, comer as mesmas comidas, adotar os mesmo hábitos, acima de tudo, tem me possibilitado acessar os sujeitos que vão se tornando potenciais informantes. O processo é lento, mas extremamente necessário. Conhecer a cultura de um povo não se faz de imediato, desvendar sua essência e natureza muito menos.

Inicio então uma espécie de diário de bordo, na tentativa de descrever minhas principais impressões sobre a estruturação e consolidação de um mercado sexual homoerótico na capital argentina. Saliento, contudo, que estas são apenas minhas impressões e não verdades absolutas sobre a temática, sobre a cidade, e muito menos sobre a cultura de um povo. Meu objetivo é registrar uma experiência, que para mim tem sentido e valor pessoal e acadêmico. Servirá como experiência, como forma e estratégia de avaliar o paulatino desenvolvimento, bem como os processos de minha investigação.