terça-feira, 19 de julho de 2011

RECIFE: UMA CIDADE HOMOFÓBICA

O SILÊNCIO DOS INOSCENTES E A IMPUNIDADE DOS CRIMINOSOS

Dois homens caminham abraçados pelas calmas ruas de sua cidade. Duas gerações compartilhando histórias, experiências e felicidades. A relação amistosa dos dois chama a atenção dos brutos. São interpelados por bêbados. As agressões começam como brincadeiras. Alguém pergunta se são gays. Eles respondem que não e se identificam como pai e filho. Os toscos duvidam. Eles nunca caminharam abraçados aos pais. Talvez nunca tenham dividido histórias, experiências e felicidades com os filhos. Um deles se precipita e os agride. Os demais, como que em bandos acompanham o ato. Socos, murros, pontapés e chutes sucessivos são deferidos sem grandes motivos aparentes. Não são homens contra homens. São bárbaros contra gays imaginários. São inescrupulosos abrutalhados contra as representações da homossexualidade. Não se sabe quem tem mais medo. Quem apanha teme a vida. Quem bate teme a virilidade. Não é a pessoa em si que se abate, mas o próprio receio ao desejo do que é considerado impuro e indigno.

A narrativa pareceria cena de filme americano se não tivesse acontecido esta semana em uma cidade do interior de São Paulo. O homem mais velho, que se identificou como pai, teve parte da orelha amputada; o outro, identificado como filho, sofreu graves escoriações pelo corpo. Dois homens marcados pela violência que se pauta na homofobia. A notícia no Jornal Nacional talvez pareça distanciar o fato de nossas vidas, afinal de contas, essas coisas acontecem corriqueiramente na sociedade paulistana. Aqui as coisas não acontecem assim, dirão os mais desavisados. Nessas paragens as coisas acontecem exatamente assim, ou pior, dirão aos mais coerentes. Isso é coisa de mega-metrópole alegarão os alienados. Isso é coisa do Brasil, mostrarão estudos e pesquisas.

Um jovem é acuado por um homem dentro de seu Studio fotográfico. Seu rosto é golpeado pelas próprias câmeras. Seu crânio é amassado por pesados chutes. Seu pescoço envolvido por grossos fios. Seu corpo é abandonado no escuro silencioso da noite. Ele era gay? Perguntaram os mais apressados em apontar motivos. Ele era meu amigo, direi eu a quem tenta justificativas. Isso não aconteceu em São Paulo, mas ocorreu aqui, no bairro da Madalena, próximo ao centro do Recife. Assim como ocorreu com outro de meia idade, atacado em seu salão de beleza e degolado vivo. Se ele também era gay? Acho que isso é o que menos importa. Digo que era um homem digno e cumpridor com seus deveres e obrigações sociais. Um profissional de mão cheia. Um ser humano como poucos, morto na crepuscular Rua da Glória.

Um homem maduro é encontrado morto em um apartamento dos tantos prédios da Av. Conde da boa Vista. Sucessivamente golpeado com um banco de madeira. Acuado no silêncio obrigatório as relações clandestinas. Abatido dentro de casa como um animal doente. Do mesmo jeito que outro em Olinda. Um homem de classe média alta foi encontrado morto em sua piscina, divulgaram os jornais. Não havia pistas, não havia suspeitas, não haveria culpados, como em todos os casos. Não se encontrariam respostas, apenas corpos desfalecidos e desfigurados. Não se encontrariam provas, apenas suposições sobre crimes passionais, ou atos de marginais com quem as vítimas haveriam se envolvido afetiva e/ou sexualmente. Só restariam números mal contabilizados. Não haveria punições.

Ainda este ano outro amigo meu foi assassinado a pedradas e pauladas. O culpado não foi condenado porque não havia provas suficientes. A grande questão talvez consista em se analisar a situação a partir de outra perspectiva. Esses crimes são tão bem pensados e meticulosamente elaborados a ponto de não deixar rastros; ou os órgãos competentes estão tão despreparados, técnica e profissionalmente, a ponto de não encontrarem vestígios que levem aos suspeitos, e consequentemente aos culpados? Talvez não seja nem uma coisa e nem outra, o que nos levaria a pensar sobre o fato desses crimes não interessá-los verdadeiramente. Afinal de contas são apenas homossexuais assassinados. E talvez seus executores até estejam contribuindo para banir e acabar com a escória. Talvez ainda, tais crimes até sirvam, na cabeça de muitos, como lição aos novos afoitos que por ventura se sintam tentados ou desejosos a seguir na contravenção da normativa heterossexista. Uma espécie de recado tutelado pelo próprio Estado no sentido de controlar o desregramento das novas gerações.

De qualquer modo, tais ocorrências possuem a mesma causa. São crimes homofóbicos. Para quem não sabe [e creiam ainda existe que não saiba], a homofobia se caracteriza enquanto aversão a homossexuais. Por sua vez, ter aversão por alguém significa alimentar o ódio, o rancor, a antipatia, a repugnância e a repulsa pelo outro. Por sua vez, “fobia” se traduz como medo intenso ou irracional. Isso significa que quem a sente nem sempre sabe o motivo ou origem. Também pode ser entendida enquanto medo mórbido [ou doentio]; aversão que provoca hostilidade instintiva [da qual nem sempre se tem controle]. Assim, como existem pessoas que tem medo de lugares fechados [claustrofobia], existem as que temem o próprio ar [aerofobia]. E da mesma forma que algumas temem o vinho [enofobia], outras entram em pânico e sentem horror diante dos atos sexuais [erotofobia]. Do mesmo modo que algumas agonizam diante de baratas, outras se descontrolam diante de homossexuais. Mas neste sentido é preciso esclarecer que estes não são asquerosos ou perniciosos como tais insetos.

O medo em si não é sobre, ou dá, coisa que se apresenta diante de nossos olhos, mas o significado inconsciente do que representam. O objeto serve apenas como representação, talvez motivada por um redirecionamento da energia libidinal reprimida. Talvez não se encontrem motivos aparentes e concretos. Talvez não existam claros e lógicos motivos para o “desenfreamento” dos instintos impulsivos. Talvez Freud explique. Mas uma coisa é certa, neste sentido, terapia resolve. Então o que leva um ser racional [será?] a temer o semelhante que passa, abraçado ao filho, indiferente aos olhares angustiados em suas suspeitas temerosas? O que temem os recalcados em seus desejos lascivos? Que horror pode causar um pai ao acarinhar um filho? Que dispositivos são disparados nos cérebros primitivos a ponto de se temer dois homens juntos? A quem eles comprometem? Ou melhor, quais masculinidades serão fragilizadas e comprometidas por seus atos? A dos executores das carícias públicas, ou a dos frágeis reprimidos que os observam?

Se as carícias trocadas publicamente entre pessoas de sexos opostos não causam tamanha comoção ou assombro, é por que existe uma cultura que nos molda e/ou nos forma enquanto sujeitos pensantes e desejantes. Logo, a de se considerar a existência de uma cultura que estabelece normas, e que esta se estabelece entre as gerações como regra. A heteronormatividade estabelece a procriação como principal finalidade do sexo. Logo o desejo e prazer passam a ser reprimidos. Os desvios de padrões normativos passam a ser combatidos como forma de se perpetuar a regra maior, construída secularmente. Neste contexto, a homossexualidade se revela enquanto ameaça a manutenção da heteronormatividade. O medo, ou pânico irracional, sentido pelos homofóbicos não tem em si os homossexuais como alvo, mas a ameaça que suas relações representam diante das regras e normas que estabelecem o funcionamento de determinadas sociedades.

Penso que talvez seja difícil de entender. Penso que talvez seja até penoso refletir sobre mudanças de comportamentos e condutas. Mas uma coisa é certa, para algumas pessoas, a irracionalidade é a base que guia suas vidas. E estas permaneceram vítimas de seus próprios medos, atacando e tentando aniquilar aquilo que os apavora e amedronta. Talvez Freud explique. Talvez uma boa terapia baste.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - A EDUCAÇÃO E A DITADURA MILITAR



EDUCAÇÃO BRASILEIRA: da palmatória a queda do AI 05.

No inicio deste ano me tornei professor. Convidado a lecionar em uma faculdade do Recife, iniciei minhas atividades enfrentando duas turmas super lotadas com alunos recém aprovados no vestibular. Neste sentido posso dizer que a bagagem teórica e prática adquirida durante os mais de vinte anos de atuação nas áreas da psicologia organizacional, clínica e  social, além da experiência em consultoria em gestão de pessoas, em muito contribuiu ao processo de adaptação. O exercício do magistério é sem dúvida o grande espaço para reflexões constantes, se fazendo necessário, inclusive, a reavaliação de nossos próprios conceitos e posicionamentos pessoais, éticos, políticos e ideológicos. Vivemos um momento de abertura as possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional nunca antes visto no país. E neste sentido a ampliação do número de faculdades e instituições afins em muito tem contribuído e favorecido para o aumento da acessibilidade ao curso superior – sonho de consumo da classe média, antes inatigível. Por outro lado, essa corrida às faculdades escancara um dos principais desafios aos atuais governantes, e principalmente aos corpos docentes – a garantia da qualidade na educação brasileira.

Sabe-se que essa defasagem não é reflexo de um momento atual, mas resultante de um processo de esclusão social que remonta o passado. No final da década de 1990, por exemplo, durante os vários processos seletivos que desenvolvi para uma grande multinacional da área de varejo, mais especificamente, no setor de logística, já observava a fragilidade dos muitos candidatos no que se refere à construção de idéias e do raciocínio lógico. O mercado exigia qualificação técnica, aliada a habilidades e competências relacionadas e desenvolvidas pela educação de base. Nas dinâmicas de grupo os mesmos se revelavam despreparados para a simples defesa de pontos de vistas pessoais, e/ou ideológicos, correlacionados a temas do cotidiano, dentro de um contexto mais político. A falta de atualização sobre temas gerais e específicos ao cargo pretendido, beirava a sandice. Assim, a leitura de um texto sobre um tema comum revela uma fluência verbal quase débil, o que exigia do avaliador um grande sacrifício no intuito de decifrar uma escrita comprometida, e através desta, buscar a mínima compreensão possível. Por extensão, a correção gramatical denotava um verdadeiro assassinato a língua portuguesa.

Certo dia li, que para alguns economistas e analistas políticos os anos noventa podem ser entendidos como a “década perdida”. Confesso que de imediato me senti chocado, e até, de certo modo, ofendido. Hoje, penso que na verdade estes anos nos serviram como período de ressaca. Estávamos tão desacostumados a falta de liberdade que não sabíamos mais tomar decisões por conta própria. Não tínhamos mais a autonomia. O desafio então, consistia em acompanhar um mercado competitivo e globalizado que, de certa forma, parecia se apresentar como um novo mundo. Era preciso correr atrás do prejuízo causado por vinte anos de alienação provocado pela ditadura e repensar a educação, a saúde, a economia, a política, e atualizar conhecimentos. Acima de tudo, seria necessário rever a história para buscar compreender quando, e por quais motivos, o brasileiro parou de pensar de forma lógica sobre política, ideologia e autonomia como estratégias de sucesso.

Remoendo o meu próprio passado, volto a 1973, quando o General Emílio Garrastazu Médici era o presidente da república e o AI 05 já estava em vigor. Com sete anos de idade eu entraria pela primeira vez em uma escola. Era na verdade uma igrejinha antiga com paredes amarelas e com portas de madeira, que se localizava em um lugar que eu não conhecia direito. As aulas funcionavam pela manhã e esta unidade de ensino funcionava como uma espécie de anexo da escola municipal [se não me engano]. Minha primeira professora se chamava Luciana. Era loura, estatura mediana e devia estar na faixa dos 25 anos de idade. Era uma jovem educadora comunicativa e simpática. Naquela época as professoras faziam o magistério, que era um curso secundarista, e estavam prontas para o exercício da docência. Essa professora, em especial, quase sempre vivia sorrindo para os pequenos alunos. Seguindo as tradições a gente tinha que se levantar sempre que a mesma, ou alguém importante chegava à sala de aula. Em pé diante das carteiras [bancas escolares] deveríamos cumprimentar a “autoridade”, quase sempre sisuda, com um sonoro bom dia. Permanecíamos levantados até que a criatura se compadecesse e nos liberasse para sentar. Em silêncio total e absoluto deveríamos escutar aos comunicados ou instruções [que muitas vezes não entendíamos] para só depois nos dedicar aos trabalhos, não sem antes levantar novamente para repetir a educada e singela reverência em sua saída. Assim, passei anos e mais anos nesse senta e levanta para saldar pessoas, que na verdade, na maioria das vezes, não conhecia ou sabia de sua importância ou função. É que nos anos da ditadura não era preciso entender muito a lógica das coisas, bastava apenas saber ouvir e cumprir ordens. Disso dependeria nossa classificação e reconhecimento social enquanto aluno aplicado e dedicado aos estudos. Logo, quem não cumpria com os ditames e regras do poder era rotulado como “criança sem grande futuro”.

Foi na escolinha que aprendi a rezar direito. Era uma sucessão de repetições na hora da entrada, intervalo para o lanche e também na saída. A “Ave-Maria” e o “Pai Nosso de cada dia” eram obrigatórios antes dos hinos nacional, do estado, da bandeira [alguém se lembra do: “Salve, ôh lindo pendão da esperança... Salve, oh símbolo augusto da paz...”] e outros que eram das forças armadas [que logicamente fiz questão de esquecer com o passar do tempo]. Pregava-se assim, a religiosidade [entendida exclusivamente como católica apostólica romana], a disciplina absoluta [obediência cega] e a nacionalidade [combate aos comunistas]. Mas ninguém explicava o que aqueles versos e estrofes queriam dizer. Isso na verdade não tinha muita importância. O que se deveria fazer era repetir, repetir e repetir coisas que não sabíamos o que significavam, ou sobre o que tratavam, mas que eram importantes e fundamentais para o desenvolvimento escolar. Até porque nossa disciplina e nossos comportamentos eram avaliados, e logicamente valorados através das notas. Um aluno mal comportado dificilmente encontraria uma nova escola, caso fosse expulso. Então, a obediência era aprendida na base do medo e da repressão.

As professoras [até porque naquela época os homens não ensinavam criancinhas] tinham poder e controle absoluto sobre seus alunos. Era a autoridade máxima, inclusive com poderes para nos colocar de castigo. E esses eram terríveis. Podíamos passar a aula inteira em pé, junto à parede, e de costas para a classe; ou ainda pior, passar horas de joelhos em um canto da sala. As pernas doíam e a gente chegava mesmo a exaustão. Além logicamente, de servir de gozação para os colegas de turma. Em casa estes castigos podiam ser mais elaborados e com requintes de violência que beiravam as torturas sofridas pelos perseguidos políticos. Assim, poderíamos ser colocados de joelhos sobre grãos de milhos. Um dia meu irmão Eliel resolveu exercitar seu sadismo e poder de irmão mais velho me colocando ajoelhado sobre as cascas de uma jaca [dá para imaginar aqueles espetinhos ferindo os joelhos de uma criança magra e de saúde frágil como eu?].

Ninguém saia da sala sem pedir licença e obter a autorização da professora, inclusive para ir ao banheiro ou beber água, mesmo que a sede ou a urina acumulada lhe causassem sofrimentos e/ou constrangimentos. As professoras funcionavam como uma espécie de segunda mãe. Por isso uma reclamação ou recomendação sua nos renderia uma surra ou pisa corretiva [como se chamava a violência praticada pelos próprios pais contra seus filhos em nome da educação]. Na verdade ninguém apanhava de professor, até porque os beliscões, puxões de orelhas, palmadas e batidas nas cabeças, não eram considerados como violência física, e muito menos, violência moral ou psicológica. Eram apenas medidas de correção que visavam nos transformar em homens de bem.

Com a professora Luciana nunca fiquei de castigo. Ela era boazinha demais e sempre optava pela conversa e orientação individual. Mas lembro de uma situação constrangedora que me marcou para sempre. É que ao final das aulas todos os alunos faziam fila e passavam por ela, que ficava a porta, para receber um beijo de despedida na cabeça. Como tinha eczemas espalhadas pelo corpo todo, inclusive pelo couro cabeludo, a boazinha e delicada educadora nunca me beijava ou me tocava. Claro que para um adulto tal fato seria racionalmente justificável e entendido, porém, para uma criança considerada inteligente e aplicada como eu aquele ato se configuraria como rejeição que jamais entenderia.

Nessa escola tinha uma moça, acho que se chamava Madalena, que sempre nos levava para casa. Engraçado que não sei onde ela morava e nem por quais motivos ficava com tal responsabilidade. Como diria o Chicó, de O Auto da Compadecida, “só sei que foi assim”. Lembro que sempre urinava nas calças. Acho que o medo e a repressão eram tantos que não pedia para ir ao banheiro. Todo mundo percebia o calção molhado e fazia comentários a respeito. Já notaram como os adultos adoram constranger as crianças? Pois é, no meu caso, sempre passava alguém e dizia: “como uma criança tão linda e inteligente pode fazer pipi nas calças”? Eu era obrigado a inventar desculpas esfarrapadas. Tentando me explicar, ou me redimir, contra-argumentava alegando que era culpa da chuva. O problema era que o sol sempre insistia em me desmenti. Outra coisa que não tolerava era o fato dos adultos terem a mania de mentir para agradar criancinhas. Digo isso porque com a cabeça e o corpo cobertos por feridas, o que impedia o beijo de Luciana, como alguém poderia me achar bonito? Eu mesmo me achava feio e estranho. E neste sentido, talvez a inteligência aguçada fosse apenas uma estratégia de compensação. Era feio, mas já sabia ler e soletrar as palavras.

Acho que um ano depois fomos transferidos [eu e minha irmã Ligia, que me acompanhou por muitos anos] para a Escola Municipal Reunida Timbi. Nesta, existia uma diretora que era a própria personificação da ditadura militar. Dona Marival, como deveria ser chamada, era uma mulher conservadora e vista como linha dura. Com ela não tinha meio termo e a educação era extremamente rigorosa. Todos os meus irmãos e irmãs passaram pelas mãos da mulher que se utilizava da palmatória para fazer imperar suas vontades. Ao menor sinal de desobediência o nome do condenado aluno poderia ser ouvido em toda a extensão da escola. Como um cão feroz e sempre de guarda, a mulher de saias pretas que lhe chegava aos joelhos era implacável. Sua voz estridentemente fina era capaz de estourar nossos tímpanos com o seu bordão preferido e repressor: meninoooooooo! Essa última silaba parecia ser espichada até lhe faltar fôlego.

A palmatória era uma peça de madeira com base arredondada na extremidade que Dona Marival sempre carregava nas mãos. Quando repreendido, o aluno deveria estender a mão para sucessivas palmadas. A pele ardia e logicamente ficava avermelhada. Era assim que se aprenderia os bons costumes e as bases do respeito. Criança não tinha vez, e muito menos razão em nada. Não éramos sujeitos de direitos e por isso a régua [também de madeira, e grande] lhe servia para nos chamar a atenção. Era com ela que nos batia na cabeça quando não sabíamos a resposta correta. Seu rigor era tão grande e assoberbado que um dia chegou a quebrar um lápis pressionando minha mão para que escrevesse direito.

Para se chegar à escola era preciso andar quase um quilômetro de distância [se não era isso tudo, era quase]. Além do mais, para as crianças as distâncias sempre se fazem maiores e mais sofridas. E nós íamos a pés. A farda tinha que estar impecavelmente limpa e completa, caso contrário a gente tinha que voltar para casa e perdia o dia de aula. Passávamos por ruas de barro batido, cheias de pedras e buracos. Subíamos por uma ladeira que dava num campo [terreno baldio onde os homens adultos promoviam campeonatos de futebol, e onde às vezes, parávamos para pegar cajus]. Adiante havia uma barraca velha, de madeira escura e telhas de barro, onde se vendia todo tipo de guloseimas que se transformavam em verdadeiras tentações, mas que nunca podíamos comprar por falta de dinheiro. Lá tinha pirulitos coloridos; zorro, que era de caramelo em barra, de embalagem preta que tinha uma figura do personagem com capa esvoaçante e espada em riste; barrinhas de arrozinhos [brancos, rosa e amarelo] que apesar de coloridos tinham o mesmo sabor; confeitos [como chamávamos as balas atuais] xaxá, azedinho e soft; línguas de sogra e broas com recheio, que na verdade mais pareciam uns toletes [daqueles que a gente bota pra nadar dentro dos vasos sanitários].

Depois da barraca, que tinha um cachorro chamado Vilão e que também já havia me mordido, vinha a ladeira do alemão, onde havia uma chácara de gente rica. Essa estrada tinha duas fachas paralelas feitas com placas de cimento. É que os “alemães” tinham carro, que era uma rural azul com teto e detalhes laterais brancos. Toda criança tinha medo da rural por que diziam que capturavam crianças para fazer maldades ou safadezas. Lógico que na época ninguém imaginaria falar em abuso sexual de crianças e adolescentes, mas já ensinavam que devíamos temer o papa-figo, bem como nunca falar ou aceitar presentes de estranhos. Só sei que essa ladeira era realmente muito alta, mas era o único caminho que podíamos usar porque a outra via era pela pista asfaltada. E esta era considerada perigosa para crianças porque passavam muitos carros. Depois era só atravessar a linha do trem e andar mais uns duzentos metros para chegar à escola. O pior era refazer o percurso de volta, quando já com fome as tais guloseimas pareciam ainda mais tentadoras, e Vilão se mostrava ainda mais feroz.

Quando tocava o sino da escola [sirene] os alunos corriam para formar as filas. Em linhas retas entoávamos os hinos e rezas decoradas. Depois Dona Marival chegava com a tabuada nas mãos. Essas eram umas cartilhas com todas as contas de somar, dividir, multiplicar e subtrair, que deveríamos saber decoradas na ponta da língua. Então ela começava: 02 X 02? E algum sortudo logo respondia: 04. E novamente a voz estridente imperava: 03 X 05? E outro gritava: igual a quinze. Eu rezava que quando chegasse minha vez a pergunta fosse de fácil resposta. Quando acontecia era um alívio, quando não, a régua comia no centro. Quem errava, além do carão [reprimenda] que recebia na frente de todos, era mandado para o final da fila para esperar por uma nova oportunidade. Desta forma, os alunos iam entrando para as salas de aula, um a um. Um estudante “burro” [como muitas vezes éramos chamados] poderia passar a manhã ou tarde toda naquela fila embaixo de sol quente. A senha para a entrada era a resposta correta, sem a qual o aluno poderia ir para o castigo ou voltar para casa. Nos dois casos a mãe sempre era convocada. E lá se iam novamente as pancadarias corretivas.

Lá eu concluir a primeira série. Um ano depois fui transferido para outra escola porque Dona Marival achava que eu era adiantado demais e deveria pular duas séries [acho que eu era uma espécie de aluno superdotado, pelo menos em comparação aos alunos de minha turma]. Como não queria me separar de minha irmã que na época era extremamente tímida e, por isso, sofria mais nas mãos do coronel de saias, não gostei nada da situação. Mas claro que ninguém respeitou minha decisão. Fui então levado por meu irmão Eliel [meu carrasco] a uma escola bem mais distante onde os garotos eram todos maiores que eu. Como não tinha alternativas apelei para o choro. No primeiro dia não adiantou nada, pois achavam que era normal e que com o tempo me acostumaria. Não queria e pronto. Já tinha decidido a garantir a integridade física e moral de minha irmã. No segundo dia repetir a estratégia, e nada novamente. No terceiro fugi da escola e voltei correndo para a sala de Dona Marival, onde concluímos o ano letivo.

O restante do “primário” [como se chamava o ensino fundamental I] nós fizemos na Escola de 1º Grau Ministro Jarbas Passarinho. Assim, passei quatro anos de minha vida numa escola que homenageava um déspota e arbitrário coronel. Era o ano de 1974, mas só muito tempo depois vim a saber que, na verdade, o então Jarbas Gonçalves Passarinho [que nasceu em 1920] era um impetuoso e arrogante senhor de 58 anos, que ingressou ainda jovem na carreira militar e chegou a patente de tenente-coronel durante a queda de João Goulart. Ele tinha entrado para a política graças ao Golpe Militar de 1964, pelo qual foi empossado governador do Pará. Depois se filiou à ARENA [Aliança Renovadora Nacional – partido da posição, criado em 1966] para se eleger como senador no ano em que nasci. Logo em seguida foi nomeado pelos militares para o cargo de ministro do trabalho e previdência social, no governo de Costa e Silva; e, ministro da educação, no governo Médici. Signatário [que significa aquele que assina ou subscreve um documento] do Ato Institucional nº 05, contribuiu diretamente para que, entre outras coisas, se fortalecesse o poder absoluto do regime militar, tornando-se co-responsável pelo fechamento do Congresso Nacional por quase um ano e pela consolidação da censura.

A escola era bem grande e tinha amplas salas de aulas. Essas eram quadradas, feitas em tijolos aparentes pintados de vermelho escuro e telhados no melhor estilo holandês, com quatro cumeeiras [não aprendi direito o nome da figura geométrica que as descreveria melhor porque na época a gente nem estuda isso]. As carteiras eram separadas das cadeiras, o que nos possibilitava melhores condições de locomoção. Elas eram de madeira, forradas com fórmica de cor verde água, e assim mais pareciam vitaminas de abacate ou merda de menino novo. Os quadros eram verde escuro e os professores usavam giz branco para escrever extensas laudas, que logicamente seriamos obrigados a copiar. Aliás, copiar foi o que mais aprendemos em todos aqueles anos.

Depois de escrever tínhamos que ler tudo em voz alta. Ninguém parava para escutar direito o que se estava dizendo por que o importante era integrar-se ao coro. Assim as palavras iam saindo de nossa boca como água de torneira, e no final a professora se dava por satisfeita. Aquilo significava que a turma estava progredindo. Significava que já éramos alfabetizados. E este era o grande objetivo. Naqueles tempos tinha até prova oral. Então eu repetia tudo que havia decorado e pronto. Sempre tirava dez. Mas tinham os alunos que, provavelmente devido à fome, não tinham boa memória e por isso tiravam notas menores. Tinha até quem tirasse zero, ou olho de boi, como a gente chamava. Era um zero bem grande e redondo, com um ponto bem ao centro, escrito com caneta vermelha. É que a cor vermelha significava tudo que era ruim e deveria ser combatido. O vermelho era coisa de comunista e de subversivo. As notas acima de seis, que eram consideradas boas, eram escritas em azul e isso nos enchia de orgulho. Por muito tempo essa discriminação perseguiu as canetas vermelhas, com as quais não se assinava documentos oficiais e/ou importantes, e muito menos os cheques [que vieram bem depois].

Sempre fui muito ruim em matemática [até por que não entendia de lógica], mas a minha professora, que se chamava Lúcia, devia ser muito preguiçosa ou desinteressada. Talvez a dentuça e desengonçada solteirona pensasse que por sermos crianças, seriamos tolos demais para não perceber que os exercícios aplicados eram sempre os mesmo. Desta forma era só voltar às páginas do caderno para encontrar as mesmas operações matemáticas da multiplicação, divisão, subtração e soma. Bastava apenas copiar tudo novamente e mais notas azuis encheriam nossas cadernetas. Neste sentido, estudar até que não era tarefa difícil pra ninguém. Tinha ainda uma professora baixinha e obesa que nos ensinava religião. Não pensem que falo de religiosidades. Eram apenas as velhas histórias de Eva e Adão, Maria e José, Cristo e Madalena, Sansão e Dalila, e tantos outros personagens históricos criados pela igreja católica. Ela parecia um sapo com aqueles óculos com fundos de garrafa. Suas roupas eram sempre tom sobre tom, meio verde oliva. Sentava atrás do birô, puxava seus livrinhos de histórias melodramáticas e piegas e lá íamos novamente aos longos textos que devíamos copiar. Para se ter uma idéia de como a coisa era absurda, a disciplina de religião tinha prova e até reprovava. Ou seja, tínhamos que aprender todas aquelas historinhas cheias de lacunas inexplicáveis que não nos serviriam muito para a prática profissional futura [pelo menos na minha experiência].

Nossos cadernos eram entregues pelo governo do Estado e vinham do ministério da educação. Eles eram pequenos, com metade das páginas brancas e outra metade amarelas. Nunca entendi o motivo, mas achava que era para facilitar a divisão das matérias. Nas capas havia uma bandeira do Brasil, e no verso, o hino da bandeira [e lá estava novamente o “... querido símbolo da terra, da amada terra, do Brasil”]. Era preciso encapá-los com papel madeira e mantê-los impecavelmente limpos e sem dobraduras. Como éramos pobres, usávamos o papel que embrulhava os pães. Era quase da mesma cor e por isso poderiam passar despercebidos a todos, menos a nós mesmos. De qualquer forma, aquelas embalagens diferenciadas pareciam revelar nossa condição socioeconômica. Estes mesmos papéis, algumas vezes, nos serviram inclusive como espaço para anotações escolares devido aos atrasos e/ou insuficiência dos cadernos, distribuídos também no mandato de Moura Cavalcanti [político filiado a ARENA, que se tornou governador biônico do estado de Pernambuco entre 1975 e 1979, indicado pelo então presidente da república General Ernesto Geisel].

Não sei na verdade como minha mãe conseguia tais cadernos, mas se bem me lembro a transação se dava através de uma tia nossa que trabalha em uma repartição pública. Ainda não existiam os kits-escolares e por isso nem todo mundo tinha acesso àquela doação “generosa”. Como estávamos na década de setenta, já imperava a “lei do jeitinho brasileiro”, criada pelo então jogador da seleção brasileira Gerson. Na época havia um comercial onde ele aparecia fumando. Depois de uma longa tragada, em certo momento, o factóide olhava para câmera e proferia a célebre frase: “Eu gosto de levar vantagem em tudo”. Desta forma, o representante do sucesso, devido a copa de 70, contribuiu diretamente para introjetar na cabeça dos brasileiros uma marca que se tornaria característica de uma sociedade corrupta e marcada pelas desigualdades sociais.

Nossas fardas eram batas brancas que chegavam até a cintura, com bolsos que continham a impressão da escola. Era um brasão impresso em cores preto e amarelo, com duas canas ao lado. Estes bolsos eram comprados na escola e sem eles nosso fardamento ficava incompleto, motivo pelo qual nos era negado o acesso. Os calções dos meninos e saias lisas das meninas eram azuis e batiam nos joelhos. Os sapatos eram congas azuis, que se não me falha a memória eram de lona resistente. Nossos fardamentos tinham que durar anos e anos, por isso precisavam ser preservados. Muitas vezes chegamos a usar os sapatos já apertados devido ao desenvolvimento físico natural e ao aumento da idade. Em decorrência do uso intensivo os mesmos rasgavam ou apresentavam buracos que possibilitam a liberdade desejada pelos dedos, contudo, eram utilizados quase até puir sob nossos pés. Outra diferença clássica que revelava a falta de luxos era a tal da lancheira. Toda criança tinha, menos a gente. Elas eram arredondadas ou quadradas, nas cores rosa e azul para marcar bem as diferenças de gênero. Tinham uma alça que se fechava com uma presilha ou botão de pressão. Em um dos lados superiores havia um orifício por onde se colocava a garrafa de suco. Nós também não tínhamos sucos, refrigerantes ou água para levar para a escola. Nossos lanches consistiam em bolachas Cream Cracker ou pão com manteiga e uma banana, que enrolávamos em papel de pão [o mesmo que cobria os cadernos] ou, em ocasiões especiais, em guardanapos de pano. Esse lanche podia também, de acordo com a situação financeira do momento, vir recheado com fatias de doces em barras, ovos fritos ou fritadas.

Quando começaram a servir merenda nas escolas à coisa melhorou um pouco. Tinha época que o cardápio até era variado. Assim a gente podia ter sopas de verduras, arroz doce [que sempre detestei] ou paçocas, que eram servidas em copos de alumínio. No intervalo fazíamos filas extensas e esperávamos a nossa vez para ser servidos pelas auxiliares de cozinha, ou copeiras. Teve um tempo que a situação ficou tão ruim que o arroz servido mais parecia dentes cariados. Esse arroz que vinha da China, e que era quebradinho, quando cozinhados no melhor estilo “todos unidos venceremos” [lema do governo], também nos lembravam tapurus – daqueles que dão em goiabas apodrecidas. As rodelas de tomates e demais legumes e verduras eram tão mal cortadas que pareciam pneus de carros de tão grandes. Confesso que apesar da fome e da ausência era difícil ingerir aquilo e se sentir feliz. Quando tinha macarronada, aí é que a coisa pegava. E pegava mesmo, porque difícil era soltar os fios de tão grudados que vinham. Tinha uns bem grossos com buraquinho no meio. Esse era legal porque dava até para brincar com eles. Quando faltava suco a gente recebia o caneco com água mesmo. Acho que a idéia de que coisa para pobre pode ser mal feita sempre imperou nas escolas, e mantém até os dias atuais.

Bom, quanto aos materiais didáticos, nossos lápis tinham que render até o fim. Parecia toquinhos que a gente precisava prender entre os dedos para poder escrever. As borrachas eram de acoplar e ficavam nas pontas dos lápis da Faber Castel. Com o tempo elas desgastavam e perdiam as cabeças. Roídas, ficavam parecendo um anel na extremidade dos grafites. Também não tínhamos lapiseiras que eram exigidas nas escolas. Por isso fazíamos as pontas de nossos lápis sempre em casa, usando giletes velhas do estojo de barbear do meu pai, ou mesmo peixeiras afiadas. Livros nunca chegamos a comprar. Quando muito, tínhamos a sorte de receber os usados por algum parente, velhos e já respondidos. Como eram proibidos nas salas de aula, copiávamos de algum colega e fazíamos os deveres em nossos cadernos. Época de prova era um inferno porque tinha assunto que só constava nos livros, e não existiam bibliotecas como hoje em dia. E assim, lá íamos importunar novamente os colegas e perder o recreio copiando o máximo que conseguíssemos.

As bolsas para colocar os materiais também eram cobradas constantemente e sempre tínhamos que explicar suas ausências. Para resolver a questão, certo dia, fomos na casa de uma tia. Ela tinha a solução para nossos problemas. Para minha irmã Lígia era doou uma bolsa de gente adulta, que era de nylon branco e acolchoado. As grossas costuras formavam colchõezinhos. Na superfície superior tinha um friso dourado, já descascado, que possuía uma presilha formada por duas bolinhas metálicas e que precisavam ser pressionadas uma sobre a outra, até travar. A correia era do mesmo material recheado, adornado por um fio dourado. Em suma, era um “cão chupando manga”, como se dizia. E ninguém de bom senso usaria uma desgraça daquelas para ir para escola. Eu fui presenteado com uma pasta surrada e cafona, estilo 007 ultrapassado. Era de couro, ou imitação barata do mesmo. Tinha umas alças para se carregar pelas mãos. Acho que a miserável batia nos meus pés de tão grande. Lembro que como parte do couro estava rasgada, ficava aparecendo à espuma [que a gente chamava de bucha] amarela que a revestia. Definitivamente, diante das ofertas preferimos continuar levando os materiais nas mãos e ouvir as constantes reclamações por parte dos insensíveis profissionais e educadores da escola. Era melhor do que passar por ridículo. Penso que apesar das boas intenções, as pessoas "caridosas" sempre pecam por achar que pobre não pode ter orgulho, e muito menos, noção de estética.

Para chegarmos até a nova escola era preciso pegar ônibus. Como éramos pequenos e raquíticos não havia problemas em passar por baixo das borboletas [como se chamava as catracas, onde se pagava as passagens]. Sempre aprendemos que criança tinha que ceder o assento aos mais velhos. E isso era triste porque criança também cansa, principalmente quando tem que andar muito até as paradas, e lá esperar até que um motorista consciente lhe abra a porta e lhe conceda a entrada. Ao passo que íamos crescendo ficava cada vez mais difícil andar sem pagar. Começaram então as criticas e reclamações por parte dos cobradores. Acho que eles não deviam ter filhos, ou se tivessem, provavelmente não estudavam. Tinha uns que implicavam e não nos deixavam passar. A gente tinha que descer dos ônibus feito animais escorraçados. Quando só tinha criança na parada nem adiantava dar a mão porque ônibus nenhum parava. Para resolver o problema, minha mãe conversou com o dono da padaria onde comprávamos pão todo dia. A gente então saia mais cedo de casa, andava pelo menos meio quilometro e pegava bigu [carona] na caminhonete. Era uma Chevrolet verde escuro, eu acho. Eu, minha irmã, Nete e Tinho [visinhos, colegas de turma] andavam no bagageiro junto com os vários cestos de pães que eles entregavam nas barracas pelo caminho. Senhor Artur era um velho português gente boa. Era “buchudo” [barriga grande] e tinha um bigode grosso e grisalho. Depois de um tempo fomos proibidos porque tinha fiscalização nas estradas. O ano em que fizemos a quinta séria do primário andamos a pés. Eram quase dois quilômetros de distância, que aos onze anos, eu tinha que fazer sozinho todos os dias, ida e volta. Minha irmã tinha passado para uma turma diferente e eu agora tinha que me virar por conta própria.

Como sempre fui uma criança diferente, seria natural que me tornasse alvo de perseguições por parte de outros alunos. Tais brincadeiras e perseguições hoje seriam entendidas como bulling. Mas naqueles tempos a violência nas escolas era desconsiderada. Imperava a lei do mais forte. Conviver com as diferenças era um desafio constante e exigia estratégias de sobrevivência. Dessa forma, me tornei “aluno colaborador”. Era na verdade, uma espécie de auxiliar, ou fiscal mirim das boas condutas. O importante é que como aluno colaborador eu ficava imune porque tinha privilégios e poderes. Éramos alunos exemplares e por isso podíamos “dedurar” os mal educados, que seriam expulsos, suspensos ou colocados de castigos. A gente recebia um fardamento diferenciado. Era uma camisa de malha branca, com as letras A e C entrelaçadas, na cor verde cítrico. Isso nos conferia status e respeito. Meus principais inimigos se chamavam Denílson e Lima. Eles eram os verdadeiros representantes do capeta. Com meu escudo de proteção me tornei caçador e fui à forra. Através de algumas estratégias bem elaboradas não demoraria muito a expulsá-los da escola. Assim, passei a comungar da filosofia de que “todo oprimido se torna um opressor quando detém o poder”, e transformei velhos adversários em aliados, ou em inimigos vencidos.

Concluir o ensino fundamental I no final de 1977, ano em que estreava os grandes sucessos cinematográficos “Guerra nas Estrelas” e “Os Embalos de Sábado a Noite”, que marcariam uma geração inteira. A presidência da república continuava ocupada pelas forças armadas através do General Ernesto Geisel, que permaneceu no poder até 1979, período em que sua foto, em moldura dourada, ornava as salas de diretorias e coordenações nas escolas públicas. Neste sentido, lembro que uma vez, o então temido coronel visitou nossa escola. Foi um dia diferente e angustiante. Tudo deveria está muito limpo e organizado para a chegada da comitiva oficial. Até pintamos a escola e alguns alunos exemplares receberam fardamento completo. Fomos obrigados a formar filas na área de convivência e lá permanecemos pela tarde inteira. Os arredores e muros da escola estavam repletos de pessoas que queriam ver de perto o poder blindado dos milicos. Um carro grande e preto estacionou dentro do colégio. Soldados impecavelmente fardados corriam apressados pelos corredores acompanhando uns poucos homens, que nem conseguíamos ver, mas que eram alvo de todas as atenções. Na verdade nem sei se o presidente estava realmente ali. Mas nunca tinha visto tanta pompa e tanto bajulador lamber os sapatos de um só homem. Aquela cena me ficou marcada como símbolo do perigo que representa o poder centralizado. Poucas horas depois, do mesmo jeito que chegou a comitiva partiu, enquanto os pobres e mortais alunos permaneceram nas filas à espera do nada. Cansados, cantamos o hino nacional e todos os demais que tínhamos ensaiado e depois fomos liberados. Um ano depois seria liberado daquela escola para sempre.

O ano seguinte marcaria o meu ingresso em um novo mundo, maior e repleto de novidades proporcionadas pelas descobertas de um pré-adolescente. No final de 1978, fui transferido para a Escola Monsenhor Francisco Sales, localizado na Rua Oliveira Lima, centro do Recife; Marco Antonio de Oliveira Maciel seria nomeado governador biônico do Estado; o Fantástico anunciaria o nascimento de Louise Browm, em Londres, o primeiro bebê de proveta do mundo; João Paulo II se tornaria o primeiro papa não italiano em 445 anos; seria lançado no Japão o primeiro computador pessoal; seria descoberto um satélite no planeta Plutão; e, por fim, seria abolido o AI 05, decretado pelo então presidente, em 31 de dezembro.

É isso. No período da palmatória a destituição da censura, a educação tornou-se também empobrecida e deficiente. Hoje sentimos nas salas de aulas e nos campos profissionais os prejuízos causados por décadas de arbitrariedades e desrespeito aos direitos e a cidadania. Mas, como diria o matuto, “meu cumpadre, isso são outros tempos”, o que logicamente, irá requer outros capítulos.

sábado, 2 de julho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - AS MAZELAS DA POBREZA E A DITADURA MILITAR



A MINHA HISTÓRIA DO BRASIL

 
Exatamente as 13:00 do dia 06 de julho de 1966, eu daria meu primeiro grito. Não de gol, mas de vida. Acabara de nascer em uma maternidade pública localizada no bairro de Casa Amarela, em Recife. Cinco dias depois a Inglaterra entraria em campo contra o Uruguai. Placar zero a zero. E apesar da fragilidade da seleção [segundo especialistas], os inventores do futebol ganharam a copa do mundo. Naquele ano o Rio Capibaribe subiu além da conta invadindo terras, submergindo quarteirões inteiros e comprometendo drasticamente minha terra natal. No bairro de Beberibe, onde minha família morava, a água deu no meio da canela. Por causa disso fui levando a um lugar longínquo e desconhecido. Mas para entender melhor essa história é preciso retornar ao passado. Mais precisamente a sessenta e nove anos atrás, quando em Fortaleza, no Ceará, nascia o homem que orgulharia o Brasil durante a campanha italiana, na II Guerra Mundial; se tornaria comandante do IV Exercito, em Recife; e posteriormente entraria para história como um dos principais articuladores do golpe militar de 1964: Humberto de Alencar Castelo Branco. Com a queda de João Goulart, o então chefe do Estado-Maior do Exercito tornou-se presidente da república dando início ao período de ditadura militar que perdurou por duas décadas. Dessa forma, graças ao Castelo Branco e a uma corja de fardados torturadores e corruptos só conheci, e passei a entender o conceito e a importância da democracia aos 18 anos de idade.

Mas dois anos depois do grande golpe eu era apenas uma criança que ensaiava os primeiros passos. O oitavo filho de uma mulher de trinta anos, que acabara de se mudar com a família para os cafundós de um lugar chamado Camaragibe [um dos três distritos ligados administrativamente ao município de São Lourenço da Mata]. O lugar havia sido elevado à condição de município em 1963, porém com a ascensão dos milicos foi promulgado o “acórdão do Tribunal de Justiça” e através do mandato de segurança nº 59.906, em 06 de julho de 1964 o lugarejo foi novamente reanexado a cidade de São Lourenço, retornando a condição de distrito. Era o inicio do retrocesso que levaria o Brasil ao patamar de país em desenvolvimento. A história da ditadura parece mesmo ligada a minha própria história, tanto que exatamente um ano depois do meu nascimento, morreria em um acidente aéreo o homem que comandou a perseguição de milhões de estudantes, invadiu universidades e expulsou do país grandes intelectuais, politicos e artistas que se levantaram contra o autoritarismo fardado [e forjado]. Nesta época não entendia de política, não participava de movimentos e não saia às ruas gritando por liberdade. Minhas dores de cabeça eram outras. Mas tinham praticamente as mesmas raízes – a tirania de um regime político que contribuiu de forma direta para a consolidação das desigualdades sociais e para o empobrecimento financeiro, intelectual e, político e social de milhões de brasileiros.

As dores que sentia eram causadas por uma ferida que se estendia por quase todo couro cabeludo. Uma espécie de caspa enorme da qual nunca soube o motivo e muito menos a origem, mas logicamente se relacionava as condições de pobreza e falta de assistência médica pública de qualidade. Só lembro o quanto sofri, pois que durante os banhos minha mãe tinha que remover toda a casca que se formava para nova reposição de remédios. Ela então passava um pente bem fino até remover toda a crosta e eu chorava enquanto o sangue me corria pelo rosto. Assim, parte de minha infância foi marcada pelas mazelas causadas pela estratificação social. Como morávamos no meio dos matos era muito natural que houvesse as condições necessárias para a proliferação de toda espécie de insetos que provocam doenças, deficiências e mortes.

Aquele lugar era infestado de muriçocas. Mas aquelas não eram muriçocas comuns. Com certeza que não. À noite pareciam tomar forma e se transformavam em jatos de guerra, iguais ao que cansei de ver cruzar os céus do Recife durante os desfiles militares. Em Camaragibe não passavam aviões, em compensação as muriçocas passavam zumbindo em nossos ouvidos. Faziam manobras mirabolantes no ar, miravam o alvo e partiam para o ataque. As picadas eram terríveis e sucessivas. As investidas aéreas duravam a noite inteira e durante o dia contávamos os prejuízos gerados pelos bombardeios. O corpo amanhecia marcado, como que furado por balas. Como a pele coçava, nossas unhas se transformavam em armas afiadas e através do atrito com o couro ressecado provocavam feridas. Pior que essas, eram os maruins que se faziam invisíveis para nos atacar pernas e braços. Acho que em decorrência da alergia fiquei com o corpo repleto de irritações, que logicamente se transformavam em pequenas feridas inflamadas que podem ser classificadas como eczemas. Naqueles anos remédio de pobre era sabão amarelo, que era vendido em barra nas barracas e armarinhos locais.

Aquele sabão, que mais parecia um pedaço de sebo, servia para tudo, inclusive para mordidas de cachorros, das quais me tornei recordista. Acho que onde morávamos os vira-latas já me conheciam, e de certa forma, existia mesmo um complô contra mim. Assim, volta e meio era atacado por um deles. Talvez porque fosse magro demais e os animais me vissem apenas como deliciosos ossos. Não sei! Mas praticamente a cada semana era uma nova mordida. Nos pés, nas pernas, bochecha e até na barriga. E a cada novo ataque, novas sessões de terapia popular. O ritual era sempre o mesmo. Tomava banho e lavava o local com sabão amarelo [para não infeccionar, dizia minha mãe]. Depois tinha que esfregar dois gomos de alho descascados sobre o ferimento. Até aí tudo bem porque dava para aguentar o ardor. O pior era ter que mastigar bem os dentes de alho [que junto com a saliva formava uma massa pastosa] para depois engolir. Não sei por que, mas os adultos achavam que alho cru e sabão amarelo era a combinação perfeita para qualquer doença de criança.

Como sempre gripava, lá vinha o chá de alho, que precisava ser tomado quente. Tinha também um tal de mingau de cachorro [como era chamado] que fazia qualquer um colocar os bofes prá fora. Era feito com farinha e água fervida misturada com alho, pimenta do reino e pedacinhos de coentro. O negócio parecia uma gosma transparente. Feito uma geléia ou grude, daqueles que agente usava para substituir as colas industriais que custavam os olhos da cara. Eu olhava para aquela coisa e só conseguia ver as bolinhas pretas que se revezavam com as pintinhas verdes que serviam para enfeitar aquela goma pegajosa de sabor horrível. Quando começava a chorar, minha mãe logo gritava: “engole o choro e toma tudo de uma vez”. Prendia a respiração, virava o caneco [como se chamava os copos] e esperava que a gosma descesse de goela a baixo.

Tinha um cachorro chamado “Xareu”, que se não me engano pertencia a um tio, irmão de meu pai. Eles moravam a poucas quadras de nossa casa e por isso o rabugento vivia por lá. Ele era meio amarelado e sujo, e tinha os pelos ouriçados. Devia feder prá burro, e por isso, logicamente, tinha muita pena do pobre coitado. Com as melhores intenções que uma criança inocente como eu poderia ter, certo dia inventei de alimentá-lo com os restos de meu almoço. O bicho comeu feito doido. Rosnando como se avisando para ninguém se aproximar. Sem entender direito a linguagem “cachorrícea” resolvi organizar um pouco as coisas já que ele espalhava tudo e se lambuzava feito um camobembe. De forma carinhosa tentei fazer amizade, mais no menor movimento, o bichano saltou pra cima de mim e me mordeu o rosto. Resultado? Dois dias de cama foi o meu castigo. E ainda por cima tive que comer novamente os dois dentes de alho e engolir a gororoba gelatinosa [será que era por isso que se chamava mingau de cachorro?].

Confesso que me senti ofendido e injustiçado com a situação. Afinal de contas tinha aprendido que para se tornar uma pessoa melhor era preciso repartir o pão nosso de cada dia. E eu tinha feito uma boa ação já que reservara parte de minha comida para o desgraçado moribundo. Achei que era demais para mim e por isso resolvi me vingar de todos os cachorros da redondeza. Lembro que eu e meus irmãos aprendemos que amassando pimenta vermelha e esfregando no rabo dos vira-latas eles ficavam enlouquecidos. Com tal estratégia a gente ia à forra. Quando aparecia um desconhecido e mal encarado, pegávamos uma varinha e tascávamos pimenta no rabo dele. Os cachorros corriam como loucos, rodopiavam e passavam horas seguidas esfregando o “furico” no chão. Nessa mesma linha de maldades inocentes aprendemos que cruzando os dois dedos indicadores em forma de elo, se provocava prisão de ventre nos animais. Assim, sempre que algum cachorro começava a defecar a gente prendia os dedos e lá ficava o bicho na maior agonia. É claro que hoje sei que nada daquilo era verdade, mais por coincidência ou não, toda vez que fazíamos, a maldade dava certo. Acho que toda criança é sempre meio perversa. Mas na verdade nossas maldades em nada se comparavam com as dos militares que aplicavam choques elétricos e afogavam os “comunistas” durante seções de torturas que aconteciam nos porões dos presídios espalhados pelo país.

Na nossa lista de inimigos quadrúpedes, as vacas e os bois ganhavam em disparada. Um vizinho nosso tinha um sitio, e nele havia uma vaca que a gente chamava de Bonina. Alguém já sentiu a aspereza da língua de uma vaca? Pois é, eu já. É que um dia, passando perto dela resolvi fazer contato. Comecei a lhe fazer carinho e achei até que ela estava gostando. Seguro e confiante de minha boa intenção, e logicamente me assegurando que não tinha chifres, me aproximei um pouco mais. Até já me sentia amigo da vaca quando de repente uma coisa grossa lambeu todo meu rosto. Com os olhos ainda meio embaçados com tanta saliva viscosa, tive tempo de correr antes que Bonina repetisse seu gesto de carinho. Acho que também não entendia nada da linguagem bovina. Mas contava-se uma história que não se devia passar por perto de um touro com roupa vermelha. Talvez isso tenha inspiração nas touradas espanholas. Não sei. Mas levávamos a coisa a sério e, por via das dúvidas preferíamos não arriscar. Neste sítio também havia vários pés de azeitonas roxas. Era divertido subir nas árvores e ficar enchendo nossas sacolas plásticas com toneladas delas. Acho que a gente gostava mesmo era do perigo, pois no campo existia uma quantidade enorme de bois com grandes chifres pontiagudos e vacas envenenadas que pastavam soltos. Éramos eu, minha irmã Lígia e dois irmãos Eliel [o mais velho] e George [o mais novo]. Nós três já sabíamos subir nas árvores com grande destreza, enquanto o menor [que sempre chamamos de “nego”] ficava embaixo esperando nossas remessas. Certo dia um touro chifrudo e malhado partiu em disparada ao seu encontro. Ele atravessou uma cerca de arame farpado que limitava o terreno. Só que para sua surpresa havia uma grande cobra preta no local e por isso teve que retornar apressado. Foi uma aventura e tanto. Como não havia alternativas, descemos das árvores para salvá-lo e saímos correndo, os quatro, pelo meio dos matos. Só paramos quando chegamos a nossa casa, sãos e salvos. Depois do susto e recobrados do cansaço nos demos conta que as azeitonas tinham se perdido pelo caminho.

Outros bichos que se tornavam nossos reféns eram os zigue-zagues [que a gente chamava de cavalo do cão]. Se pegava os voadores pelas asas e se amarava uma linha em seus rabos. Depois a gente prendia a outra ponta da linha em um galho qualquer e deixava os bichinhos presos por horas seguidas. Os gafanhotos a gente prendia pela cabeça, com linhas ou cordões. A gente brincava fazendo de conta que eram cavalos voadores. Já as picadas de abelhas e marimbondos nos eram constantes. Como vivíamos feito macacos, sempre pendurados em árvores, era comum se deparar com enormes colméias. Uma vez meu irmão Eliel, que hoje mora em São Paulo, foi atacado por abelhas africanas e desceu de uma árvore tão depressa que nem percebeu a quantidade de pele da barriga que deixou no tronco. Para esses casos o sabão amarelo também era remédio. Mas como os arranhões e escoriações eram grandes foi preciso colocar mertiolate. Esse sim, era o temor das crianças por que ardia demais. E para aliviar a gente ficava soprando o ferimento até aliviar a dor.

Antigamente o mertiolate era vendido em um vidro transparente, o que deixava evidente seu tom escarlate que lembrava as chamas do fogo em brasa. Vinha acompanhado de uma paletinha de plástico com a qual se aplicava a dosagem. A gente esfregava a paleta sobre o ferimento e novamente a colocava de volta no vidro. Ou seja, contaminava-se a tal paleta e depois todo o remédio. Ninguém nunca nos disse que seria preciso lavá-la após o uso. Afinal de contas, nos anos de chumbo as classes pobres nunca foram prioridade dos governos. Os militares controlavam tudo, inclusive nossa educação e poder de decisão. Tanto que o médico e industrial Nilo de Souza Coelho, descendente de Petrolina, em 1966 se tornou o primeiro governador de Pernambuco eleito via indireta após o Golpe Militar. Hoje em dia as coisas são bem diferentes. Conseguimos até eleger uma mulher para presidente da república. E o antigo remédio agora é vendido em forma de aerosol. Neste sentido, o mercúrio era bem melhor porque não ardia, porém melava demais. Assim a gente vivia cheio de manchas arroxeadas pelo corpo. Os dois eram ótimos tanto para feridas quanto para as topadas pelas quais perdíamos sucessivamente as unhas dos pés. Até hoje tenho duas delas prejudicadas pela força com que foram arrancadas. Nunca tinha lido Carlos Drumont de Andrade, e por isso não sabia que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Acho mesmo que nos meus sempre existiram várias, e enormes. Assim, quando via, a cabeça do dedo já tinha voado. Mas, dos males, o menor. E invertendo um pouco o ditado popular diria que nesses casos o importante é que “vão-se as unhas e ficam-se os dedos”.

Para outros males tinha a violeta que servia para curar boqueira. Boqueira na verdade é uma espécie de ferida que dava nos cantos da boca, causando rachaduras que doíam principalmente quando queríamos rir. Naquela época quem tinha boqueira era chamado de “boca rasgada”. E a gente vivia com os cantos da boca pintados com violeta, e logicamente isso servia de gozação por parte de todos. Ela também servia para as frieiras, que são afecções cutâneas que se desenvolvem nos pés e principalmente nos entrededos. Como era muito comum andar descalços, até porque não tínhamos sapatos, vira e mexe se pisava em fezes de animais. Assim, perecíamos indios caras-pálidas, todo pintado dos pés à cabeça.

Na extensa relação de mazelas, lembro de uma vez que tive cobreiro. Engraçado que descobri no dicionário [Aurélio, claro] que o nome correto é “cobrelo”, e que assim era chamado por que se imaginava que tal dermatose era provocada pelo contato da roupa sobre a qual haveria passado alguma cobra. Logo, cobreiro [dá para entender ou precisa desenhar?]. Porém, não é nada disso. Na verdade a tal doença cientificamente é denominada como Herpes-Zoster, doença aguda, produzida por vírus, caracterizada por inflamação de um ou mais gânglios, de raízes nervosas dorsais ou de gânglios de nervos cranianos. Apresenta-se como erupção vesicular dolorosa, na pele ou nas membranas mucosas, que se distribui ao longo do trajeto de nervos sensitivos periféricos originados nos gânglios afetados. Assim, umas espécies de bolhas surgiam na minha barriga formando uma faixa na horizontal. O negócio ardia e ia se espalhando pelo corpo, sempre na mesma direção. Diziam que se as duas partes se encontrassem, formando uma espécie de cinturão, a pessoa morreria. E eu escapei graças a uma resadeira que morava no outro lado da Fábrica de Postes, que ficava ao lado direito da rua que levava a minha casa.

Um dia minha mãe me levou até ela. A velha senhora morava numa casinha de taipa que ficava distante. Depois de analisar o problema mandou que sentasse enquanto se preparava para o ritual. Fiquei assustado sem saber o que iria acontecer. Ela voltou com duas folhas de mamão [virgem, segundo ela] e começou a rezar umas coisas estranhas enquanto me dava uma pisa de mato. Não sei se a senhora era índia, africana ou cigana. Sei apenas que era uma velha estranha que mais parecia uma bruxa dos contos de fadas. Depois de todo o vai e vem, começou a colocar o leite das folhas de mamão sobre as bolhas. Fez uma reza final e nos liberou. Não lembro com quanto tempo fiquei bom, mas sei que a reza da benzedeira funcionou mesmo. Penso então, no quanto a pobreza pode comprometer o desenvolvimento saudável da pessoa humana. Hoje entendo que enquanto categoria do herpes, o cobreiro tende a desaparecer depois de algum tempo. E por ter origem nervosa poderá surgir em situações de demasiado estresse ou prolongada exposição ao sol. Por ser uma doença provocada por vírus não tem cura, e por ser contagiosa pode ser transmitida a outras pessoas. Rebuscando as memórias lembro que meu irmão mais velho, Eduardo, também teve a mesma inflamação. Logo, foi ele o responsável pelo meu cinturão de bolhinhas dolorosas.

Na esteira das enfermidades causadas pela falta de condições dignas de higiene, vinham as brotoejas, que são erupções cutâneas formadas por pequenas vesículas [bexigas ou cavidades] acompanhadas de prurido [que é a sensação desagradável que causa coceira]. Para essas se usava pasta d’água. E lá íamos nós com nossas colorações corporais novamente. Dela não me recordo direito, mas da “minâncura” eu lembro. Servia para várias inflamações da pele e também para catinga de sovaco. Era uma pomada gelatinosa e oleosa que vinha em latinha redonda de cor alaranjada. Na tampa tinha a imagem de uma ancora azul com detalhes brancos. Todo mundo metia o dedo na pomada, passava nas axilas ou na pele, e logicamente assim se transmitia bactérias e doenças. Outra pomada horrorosa e a tal da Iodex. Era preta e pegajosa e quando esfregada na pele fedia demais. Servia para luxações e pancadas. Neste mesmo campo tinha o emplastro sabiá [acho que é assim, não sei]. Era um curativo grande, acho que em formato de tecido ou algo parecido, com furinhos para ventilação e respiração da pele. Coloca-se sobre a contusão e pronto. Era só esperar a dor passar. Eu adorava usar no pesccoço porque mesmo vestido todo mundo podia perceber. Para torcicolo havia benguê em pomada. Essa era geladinha e provocava frescor na pele. a embalagem era verde e branca e tinha a umagem de uma perna de jogador de futebol ao lado do nome. Já o Vick Vapurub me dava verdadeiro nojo. a gente colocava aquilo no nariz e ficava com os olhos cheios d´água. Cibalena era bom pra dor de cabeça e enxaqueca. Acho que a mesma coisa que a neosadina dos dias atuais. Mas o melhor de todos era "Alkacecer" - o alivio imediato, como anunciava o "reclame" [antiga propaganda de televisão]. Lembro até hoje. alguém slatava um dentro de um copo com água e ele fervilhava fazendo pequenas bolhinhas. Lembro que inventava até doença para tomar um daqueles, mas acho que era caro e nunca conseguia ser bem sucedido em meus intentos. Minha segunda irmã, Monica, parece que sofria do mesmo problema e inventava doenças só tomar o remédio que mais parecia refrigerante.

Para fraqueza tinha o óleo de fígado de bacalhau. Esse era terrível e de gosto repugnante. Toda casa que se preze tinha um vidro do remédio. Ele era grande, acho que devia ter pelo menos meio litro, o danado. O vidro era marrom e tinha a imagem de um velho pescador segurando pelas mãos um enorme bacalhau. O interessante é que a imagem era em alto relevo no próprio vidro, que tinha uma tampinha de enroscar. A dosagem era sucessivas colheres de sopa cheias. Aquilo descia pela garganta provocando arrepios e provocava certo desanimo que só passava quando esquecíamos a experiência traumática. Para caroços de pus ou furúnculos, esquentava-se óleo de comida numa colher e passava-se em uma folha de pimenta para cobrir o ferimento. Bicho-do-pé é um inseto [sinfonáptero, hectopsilídeo, ou Tunga Penetrans] cuja fêmea, para fecundar penetra na pele do porco ou do homem e põe seus ovos. E a gente esquentava uma agulha ou alfinete no fogo para esterilizar e depois cutucava os dedos até arrancar o bicho lá de dentro.

Para papeira o melhor era descanso, cama e uma boa frauda que cobria nossas bochechas e se amarrava na cabeça. A gente ficava parecendo um coelho orelhudo ou então o “Topogijo”, que era um desenho animado que tinha como personagem principal um rato bochechudo. Engraçado é descobrir que papeira é uma doença viral contagiosa que provoca a inflamação das glândulas salivares dos bois e dos carneiros, e que é transmitida ao homem e atinge principalmente as crianças. Acho que lá em casa todo mundo teve papeira. Eu, como não poderia deixar de ser, tive nas duas bochechas de uma vez só. É um inferno. Além de doer muito nos impedia de brincar. A única vantagem é que nesses dias de repouso não podíamos fazer esforços, para a papeira não descer para os ovos [como se chamava os testículos]. Assim alguém sempre se incumbia de nossas tarefas. Três-sol, que a gente chamava de “teisó” [acho que era assim que se escreveria] a gente sempre tinha também, e muito. Então esfregávamos o dedo indicador na palma da outra mão até ele esquentar e depois colocávamos sobre o caroço. Diziam que isso resolvia, mas na verdade acho mesmo que só contribuía para infeccionar mais ainda. Também ensinaram que devíamos cantar algo como: “teisó, teisó, vai pro cu da tua vó”. A sorte era que as pragas rogadas nunca pegavam, senão coitadas das pobres e nobres senhoras que nada tinha a ver com a história.

Nas berrugas, que o dicionário carinhosamente classifica como verrugas, que significam pequenas protuberâncias rugosas, a gente colocava leite de “avelóe”, que também era conhecido como “dedo do diabo”. Elas sempre apareciam principalmente nos cotovelos e joelhos. Também se podia utilizar um fio de cabelo, ou fio de rabo de cavalo, para amarrá-las e aos poucos arrancá-las. Depois se colocava mertiolate ou mercúrio para sarar. Cibasol era um comprimido que a gente devia amassar e colocar o pó sobre as feridas. Servia também para as inflamações provocadas pela topadas. Quando esse pozinho se misturava com a areia do quintal fazia uma crosta que a gente ficava alisando para limpar. Este ato de alisar feridas de certa forma provocava até uma sensação agradável. Neste sentido, lembro de uma que se localizava um pouco acima do joelho esquerdo. Foi provocada pela cama-de-mola [antiga cama de campana] que ao ser fechada prendeu a pela e provocou um corte. Essa ferida, que a gente chamava de pereba, me acompanhou por um bom temo. Eu lembro até que ela fez uma casca grossinha. Com o tempo as moscas fizeram dois buraquinhos e eu, de modo geral, gostava de vê-las colocando a língua pelos orifícios até atingir a inflamação. Acho que ali comecei a me interessar por pesquisas [quem sabe?]. Fato é que até hoje tenho a cicatriz da minha pereba de estimação. Isso prova que a pobreza deixa realmente marcas que serão eternas.

O hospital mais perto ficava no cordeiro, o Barão de Lucena. Na época Augusto Lucena era o prefeito de Recife, e logicamente que quem destruía patrimônios históricos e culturais, a revelia dos movimentos populares, não iria se preocupar com a saúde da população [ele entrou para a história como mandante e (in)responsável pela demolição da centenária Igreja dos Martírios, para ampliar a Av. Dantas Barreto]. O atendimento já era comprometido desde aquela época, mas era o único espaço com que se podia contar para tratar das coqueluches, varíolas, bronquites, meningites e tantas outras doenças que me acometeram. Especificamente a varíola, mais conhecida como bexiga, se espalhou pelo corpo todo. Na época tinha uma tal de vacinação coletiva que era um verdadeiro pandemônio para as crianças. Eram filas quilométricas sob o sol quente. Quando chegava a fatídica hora era de pedir clemência aos céus. A injeção era enorme e tinha uma agulha grossa que parecia rasgar nossa carne quando entrava. Engraçado é que era tudo de metal. Só muito tempo depois é que inventaram as pistolas e as seringas descatáveis. Nessa época as agulhas eram esquentas no fogo da vela. E assim as pessoas iam sendo carimbadas feito bichos. Tanto é verdade que muita gente tem marcado na pele a cicatriz deixada pelas injeções. Quase todos os meus irmãos tem. De qualquer forma é o registro de um tempo, não é mesmo? O furador de dedos também era outro profissional detestado por nós. Quando os boatos corriam espalhando sua chegada era um chororô coletivo. Ele tinha um aparelhozinho pontiagudo com que furava nossos dedos e colhia o sangue em uma lamina de vidro [acho que era]. Na verdade nunca soube para que servisse. Mas também a gente não tinha direito a opinar em nada e muito menos pedir explicações. Era entregar o dedo e curtir a dor depois.

Quando quebrei o braço pela primeira vez também fui levado ao mesmo hospital. Na verdade eu até achava bonitinho as pessoas com braços engessados. Tinha suas vantagens. Agente era chaleirado [mimado] e também tinha menos atribuições. Muitas vezes o braço quebrado servia como desculpas para a preguiça e a má vontade. Qualquer coisa ou solicitação mais pesarosa logo se podia argumenta: "estou doente". E assim podíamos curtir sossegados nossa quarentena. Imobilizar o braço ou perna era uma verdadeira obra de arte. Colocavam-se gazes por toda parte, enrolava-se com algodão e só depois se aplicava as ataduras molhadas com gesso. O médico ou enfermeiro alisava o gesso para retirar os excessos e fazer o acabamento e pronto. Era só fazer uma tipóia, colocar o braço e ir pra casa. Outra vantagem é que nesses passeios podíamos ter a sorte de ganhar pipocas e até picolés. Acho que os adultos pensavam que assim estariam compensando, de alguma forma, nosso sofrimento. O ruim é que não se podia comer caranguejos ou carne de porco porque era “remoso”, como se dizia. Na verdade remoso era tudo que o povo achava que poderia comprometer os tratamentos de doenças. Assim, tomar suco de abacaxi com leite também entrava nesta relação.

O mais importante de tudo é perceber que a maiorias destas enfermidades eram tratadas em casa, sem orientação e acompanhamento medico especializado. Na ausência das gestões públicas o povo recorria aos costumes e tradições para resolver seus problemas e legitimar a vida. Contava-se apenas com a sorte e com as redes sociais estabelecidas entre vizinhos e parentes próximos que acudiam nas situações mais graves. Eram dias difíceis e pesados. Dias de instabilidade política e de atraso econômico, intelectual e social. Eram tempos onde uma palavra mal interpretada poderia significar um desaparecimento sem grandes explicações. Tempos onde o medo silenciava a razão. Tempos onde a arbitrariedade e o autoritarismo violava impunemente os direitos humanos. Eu tinha apenas dois anos quando o Marechal Arthur da Costa e Silva [que subiu ao poder em 1967] entrou para a história como feroz tirano por impetrar o AI – 5 [Ato Institucional]. Estava começando a aprender a falar quando institucionalizaram a lei do silêncio através da consolidação da ditadura militar. Eu era apenas mais uma das tantas crianças que se tornaram herdeiras de um regime que suspendeu por duas décadas todas as liberdades democráticas e os direitos, e que permitiu a polícia realizar investigações, perseguições e prisões sem necessidade de mandato judicial.

Eu tinha três anos quando o então vice-presidente Pedro Aleixo, que era civil, foi proibido de assumir a presidência após o afastamento de Costa e Silva, devido a um derrame cerebral. E também quando em seu lugar, o alto comando das forças armadas organizou uma junta militar que governaria o país até a entrada do General Emílio Garrastazu Médici. Com certeza não me lembro de todos os detalhes históricos, mas lembro das situações de pobreza que vivi e vivenciei. Não recordo dos acordos politicos que viabilizaram a ditadura no país, mas relembro das muitas injustiças praticadas em nome do poder. Eu era uma criança que não entendia de política, de autoritarismo e de perseguições, mais que vivenciava ausências e exclusões sociais. E talvez por isso, hoje, tenha me transformado em um homem que entende, valoriza e luta pelo fundamental valor e importância da liberdade e da democracia.