sábado, 24 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo V - A Cidade Vigiada

Capítulo V – As Câmeras Indiscretas do Recife



Acordo assustado no meio da noite. Estou só no vazio de uma escuridão que evidencia movimentos luminosos em minha janela. Sombras movimentam-se de um lado a outro, criando imagens fantasmagóricas que parecem querer me assustar. Escondo-me embaixo dos lençóis e não consigo mais dormir. O despertador dispara anunciando o raiar do dia e agradeço a luz clara, que agora devido ao sol, invadem frestas colorindo meu quarto. O corpo reclama o cansaço da noite e assustado me levanto lentamente. Uma sensação incômoda me invade, e percebo que tenho medo. É como se me sentisse vigiado, observado por alguém ou algo que não conheço e não vejo.

No banho, espreito entre as portas do box, a audição se aguça na busca de movimentos que possibilitem pistas de meu observador. Não existe nada, ou pelo menos não consigo enxergar, mas, sei que está lá, em algum canto, e que em algum momento se fará visível. Fecho a porta e certifico-me da precisão de meu ato. Entro no elevador e novamente a sensação me toma. É como se alguém por trás do espelho me olhasse. Chego à recepção e mais uma vez me sinto vigiado. Apresso-me pela escadaria em mármore branco e entro para o meio do mundo. Lentamente observo pessoas que caminham ao meu lado ou em minha direção. Sinto vontade de virar-me para reconhecer quem me persegue. Disfarço interesse em uma vitrine e constato que tais pessoas apenas passam por mim.

Atravesso uma rua, sigo por calçadas de tijolos vermelhos e amarelos. É o meu caminho de “Dóroty”, que me leva diariamente ao estacionamento. Mais uma vez me sinto acompanhado, dessa vez não por pessoas, mas por prédios, lojas comerciais e ruas. Pelo corredor de acesso chego ao carro. Alguém sentado a frente de um monitor me cumprimenta sem mesmo virar-se a mim. Saio em marcha lenta e curiosamente o grande portão de ferro se abre automaticamente. Confirmo minha certeza que estou sendo acompanhado passo a passo. Olho os retrovisores, mas, não tem ninguém me olhando. Nas avenidas e ruas que levam ao trabalho, sou tomado pela curiosa sensação a cada semáforo, a cada esquina. Os olhos me acompanham em movimentos sincronizados e sei que em algum lugar minha imagem se projeta. Entro em um novo prédio e lá estão eles novamente emitindo ruídos que lembram robôs ao se movimentarem. Olhos mecânicos que causam um ruído mínimo, quase imperceptível, mas que se torna estridente quando contínuo e sucessivo.

Saio para almoçar e mais uma vez me percebo vigiado. No restaurante o mesmo sentimento se alivia pela companhia dos colegas de trabalho. De volta a minha sala, observo que portas se abrem quando me aproximo e direcionam o caminho a seguir. Final da tarde um novo portão me libera aos olhos das ruas. Entro na academia de ginástica e minhas digitais liberam a catraca de acesso, e o mesmo polegar determina comandos capazes de gerar minha rotina de exercícios físicos. A esteira se movimenta ao simples contato de meus pés, assim como a balança que me pesa e dispara um alerta luminoso se estiver acima do peso. Estamos na era digital e por isso as coisas parecem práticas e precisas.

Volto pelos mesmos tijolos, agora meio opacos pelo reflexo das luzes da cidade. É noite e mais uma vez volto a sentir a vigília que não cessa. Na mesma recepção, enquanto espero o elevador, observo em um monitor pessoas paralisadas numa queda lenta e vertiginosa. A porta se abre e não me surpreendo no encontro com vizinhos. Já os tinha visto a tempo de esboçar cumprimentos mecanizados. Subo os andares que me restam e sigo pelo corredor de volta a porta. Continua inviolada e por isso me sinto seguro. Fecho-a em minhas costas sem olhar para trás e consigo me sentir confortável e seguro. Paro diante da janela de vidros e começo a perceber que milhares de pessoas seguem vigiadas por grandes olhos, que em diversos formatos, tamanhos e pontos parecem não mais assustá-las. As câmeras que vêem pessoas em movimento são os olhos do Estado que nos sitia numa cidade inerte e indiferente. São as câmeras indiscretas do Recife que povoam nossas ruas e transformam nossas vidas espetáculos cinematográficos bizarros e irreais. E nestes não somos protagonistas, pois que perdemos a autonomia de nossos atos e a naturalidade peculiar as pessoas livres.

Ah, que saudade do Recife sem câmeras e sem grades, pois que nos tornamos vitimas de nossa própria incoerência. Somos presas em um outro lado. O lado de dentro, seja em nossas casas, nossos prédios, nossos trabalhos, nossos carros ou em espaços de diversão. Estamos sempre e todos presos. A única diferença é que temos nas mãos, as chaves de nossas próprias celas. Mas estamos presos também ao medo, ao pânico e histeria coletiva que nos confina dia após dia a espaços mais reservados e individuais. Assim, deixamos de ser coletivos (pois que para isso nos basta o carnaval) para nos tornarmos vazios. Pobres vitimas da própria inércia reflexiva. Abrimos mão de nossa autonomia, de nossa privacidade e de nossa liberdade em nome de uma segurança utópica promovida por uma fantástica e ilusória fortaleza sitiada.

Neste sentido, lembro de ter lido algumas teorias afirmarem que participantes desses “realitys shows da vida”, paulatinamente se acostumam com as câmeras que vigiam seus passos a cada segundo. Penso que podemos denominar tal fenômeno como processo de acomodação das situações estranhas ao nosso cotidiano corriqueiro. Temos mesmo, enquanto seres racionais a sublime capacidade de adaptação as diversidades, e assim nos tornamos resilientes aos incômodos e transtornos causados pelo progresso. Digo isso, considerando um exemplo próprio vivido há poucos dias atrás. Sendo cliente de um banco de certa projeção e renome, posso desfrutar de alguns serviços que foram criados para melhorar nossa qualidade de vida e melhor administração e investimento de nosso precioso tempo. Porém em determinados momentos não consigo efetivar pagamentos de minhas faturas por meu crédito diário estar limitado a um valor menor que minhas reais necessidades. Acostumamos-nos com o fato e buscamos formas de adaptação ou ajuste as novas realidades impostas, porque são vendidas como medidas de segurança, que também supostamente objetivam nosso bem estar. Afinal de contas, nos dias atuais corremos constantes riscos de assaltos relâmpagos. E nestes casos, nosso prejuízo mínimo seria garantido pela instituição bancária (certo?).

Acontece que compete ao Estado garantir a segurança e o bem estar de seus cidadãos (será que é pra isso que servem nossos tão elevados impostos?). Mas ao contrário da lógica, pagamos nós mesmos pela ineficiência da “segurança social” (ou será nacional?). Fato é que como não consigo pagar minhas contas em dia, e saliento que não por falta de saldo, mais pela limitação diária de crédito. E ainda sou obrigado a me responsabilizar pelas multas e encargos contratuais, além dos acréscimos de juros na fatura subseqüente. Mas talvez a culpa seja minha. Quem manda não me preparar para efetuar tais pagamentos em parcelas intercaladas, com datas antecipadas logicamente. Assim evitaria os transtornos onerosos no mês seguinte (certo?). Mas penso nos transtornos causados pela perda de tempo das seguidas idas a agencia bancária, afinal de contas nós também pagamos parra ter conta em banco. E pagamos caro por um serviço nem sempre eficiente e que facilite nossa vida. Fora isso, será que o fato de ir dois ou três dias seguidos ao banco, pagar a mesma fatura, não aumenta minhas possibilidades de ser vitima de assaltos. Também, não sejamos fatalistas, pensarão muitos. Dispomos da internet que é rápida, cômoda e nos possibilita efetuar transações seguras em casa (será mesmo assim?). Mas, e se meu cartão for clonado? Se meus dados forem capturados por piratas digitais? E ainda, se meu dinheiro for desviado? Quem pagará os prejuízos, o banco, o governo, ou mais uma vez nós mesmos em eternas burocracias que nos restringem os direitos? (afinal a justiça é cega, ou não é?).

O mesmo acontece em relação as milhares de câmeras espalhadas por todas as ruas da cidade do Recife. E acreditem, tem quem se orgulhe de residir em uma metrópole totalmente controlada, e que por isso podemos nos sentir mais seguros. Penso então, que não é de todo mal, afinal de contas numa situação de assalto, se a grande “cavalaria de metálica” não chegar a tempo, pelo menos você terá garantido seus quinze minutos de fama com a exibição de sua morte nos meios de comunicação. Não foi assim que a cabeleireira Maria Islaine de Moraes foi assassinada pelo marido, em janeiro deste ano? (você acompanhou as filmagens pela televisão, em rede nacional?). E o caso de Eloá Pimentel, que quase se transformou em uma mini série de cinco capítulos consecutivos (quantas horas de filmagens?). Mas pelo menos você contribuiu para alavancar o ibope das emissoras e chorar impotente diante do final trágico de uma novela real.

Mas esses são casos que se tornaram famosos, e que também não ocorreram em nossa cidade, pensarão logicamente outra quantidade de pessoas que lerem essas linhas. Então, que tal lembrar que no mês passado um homem foi atingido por uma bala, em plana Ponte Princesa Izabel (passou nos jornais locais), e morreu ali mesmo, em plena luz do dia da cidade protegida. No ano passado, dois garotos em uma bicicleta me acuaram, frente a um prédio da Rua Gervásio Pires. Também não deu tempo da policia me proteger (será que as câmeras registraram?). é que era noite, ou melhor, madrugada, e todo mundo sabe que não se deve andar nas ruas nestas horas. O Estado mesmo, já nos advertiu. É preciso se proteger no aconchego dos lares (concordam?).



E tem também outro exemplo, que precisamente ocorreu diante de minha janela, em plena Avenida Conde da Boa Vista (quantas câmeras foram instaladas a fim de monitorar cem por cento sua extensão?). Um rapaz, que provavelmente bebera um pouco a mais descansava da noite sentado ao meio fio, em frente a uma parada de ônibus (bem iluminada por sinal, e isso devemos a prefeitura, não?). Acontece que o mesmo foi assaltado na avenida mais monitorada e movimentada da cidade. E o mais curioso foi o fato de ter, eu mesmo ligado para a polícia, comunicar que a cem metros existia uma unidade policial e receber a informação de que aqueles agentes não poderiam se afastar do seu posto. Mas também foi informado que uma viatura estava se dirigindo “ao local do ocorrido”. O problema imagino eu, foi que como sempre os assaltantes teimaram em ser mais ágeis e eficientes que nossas unidades e agentes de defesa. E antes mesmo de terminar minha denúncia, os agressores já passavam pela frente do referido posto de policia como se nada tivesse acontecido. Talvez a gente precise pensar que assalto é uma ação não burocrática, por isso rápida. E terá que pense: quem manda beber além da conta? Talvez fosse importante realizar uma campanha de conscientização, esclarecendo a população em geral que se álcool não combina com direção, imagina com avenidas iluminadas e vigiadas por vinte e quatro horas (alguma agencia de propaganda se habilita?).



Penso ainda, que no caso do meu assalto, talvez tenha sido preferível a não intervenção do Estado. Não que seja tão corajoso a ponto de me defender sozinho em tais situações, ao menos tive a possibilidade de negociar com meus agressores. E se os tais agentes de defesa não tivessem tanto tato (será?). E se atirassem nos “marginais” estariam me protegendo ou pondo em risco? E se nesse hipotético “bang-bang” desenfreado, eu tivesse me ferido? Talvez minha morte fosse filmada e eu entraria para o horário nobre. Mas também reflito, que de um jeito ou de outro, confesso não ter respostas para a diminuição da violência urbana. Acredito que políticas públicas eficazes e eficientemente aplicadas possam reduzir as desigualdades e favorecer os processos de inserção sociais tão necessárias a nossa sociedade, pretensamente protegida e resguardada. O problema é que se posse garantir que apresentariam grandes resultados em curto prazo.



Talvez a adoção de ações e medidas sérias, através da educação e garantia de direitos, possibilitando a inclusão no mundo do trabalho, em médio e longo prazo, revelem resultados mais substanciosos e menos onerosos. E logicamente mais justos (mas afinal estamos falando de justiça ou de segurança?). Ponho-me a imaginar o quanto se gasta na instalação de um grande big brother urbano desses; e principalmente quanto custa a manutenção de tais equipamentos. Milhões? Bilhões? (em Dólar ou em Real?). Será que essas exorbitantes cifras monetárias não poderiam se destinar a melhoria e ampliação dos equipamentos da assistência social, educação e saúde? E ainda, quanto se investiria na qualificação e contratação de pessoal, para equipá-los com profissionais competentes e conscientes de seu papel na sociedade (será que assim seriam oferecidos serviços e possibilidades mais concretas, que contribuiriam para diminuir a violência?).



Logicamente estou negando, ou ainda, desconsiderando os resultados atingidos na redução dos índices de criminalidade, assaltos e violência na cidade do Recife. Como também não nego os investimentos, esforços e seriedade que o Estado tem dispensado ao fenômeno da violência urbana. Questiono apena o preço que pagamos por essa segurança vigiada. E não me refiro apenas aos valores monetários, mas ao cerceamento de nossa privacidade. Será que não estamos lhe outorgando o direito de invadir nossas vidas? Será ainda, que não estamos abrindo mão da democracia, que nos garante o direito de ir e vir, sem impedimentos e sem restrições ou constrangimentos, em todo território nacional? Será também que quando relegamos apenas ao Estado o poder de decisão sobre as melhores práticas para problemas coletivos, não estamos nos eximindo de nossas responsabilidades enquanto cidadãos responsáveis pela manutenção de sociedades sadias?



Acho mesmo que essas são questões a serem refletidas e repensadas pela população como um todo, antes que os grandes olhos invadam também nossas casas e nossos corpos. E acima de tudo, antes que nossa própria sociedade transforme nossas vidas em apenas em um grande Show de Trumann (alguém assistiu esse filme?). É preciso, e importante, pensar que garantia de direitos se faz com a participação plena e consciente da sociedade. E encontrar soluções para problemas que atinge a coletividade é um excelente exercício de inicio, para que ”vigiar e punir” nunca se transforme na melhor escolha democrática (Acredito que Michel Foucault consiga explicar melhor. Assim, boa leitura a todos).



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