quarta-feira, 9 de abril de 2014

QUEM TIVER SEUS BODES QUE OS EDUQUE!

Quem tiver suas cabritas que prenda, porque meu bode está solto! É incrível pensar que o famoso ditado popular, comum em minha infância, ainda seja repetido e ensinado como regra de comportamento em muitas cidades Brasil. O conceito em si, prega que os meninos têm por “natureza” um ímpeto sexual, quase insaciável, e logicamente incontrolável, que pode colocar em risco a integridade das meninas. Cabe então, exclusivamente a elas tomarem os devidos cuidados e se resguardarem, a fim de conservarem a tão cobiçada honra, o que lhes garantiria uma vida plena enquanto mulheres causadouras e honestas. Sem honra a menina será automaticamente destituída da condição de mulher. Diria que há quatro décadas tal modalidade de violência moral e nefasta seria até compreensível [e não entenda justificável], considerando a falta de informação e o não acesso a educação de qualidade durante os anos da ditadura militar. Naquela época mulher realmente não tinha vez, e nem mesmo era reconhecida como sujeito de direito. Porém, estamos em pleno século XXI, e é incrível que os costumes pareçam inalterados, consolidando uma falsa e hipócrita superioridade dos homens sobre as mulheres. 

Mais incrível ainda é constatar que as próprias mulheres [principais alvos e vitimas da violência de gênero], principalmente na condição de mães, e por extensão de educadoras, perpetuam a lógica da violência através da educação de seus próprios filhos, futuros agressores. Os meninos podem tudo, inclusive violar as meninas. As cabritas dos outros deixam de ser vistas como meninas e passam a condição de assanhadas ou safadas, alvos naturais dos potenciais garonhões que tanto orgulharão suas genitoras. Mas se há de pensar: triste da filha dessa mãe, que for vitima do garanhão alheio. Até porque, como salienta outro ditado popular: pimenta nos “olhos” dos outros é refresco. Tristes também das mães brasileiras que de tão violentadas em sua moral e cidadania incorporaram a cruel sentença machista, principal motivo das várias mortes no país. Considerando nossa realidade cultural, que representa um atraso e entrave para o estabelecimento de uma sociedade mais democrática e igualitária, e, consequentemente, para o desenvolvimento do país, não é de se estranhar os resultados da ultima pesquisa publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, divulgada no ultimo dia 27 de março, sobre a tolerância social do brasileiro sobre a violência contra as mulheres. E se o fato não é de se estranhar, é com certeza de temer, pois revela uma tolerância nefasta e indigna com a violência. Os resultados do estudo revelam um retrato cruel de nossa sociedade, principalmente considerando que 65% dos entrevistados eram mulheres, muitas delas mães que estão educando seus filhos para serem futuros violadores dos direitos das próprias mulheres. 

Considerando ainda que o Brasil sempre foi, e continua sendo, um dos países que mais mata mulheres no mundo; e que, a cada cinco minutos uma mulher brasileira é vitima da violência cometida pelos machões de carteirinhas, talvez possamos começar a reavaliar urgentemente nossos conceitos relativos as diferenças de gênero. Não dá para pensar em mudança de comportamento sem acesso a educação de qualidade, e aí, logicamente cabe ao Estado garantir tal direito. Não apenas com políticas públicas de proteção e combate a violência, mas principalmente com políticas de prevenção, e neste caminho a educação é a única solução. É fundamental entender que a punição é o resultado da ineficiência política que assola o país, pois que só será aplicado depois de cometido o delito. Mas, como nos diz mais um dito popular, “aí é tarde, a Inês é morta!”. Ou seja, “Não adianta chorar por leite derramado”. A violência tem que ser combatida em sua base, e esta está na formação do cidadão comum. É na escola, durante os primeiros anos que a criança, independente do sexo, e da orientação sexual, deve aprender e incorporar os princípios de civilidade e principalmente das noções de direitos e respeito às diferenças. Mas a escola é complementar da família. Logo, cabe aos pais primar pela educação dos filhos, iniciando-o na convivência social. 

A educação transforma, inclusive os velhos costumes. No cotidiano, é preciso inverter a lógica nos atos práticos e cotidianos, ensinando a nossos filhos, sobrinhos, netos, que homem que bate em mulher não é machão, mas sim marginal. E todo delinquente precisa ser severamente punido e responsabilizado por seus atos. Na mesma lógica, precisamos ensinar que mulher que apanha de marido ou de companheiro, namorado, parentes, não é safada, e sim vítima de uma sociedade machista. Do sistema sociopolítico e sexista que nós mesmos construímos. É inadmissível constatar, por exemplo, que nos dias atuais mais de 26% dos brasileiros concordem que mulheres que usam roupas decotadas ou que mostram partes do corpo mereçam ser atacadas. Assim como também é inaceitável que 58% da população acreditem que se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros. Esse tipo de posicionamento só revela a força da tradição [ou contradição]. Mas se roupa fechada fosse impeditivo de estupro, as muçulmanas não eram violentadas sexualmente. Se comportamento adequado [estabelecidos secularmente pelos homens como forma de coerção as mulheres] fosse impeditivo de violência, crianças e adolescentes não eram abusas ou exploradas sexualmente por seus pais, avôs, tios, irmão, primos... 

Então o problema não está nas roupas ou comportamentos sedutores e/ou convidativos das mulheres, mas única e exclusivamente na cultura. O corpo é um bem privado, cabendo a cada um fazer bom uso do mesmo. Mas isso só é possível com autonomia, direito de todo ser humano. Mulher com perna de fora ou decote saliente não está pedindo para ser estuprada ou assediada moral ou sexualmente. Assim como quem sai com um relógio caro, uma joia valiosa ou um carro do ano não está pedindo para ser assaltado ou morto. Pensar sob a culpabilidade da vítima é abdicar dos direitos, das próprias responsabilidades, e pior ainda, banalizar a violência. É preciso considerar que a tradição se configura como um conjunto de regras e normas, que se tornam costumes definidos coletivamente para possibilitar a harmoniosa convivência social. Neste sentido, um costume só se torna tradição quando deixa de ser questionado pelo grande grupo social. Um conjunto de tradições forma a cultura de um povo. Logo, nada é natural, mas apenas reflexos ou resultados de construções sociais. A violência também é uma construção humana. E toda construção pode e deve ser desconstruída, dando espaço a novas [re]construções que atendam as novas demandas e anseios da sociedade. E é exatamente isso que estamos fazendo com a violência contra as mulheres. Deixando de questionar e rever velhos conceitos e regras que já não atendem ao coletivo, mas apenas a um segmento da população – os homens ultraconservadores, que não conseguem se enxergar ou se firmar enquanto homens de verdade longe do poder da coação e da força bruta. 

Uma sociedade que afirma que existe mulher para casar e mulher para cama; assim como afirma que a mulher deve atender aos desejos sexuais do homem mesmo contra sua vontade, não pode ser vista ou entendida como civilizada, e muito menos como democrática. Este é o retrato da barbárie e da selvageria, caracterizado pelo silencio imposto diante do estupro domiciliar, cometido cotidianamente pelos próprios maridos no privado dos lares. Subjugação não é amor ou demonstração de carinho ou afeto, é violência! Se deixar ser penetrada ou mexida sem vontade não é devoção, respeito ou obrigação para com o companheiro, mas sim, estupro! Violência contra mulher não é natural, é animalesco, um dos crimes mais hediondos contra a humanidade. O silenciar diante da violência não pode mais ser visto ou tolerado como estratégia de sobrevivência, pois quem cala termina por consentir, mesmo que involuntariamente. Denunciar é a única forma de combate eficiente. Por isso, essa história de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” é balela. Até por que omissão também é crime! Sociedade civilizada é que s utiliza de seus direitos para combater suas próprias mazelas. E a violência, em todas as suas modalidades e expressões, é uma mazela que vem se alastrando pelo país e contaminando populações. 

Só se transforma uma cultura, quando transformamos primeiro a nós mesmos. Só se muda costume, quando refletimos sobre eles e percebemos sua inutilidade ou falta de aplicabilidade sensata e justa. E aí vale uma excelente reflexão, pois mais curta do que as roupas das mulheres devem ser nossa vergonha e tolerância diante da violência. Até porque mais indecente do que suas vestes ou comportamentos é o ato de contribuir, mesmo que de forma inconsciente, para a manutenção de uma sociedade injusta e desigual, respaldada no machismo ultraconservador e perigoso. Mudemos então nossas próprias atitudes, para depois pensar em mudar o mundo! Combater a violência contra as mulheres e as minorias não é um papel exclusivo do Estado, mas de cada um de nós. Transforme você mesmo a educação dos seus filhos, netos, sobrinhos.., para que num futuro não tão distante possamos alcançar definitivamente a civilização. As mulheres não podem mais ser destituídas de sua condição ou essência, comparadas a cabritas, santas ou putas, pois que estas rotulações são por demais limitantes e preconceituosas. As mulheres precisam, e têm o direito de serem reconhecidas enquanto mulheres, enquanto sujeitos de direitos e donas de suas autonomias, inclusive para usar ou mostrar o corpo sem o risco de serem violadas ou ultrajadas. Assim, quem tiver seus bodes garanhões e irracionais que os eduque de forma correta, pois que violência é crime, e a irracionalidade somente deve ser permitida aos animais.