Os Ruidos da Cidade
Morar na Av. Conde da Boa Vista tem suas vantagens, afinal de contas, tudo o que acontece no centro da cidade fica-se sabendo de imediato. Posso mesmo dizer que tudo o que ocorre no coração de Recife, se passa abaixo de minha janela. Assim foram com as caminhadas estudantis, que reivindicavam melhores condições de ensino; com os movimentos sociais, por garantia de direitos; movimentos de classes, como graves de motoristas; batidas policiais; corre-corre de bombeiros ou paramédicos em ambulâncias de emergências; sem esquecer claro, dos antigos desfiles militares.
Do alto de meu apartamento (ou será apertamento?) consigo ouvir os sons que vem das ruas, e claro, também os barulhos que são muitos. A poluição sonora dos grandes centros urbanos abrange uma gama de sonorizações e ruídos que se traduzem em conversas entrecortadas, buzinas de automóveis, sirenes, gritos de ambulantes, anunciantes de lojas, carros de sons com suas propagandas ensurdecedoras e mais uma variedade de músicas que se misturam em estilos e invadem nossas casas. Quem mora no centro tem por obrigação o ecletismo musical, o que termina proporcionando certa erudição no assunto.
Nossa cultura é ampla, indo do forró ao frevo, ou ainda, do brega ao pop. Aqui nasceu o mangue-beat, mas também se houve o maracatu tecnológico, o técno-brega, bate-estaca e mais uma porção de ritmos que se caracterizam pela marcação de tempo de cada forma ou estilo musical, que aos poucos se integram e são devidamente incorporados aos costumes locais. Temos ainda a característica de povo aberto ao novo, principalmente no que se refere a sons e movimentos.
Assim, no inicio do ano somos tomados pelos frevos (sejam de rua, de bloco ou canção). Em seguida chegam os padres cantores anunciando a páscoa, para logo serem substituídos pelos românticos da MPB que cantam o amor as mães e as noivas. É São João e lá se vai um mês inteiro com seus forrós, xotes e xaxados que embalam as quadrilhas juninas (e que hoje mais parecem escolas de samba). Em agosto a salada musical continua com homenagens aos pais, porém, talvez em setembro atinjamos nosso ápice. Podemos então escolher entre as marchas militares, com seus hinos de amor a pátria; baladas eletrônicas e alucinadas da parada da diversidade; ritmos politicos ou politizados dos gritos dos excluídos; ou ainda, o estilo gospel da caminhada evangélica.
Em outubro a cidade é pura inocência, com ritmos infantis que exaltam as belezas do ser criança. Mas tem também os cânticos gregorianos das igrejas que badalam incessantemente em homenagens a padroeira do Brasil. E finalmente emenda-se com o ciclo natalino que nos brinda com as repetidas e melancólicas “canções do Rei” (e por falar em cafonisse, alguém consegue ainda aguentar a Simone cantando: “então é natal... e o ano novo já vem...?). A essas alturas seus ouvidos estão prestes a explodir, mas para nosso alento e deleite o novo ano nos trás tudo novamente, do mesmo jeito, talvez para mostrar o quanto valorizamos a tradição (incoerência ou cultura?).
Assim, no inicio do ano somos tomados pelos frevos (sejam de rua, de bloco ou canção). Em seguida chegam os padres cantores anunciando a páscoa, para logo serem substituídos pelos românticos da MPB que cantam o amor as mães e as noivas. É São João e lá se vai um mês inteiro com seus forrós, xotes e xaxados que embalam as quadrilhas juninas (e que hoje mais parecem escolas de samba). Em agosto a salada musical continua com homenagens aos pais, porém, talvez em setembro atinjamos nosso ápice. Podemos então escolher entre as marchas militares, com seus hinos de amor a pátria; baladas eletrônicas e alucinadas da parada da diversidade; ritmos politicos ou politizados dos gritos dos excluídos; ou ainda, o estilo gospel da caminhada evangélica.
Em outubro a cidade é pura inocência, com ritmos infantis que exaltam as belezas do ser criança. Mas tem também os cânticos gregorianos das igrejas que badalam incessantemente em homenagens a padroeira do Brasil. E finalmente emenda-se com o ciclo natalino que nos brinda com as repetidas e melancólicas “canções do Rei” (e por falar em cafonisse, alguém consegue ainda aguentar a Simone cantando: “então é natal... e o ano novo já vem...?). A essas alturas seus ouvidos estão prestes a explodir, mas para nosso alento e deleite o novo ano nos trás tudo novamente, do mesmo jeito, talvez para mostrar o quanto valorizamos a tradição (incoerência ou cultura?).
No meio de toda essa multiplicidade sonora, destacam-se as bandas eletrônicas de bregas eletrônicas (ou serão estilizadas?), os Raps e Hip-Hops da vida. Além, claro, das novas vertentes da musicalidade urbana, que assim considero por tratarem e retratarem a vida nas grandes comunidades populares. Este gênero inovador (será?) vem criando novos ícones entre a população de modo geral, em substituição talvez aos grandes cancioneiros da música popular. E nos campos da irreverência e da criatividade, características tão comuns aos pernambucanos abrem-se duas vertentes.
Enquanto a “Tanga de Sereia” dá vazão a sua nova MMPB, satiricamente denominada Música Muito Popular Brasileira; o João do Morro ataca de... De que mesmo? (Será que seria tão agressivo quanto suas letras e performances artísticas, classificar como pop grotesco?). Neste ponto aproveito para esclarecer que minha crítica não se direciona aos artistas enquanto sujeitos, e por direito livres para se expressarem da forma que lhes for mais conveniente ou oportuna (como também o faço agora). Propor apenas que se faça uma reflexão sobre suas obras (se assim podemos classificar).
E me antecipo em desculpas se por desventura, ou aventura, desagradar a alguém, ou a alguns. Mas confesso que sou do tipo que prefere entender o papel social do artista enquanto agente de transformação, e por conseguinte formador de opiniões. Além disso, e logicamente diante disso, os artistas tornam-se responsáveis pelo que transmitem as suas gerações de fãs. Aproveitando então a inspiração, e parafraseando o Pepeu Gomes, declaro acreditar que “o mal não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca, do homem”.
Enquanto a “Tanga de Sereia” dá vazão a sua nova MMPB, satiricamente denominada Música Muito Popular Brasileira; o João do Morro ataca de... De que mesmo? (Será que seria tão agressivo quanto suas letras e performances artísticas, classificar como pop grotesco?). Neste ponto aproveito para esclarecer que minha crítica não se direciona aos artistas enquanto sujeitos, e por direito livres para se expressarem da forma que lhes for mais conveniente ou oportuna (como também o faço agora). Propor apenas que se faça uma reflexão sobre suas obras (se assim podemos classificar).
E me antecipo em desculpas se por desventura, ou aventura, desagradar a alguém, ou a alguns. Mas confesso que sou do tipo que prefere entender o papel social do artista enquanto agente de transformação, e por conseguinte formador de opiniões. Além disso, e logicamente diante disso, os artistas tornam-se responsáveis pelo que transmitem as suas gerações de fãs. Aproveitando então a inspiração, e parafraseando o Pepeu Gomes, declaro acreditar que “o mal não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca, do homem”.
Sem querer parecer elitista, e muito menos excludente, afirmo considerar todas as formas de expressão como importantes constituíntes para a formação cultural de um povo. E ainda, sem querer correr o risco de incorrer em posicionamentos preconceituosos, confesso me identificar muito mais com o estilo "Brega Cult Pop" contagiante da banda Tanga de Sereia. Talvez por explicitar o tom das desventuras do amor romântico, que apesar de ácido em certos momentos (para o qual tenho certa propensão, será?), não se revela apelativo ou ultrajante. Sua interprete de forma cínica, ou cômica, consegue abordar temas ainda tabus a sociedade, como tesão, traição, paixão e solidão. A transgressão cênica, se assim podemos chamar, revela-se na imagem feminina que no melhor estilo “fossa braba” conta de suas agruras e desventuras no amor.
E em nenhum momento a mulher é objetificada, mas pelo contrário, torna-se subjetivada no sentido mais restrito ao que vem de um sujeito enquanto agente individual, mas que também é coletivo. O que está em cena são as vivências e experiências da mulher, independente de recortes socioeconômico, étnico ou religioso, abordado de forma simples e de fácil assimilação. Talvez o único e principal objetivo, seja tão somente provocar o riso pelo processo de identificação, e assim fazer o público ironizar de suas próprias experiências traumáticas no campo afetivo. E isso, a meu ver, é por demais salutar.
Assim, ao incitar “Me leva pra praia e me joga na areia, tira minha tanga e me chama de sereia”, a mulher é promovida como solicitante, demonstrando autonomia no ato de se fazer desejar e/ou possuir. E no fim, ao exclamar: “agora me leve em teus braços e faça tudo que mandar. Me abrace, me beije e me bata. Não tenha pudor em me amar”, revela liberdade ou independência moral e intelectual, pautados no direito, ou ainda, faculdade de se reger por leis conceituais próprias. A letra transforma-se assim, em discurso do feminino (ou melhor femininos) enquanto sujeito do desejo, que em pé de igualdade aos homens fala de suas próprias vontades, carências, necessidades e ou preferências, sejam essas eróticas ou sexuais.
No outro lado, ou na contra mão, o símbolo pop máximo do machão, João do Morro (que talvez se reconheça enquanto retrosexual – mas será que ele sabe o significado de tal categoria, ou achará que é mais um dos tantos palavrões que musicalisa em suas letras?), relata quase a mesma cena de paquera, que se dá em uma praia do litoral recifense. Porém, na versão do masculino, a “sereia” é destituída de seus encantos e mistérios, peculiar a mulher, para ser equiparada a um carro (no sentido figurativo de máquina potente): “Domingo passado eu tava na praia, de chinelo, bermuda, camiseta e boné. Pagando cerveja, bancando de tudo, metido a gostoso e cheio de mulher... eu vi uma delicia saindo da água... e deitou bem pertinho de mim. Deixou o sorvete derreter no capô e ficou dizendo assim: chupa que é de uva... (pega essa promoção).”
O recorte de gênero permeia toda a pretensa poesia para evidenciar a supremacia do gostosão pagador, e por que não “pegador” (detentor do poderio econômico e da virilidade), que por ser tão cobiçado enquanto macho consegue minimizar a “delicia que sai da água” a uma simples “promoção”. E neste sentido, promoção não se refere ao conjunto de atividades que visam fortalecer a imagem de uma marca ou indivíduo, mas pelo contrário, relaciona-se ao pequeno preço de uma mercadoria, ou ainda menor valor de mercado (que se traduzirá na desvalorização da mulher, mesmo que desejada). Se promoção relaciona-se a pequeno valor comercial, talvez neste caso, evidencie as representações sociais a cerca do feminino, construidas e fortalecidas pelas vivências e experiências do próprio autor.
Mas, voltando a nossa análise musical, se numa esfera (a do feminino), a “sereia” é representada como ser que domina a sedução pelos encantos mitológicos que transforma experientes homens em desalentados náufragos; na outra (esfera do masculino), a mesma torna-se adjetivada como “delicia que se dilui”, ou transformada em algo comestível (Ou seria chupável? Mas, esse termo existe? Melhor considerarem licença poética). Penso que numa hipotética fantasia histriônica (no melhor sentido das farsas do antigo teatro romano) onde a “Sereia do Pina” provavelmente reclamaria tal galanteio declarando: “é cada qualidade de homem que me aparece. Mulher eu vou dizer uma coisa, ninguém merece! Ninguém merece!”.
Em uma das grandes pérolas do compositor, talvez possamos entender seus conflitos existenciais e emocionais, provocadas pela exautiva e constante tentativa de manutenção de sua supremacia masculina. A imagem de inserurança ou medo de ser destituido de seu lugar de macho gostosão, parece configurar-se na ameaça de um outro garanhão “comedor”. Assim, ao questionar a amada sobre uma suposta prova de sua traição, ele declarará implacável: “que mancha é essa na sua canela? É sinal de puta! Sua perna tá com uma mancha escura. É sinal de puta. Não me diga que é uma tatuagem. É sinal de puta!”
E em sua obstinada averiguação dos fatos sobre o corpo da mulher, que supostamente cometera grave delito, o macho esbraveja: “tô ligado que é uma queimadura... tome muito cuidado quando sentar na garupa, você foi andar de moto. Deixa eu adivinhar, foi no cano de escape, quando você foi sentar.” E por fim, setencia sua pena e castigo, a qual deverá pagar em nome de sua desonra moral, a exemplo de todas que cometem o “crime de adultério”: “preste muito atenção, o cano quente machuca. Você agora faz parte das que tem sinal de puta!”
Se considerarmos que na era medieval as mulheres, que eram posses de seus maridos, eram queimadas a ferro e fogo como prova de seus descráditos, e ainda expostas diante de toda sociedade para serem apedrejada como Madalenas; como também se analisarmos que em tal situação a queimadura na “canela” torna-se representativo sinal de puta, não poderíamos supor que o autor se baseia em princípios primitivos para estabelecer seus conceitos morais e moralizantes?
Refletindo mais, dessa vez sobre sua postura pautada em princípios arcaicos, não poderíamos interpretar sua advertência como direta alusão ao falo do outro (escape da moto), que queima, e por isso marca a carne feminina para evidenciar as provas de seu desvio moral? Assim, acredito que se fala e se procede (simbolicamente, claro) da mesma forma. O cenário figurativo se mantém intocável, mesmo com o passar dos séculos. E percebam que em nenhum momento o desonrado busca pistas ou detalhes sobre seu rival, o que talvez configure a cumplicidade masculina. O “mais forte” não se torna errado por deitar a mulher alheia, pois que cumpre com seu papel de macho.
Mas no mundo dos homens, não basta tornar efetivo o que seu papel social determina ou prescreve, torna-se necessário “marcar a vadia”. Primeiro para vangloriar-se diante de seus pares, e segundo, em cumprimento ao pacto de sangue (ou melhor, puro sangue) que une os selvagens machos. O “cano quente” no qual senta, ou se assenta o feminino, queima e causa-lhes feridas (emocionais e/ou morais) para alertar que tornou-se indigna de um homem, mas que se destinará ao deleite e prazeres de todos.
Penso que essa espécie de pacto do “Clube do Bolinha” se estabelece e se fortalece na perspectiva da manutenção da supremacia masculina. Assim, o destratado apesar de ofendido e humilhado, deve referenciar a força e o poder do inimigo. A mulher traidora caberá apenas a rua, pois que a casa não se constitui espaço as infames e impuras, e por isso a condenação popular lhe perpetrará um sinal de puta. Com a música, ofende-se a mulher amada e a mulher prostituta. Com suas performances em cena, no melhor estilo cafajeste dominador/predador, humilha-se por extensão a todas as mulheres que por ventura caiam, ou desejem cair, em tentação. Perpetua-se assim, a imagética do prazer sexual e do gozo, que lhes serão negados, e apenas aos homens outorgados.
Sugerindo ainda uma reflexão mais atenta sobre os fatores que parecem contribuir diretamente para a construção dessas (e outras) representações sociais, verificaremos em suas letras que a cultura mostra-se como um dos principais preceitos determinantes a perpetuação de preconceitos. No recorte étnico/raça, por exemplo, podemos destacar uma situação que parece retratar o espaço social em que o referido autor encontra-se inserido. A letra nos oferece subsídios de uma cena, onde aparentemente rodeado de amigos, tenta expor suas próprias concepções a cerca das relações afetivas e sexuais envolvendo pessoas com tons de pele opostas: “escuta essa história que eu vou contar. Uma mulher branca engravidou de um negro. O povo da rua a se perguntar: esse menino como será?
A música em si, exprime a força da cultura local, que é genuinamente pernambucana, e também nacionalmente brasileira. Contudo, mesmo antecipando sua discordância ao pensamento coletivo, o autor mostra-se vitima dos códigos e padrões da sociedade em que se insere. E em sua fragilidade contextual, tenta contra argumentar: “pegue uma galega e misture com um negão. Não vai nascer uma zebra. Vocês vão ver no que vai dar. Vai nascer um sarará.”
Falo de uma fragilidade contextual, porque acho importante entender que etimologicamente a palavra “sarará” tem sua origem no tupi guarani (logo, recorte étnico e cultural), designando aquele que tem pelos ruivos, em relação derivativa aos europeus que colonizaram nossas terras. Popularmente usa-se a palavra para dizer da cor alourada ou arruivada do cabelo muito crespo característico de certos mulatos. Então cabelo crespo é característica e não raça. A criança (independente dos artigos definidos – a ou o – que se configuram gramaticalmente no recorte do modelo anátomo-biológico) que se origina das parcerias afetivo/sexuais entre negros e brancos será denominada mulata/o, pois que é derivativo de junção de raças (e aqui, no sentido de confluência, reunião ou união).
Ampliando a discussão, sabe-se que na cultura popular brasileira, “zebra” (que é um animal original da África), refere-se a pessoas estúpida, sem inteligência, também denominada de “burra” (Fêmea do burro, mamífero facilmente domesticável, muito difundido no mundo, e utilizado desde tempos imemoriais como animal de tração e carga). Enquanto a zebra se caracteriza pela pelagem listrada de preto sobre fundo branco ou camurça, com crina curta em forma de escova; o burro é ungulado (mamíferos cujos dedos são providos de cascos) e tem pêlos duros, de coloração extremamente variada, indo do castanho-fulvo ao cinza-escuro.
Assim, o comparativo entre a criança gerada da união entre um “negão e uma galega”, com uma zebra, torna-se infeliz, sendo talvez resultado reflexivo do imaginário coletivo pautado na textura e coloração dos cabelos de afro-descendentes em analogia ao pêlo duro do referido mamífero (que não coincidentemente também tem origem no continente africano). E neste sentido, que penso que ao falr de cabelos nos seja mais apropriado a reflexão proposta pelo Jorge Bem Jor em parceria com o Arnaldo Antunes: “...quem disse que cabelo não sente, quem disse que cabelo não gosta de pente?... cabelo quando cresce é tempo... cabelo vem lá de dentro... cabelo com orgulho é crina, cilindros de espessura fina. Cabelo quer ficar pra cima... aparado ou escovado, cabelo pode ser bonito, cruzado, seco ou molhado.”
Outro aspecto que sugiro maior reflexão refere-se ao ato de outorgarmos ao outro o direito de ofensa. Assim, em duas situações, em dois shows, em espaços diferentes, pude observar o fenômeno de massa provocado pela não escuta do que realmente se fala. E torna-se incrível parar e observar o quanto se consome ultrajes, agravos e afrontas. Falo consumir, porque música também é produto e show é serviço. Então pagamos muitas vezes caros ingressos para ouvirmos (ou não ouvimos?) postergação de preceitos e violações de regras morais e sociais.
Num determinado dia, assisti ao show numa boate de Recife. O cantor em trajes femininos, no melhor estilo estereótipo grosseiro canta seu grande clássico: “Ei boyzinho, você é papa frango! Ei boyzinho, olha, deixa do teu caor! Ei boyzinho, essa camisa, essa bermuda! Ei boyzinho, foi o seu frango que comprou! Eu boyzinho, olha, não diga que é mentira! Ei boyzinho, porque o frango me contou. Ei boyzinho, que você além de papa frango. Ei boyzinho, é papa frango e gigolô!”
Confesso ter me chocado muito menos com o tom pejorativo da musica, do que com a reação de vários gays, que pareciam indiferentes, e de certa forma validavam as ofensas. Considerando que frango é uma deniminação usual, na cultura local para designar homossexuais, a música refere-se ao garoto que não é homossexual, mais mantém relações sexuais com gays em troca de ganhos, financeiros ou em forma de “presentes”. Consideremos também que a denomianção boy, do inglês, refere-se a garoto. Logo do sexo masculino. Em Recife, tal denominação configura-se enquanto caracterização do homem jovem e másculo, o que reafirma o recorte do gênero masculino. Na comunidade gay, boy refere-se ao homem ativo que durante a relação sexual penetra o homossexual. Ainda em Recife, os garotos de programa se reconhecem e se autodenominam boys de programa (ver Souza Neto, 2009; Vaina, 2010). Em suas concepções o frango equivale a bicha, taduzindo, aquele que é penetrado.
Fora isso, considerando que boyzinho é o diminutivo de boy, considera-se que a letra fale sobre um adolescente em situação de exploração sexual (e não vamos adentrar nas discussões relativas a motivos e fatores contribuintes para sua inserção no mundo do sexo comercial). O que quero salientar é a forma como a música em questão, termina de certa forma naturalizando um fenômeno social que se configura enquanto crime. Lógico, que retrata uma realidade, e isso não se discute, inclusive seu valor no sentido de trazer o debate a discussão. Talvez o erro, pelo menos neste sentido, refira-se a forma como o assunto é tratado, pois que ironicamente não chama a atenção para o que se destinaria. Ao contrário, a questão é abordada como grande façanha de um garoto esperto, que encontra no sexo comercial as estratégias que lhe possibilite outros acessos. Afinal ele ganha para papar o frango (ou os frangos).
A música contribui ainda para perpetuar a idéia de que todo homossexual paga, ou deve pagar, para se relacionar sexual ou afetivamente. Também efetiva a concepção de que o gay representa um perigo a integridade de adolescentes de comunidades de renda baixa (já não basta a igreja católica associar homossexualidade a pedofia?). Assim, acrescenta: “No carrão de luxo, você tava com o frango. Lá no restaurante, você tava com o frango. Você tava comendo pra depois ser comigo”. E o paralelo é feito entre o frango do prato e o frango que paga. O gay então torna-se reduzido a um animal, que por extenção não é homem, pois que frango é um estágio intermediário entre o pinto e o galo. Se analisarmos que este configura o processo de desenvolvimento do animal, em correlação podemos entender que o homossexual é um ser imaturo, não desnvolvido, seja fisica ou emocionalmente (Será um retrocesso ao velho medolo médico-higienista tão comumente adotado no incio do século passado?).
Ao final, é dito que: “O dinheiro do táxi: Foi o frango que deu! Quando tu passa pela rua, a galera diz: Ei boyzinho, você é papa frango! Ei boyzinho, papa frango e gigolô.” Não é o mesmo sinal de puta, ou melhor de puto, revelando o processo de estigmatização social? Mais uma vez recorrendo aos dicionários, verificaremos que puto designa uma qualificação depreciativa. Também dis-se do próprio homossexual, ou indivíduo devasso, corrompido e dissoluto (que por extensão significa dissolvido, desfeito e corruto – que equivale a corrupto). Assim, o termo chulo utilizado iguala e desqualifica o gay e o adolescente, e por extensão os boys de programa de Recife (Será mais uma vez a velha estigmatização da prostituição?).
Acredito que a forma com que detrminadas músicas tratam sobre as mazela de uma sociedade pautada nas grandes desigualdades sociais como a nossa, não corresponde ou contribui a tratar dos seus problemas ou enfermidades. Pelo menos, não no sentido literal da palavra tratar, que corresponde a modificar, transformar por meio de um agente. É neste sentido que penso se perder um grande instrumento de transofrmação social, a própria música. Pois que esta, quando apenas utilizada como recurso mercadológico e financeiro não cumpre com o seu papel.
E principalmente, quando o artista se utiliza indevidamente, ainda que de forma incosciente, de conceitos ou opiniões formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos, correrá sempre o risco de perpetuar as idéias preconcebidas, que sempre se traduzirão como puro preconceito.
E preconceito sempre será a base, fonte de inspiração e justificativa para as tantas fobias sociais que assolam nossa cultura e pais, que ressignificadas tranformam-se em ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, orientações sexuais, e tantas outras diferenças.
Por isso, seguindo o discusso popular, para evitar que sejamos em algum momento de nossas vidas atropelados por trens (que correlaciona-se as coisas ruins, ordinárias e imprestáveis), é sempre melhor: Parar, Olhar e Escutar. E neste sentido, antes que questionem, prefiro esclarecer que elitismo é totalmente diferente de seletividade, pois que através dessa, poderemos sempre escolher opitar por algo que verdadeiramente nos agrade.
Aos hmens (e também mulheres) que ainda se pautam pela relações de poder que estabelecem as diferenças de gênero, lembro mais uma vez que o Pepeu Gomes, já dizia que: "ser um homem feminio, não fere o meu lado masculino. Se Deus é menina e menino, sou um masculino/feminino. E a todos, ainda digo que "prefiro ser essa metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo..." (Salve, Raul Seixas).