terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

MENINAS QUE PASSAM E MORREM NAS RUAS DO RECIFE

CENTRO DO RECIFE





ENQUANTO O CARNAVAL NÃO CHEGA!

Uma menina vaga pelas ruas da cidade. Estamos na Praça Maciel Pinheiro, coração do Recife. No centro um grande chafariz se ergue. O lodo cobre não só quatro leões que imponentemente suspendem uma plataforma onde uma índia se banha, mas também a água que lhes caem da boca. Na base da bela obra de arte dezenas de crianças e adolescentes se banham num verde salobro e aveludado. Também são lodos, pois que se constituem na ignomínia e degradação. Escórias de uma metrópole impudica destoam da escultura, outrora branca. Em meio aos matos, pois que já não há jardins, Clarisse Lispector parece inerte e sem vida. O abajur está no chão e já não ilumina o teclado da velha máquina. Não foi só a inspiração que foi morta, mas também a luz que se recusa iluminar dejetos sociais que agora assumem aspectos humanos. Meia dúzia de famílias fixou seus lares sobre as velhas e históricas pedras de cor clara, por onde se estendem velhos colchões e roupas de uso, ou pelo menos o que sobraram delas. A ração diária lhes é servida em latas, mas representa a solidariedade cristã. Eles comem como cães famintos. Rosnam, se empapuçam, cheiram cola e depois caem desacordados. Em meio a tudo isso, a menina passa, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Ela não tem mais que 13 ou 14 anos, mas sua fisionomia resvala na velhice. As marcas das ruas estampam seu rosto, seu corpo, seus movimentos minguados. São cicatrizes profundas que desfiguram os que não têm nada. Ela vagueia como sem rumo, e talvez não o tenha de fato. Muito menos prumo. Um resto de tecido, que um dia foi amarelo, lhe cobre vergonhosamente os pequenos seios, enquanto que uma saia curta lhe expõe indevidamente a carne. Seus olhos enxergam a esmo e um sorriso débil lhe invade a boca desnuda e sem dentes. Um torço de cabelos grudentos lhe cai sobre os ombros esqueléticos. É uma sombra humana. Um fantasma atormentado e que atormenta. Seu cheiro incomoda, assim como incomoda seu aspecto animalesco. Resto de gente que se arrasta pelas ruas de uma cidade hipócrita. Alguns lhes viram o rosto enquanto elevam às mãos as narinas. Fingem espanto. Não fazem nada. Apenas observam e criticam enquanto a menina passa. E em meio a isso tudo, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Ela cruza a Rua do Hospício de forma louca e desequilibrada. Esquiva-se dos automóveis que reclamam em buzinas. Tropeça na calçada em desalinho e sempre esburacada. Ela ri de si mesma. Ela cai sozinha. Ela ri sem motivos, ou talvez de sua própria condição. É um bicho perdido e sem donos. É dona das ruas e por isso se impõe a uma cidade muito maior em sujeira. Agora três jovens moribundos e um adulto com aspecto doentio lhes abordam. Brincam com ela. Tentam agarrá-la a força. A menina se mostra escorregadia entre mãos pecaminosas e cheias de más intenções. Um senhor que passa do outro lado reprova o ato. Um bêbado grita: “fodam essa cadela!”. A brincadeira continua. A briga se agrava. Suas roupas se rasgam. Ela corre desorientada. Ela cai novamente, agora do meio fio. Ela ri sem motivos ao mesmo tempo em que um carro freia cantando pneus. Ela ri sem emoção. E a meio tudo isso, a menina passa, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

Uma cadela corre as ruas enquanto é seguida por cinco ou seis cachorros. Deixa um rastro de cio que aglomera e atiça a selvageria. A menina passa seguida por anjos negros, pardos e anêmicos que a cobiçam. A tara também aglomera a selvageria. São todos bichos soltos. Uns naturalmente animais. Outros destituídos da condição humana. Todos primitivos. Todos selvagens: a menina que passa; a cadela que corre; os anjos pecaminosos, que a perseguem; os cães que rastreiam o cio e o povo que os acompanha. Inclusive eu!

Pela Rua Gervásio Pires ela some. Anjos indecorosos mantêm a perseguição. E agora sou eu quem passa. Relembro uma notícia de jornal e esmoreço diante de um destino previsto: “uma adolescente é encontrada morta em matagal da Região Metropolitana”. A cena me invade a mente. Vejo uma vítima atacada por cães humanos, raivosos e ensandecidos pela tara. Salivantes por cobiçar a carne alheia. Mesmo que magra em e sem vida, mas ainda carne. Mesmo que em forma de ossos, mas ainda corpo. Corpo que será vencido pela fúria dos desejos transgressores. Corpo que será escarnecido pelo ódio de quem não tem nada - limites, afetos, dignidade, cidadania, auto-referência. Aquela já não passa pelas ruas do Recife. Pelas mesmas ruas por onde as pessoas ainda passam. As mesmas ruas das quais o governo se ausenta. As mesmas e mal tratadas ruas de uma cidade que ainda permanece viva. Ela não.

Como tantas meninas feitas em vias desumanas, talvez a de sorriso débil consiga lutar contra os que a violam. Mas talvez não lhe restem forças diante de uma cidade indecente e emporcalhada. Uma cidade muito mais forte em sujeira. Quem sabe não sofra da ausência, digna dos imbecis e se refugie no escuro da alma, de uma forma que só os que não têm nada conseguem. Quem sabe sorria de forma demente resignada ao que o destino lhe reservara. E se o destino não lhe fez justiça, a sociedade lhe impôs a condição de cadela. E cadelas não têm direitos. Não têm cidadania. Apenas as ruas lhes darão guarida. Rogo então que seu futuro se faça diferente e que o escárnio social se transforme apenas em brincadeira. De um mau gosto que só os que não têm nada sabem brincar. Em silêncio rezo para que não estampe as capas dos jornais matinais. E neste exato momento, penso que talvez nem a morte a deseje, pois que a vida há muito a abandonou. E nesse naturalizado desinteresse pela vida, as pessoas passam, o governo se ausenta e a cidade continua viva.

E agora sou quem caminho desorientado. Tropeçando em remorsos. A foto do jornal me volta à cabeça. A batalha prossegue, e agora a vítima sem rosto assume as feições da menina ébria de drogas que vi passar. Seu corpo é corrompido. Transforma-se em caça de quem é caça também. Torna-se refém dos que se manterão reféns ainda por longos tempos. Nesse ato de violência não é carne que se penetra e se exalta, mas as mazelas da sociedade, também animal. Os subjugados subjugam seus pares na tentativa de apaziguar seus próprios sofrimentos. Ferem os excluídos por não poder lutar contra os que lhes excluem. Buscam aniquilar suas próprias angustias através da força que se estabelece em relações de poder, onde o mais forte aniquila o mais fracos. Mas que são todos fracos, e mesmo assim dominam para se sentirem menos dominados. Afloram a carne para se sentirem viris através do ato. O prazer não está no gozo, mas numa dor que também é sua. Pois que não lhes restam muito a não ser replicar o que lhe martelam a mente. De seus lugares de inferiores restam atos doentes que apenas refletem a enfermidade social. O bando se une na justiça dos injustiçados e amaldiçoam os impotentes porque estes também os espelham. Depois, cansados, fogem como lobos indefesos e arrependidos. Cães instintivamente saciados do nada. Mas não se pode exigir sanidade dos que não têm nada. Não pode exigir normalidade das pessoas que apenas passam, assim como de um governo que apenas se ausenta e de uma cidade que insiste em se fingir de viva.

Mais um corpo usado permanecerá inerte em meio ao lixo quando a noite cai sobre a cidade indiferente e desavisada. Já não haverá sorrisos débeis. O breu invadirá os céus e não haverá tropeços, não haverá reclamação. Ao longe, um galo cantará anunciando a esperança vã, pois que a luz se refará apenas para salientar um vermelho que escorre no verde mato. Do ventre ao mato. Do mato ao lixo. Do lixo aos vermes. Vermes que comem corpos para transformá-los apenas em restos de uma sociedade já putrefata e corrupta. Corpos, vivos ou motos reduzidos a dejetos de uma cidade que apodrece enquanto se mantém viva. O galo canta novamente. A brisa reclama movimentos. O céu chora sobre a violação do já foi sagrado. Depois, impiedosamente o sol se levanta. Mas, a menina não.

E agora sou eu quem caminha ébrio. Tomado por uma dor que sufoca e evidencia inércia diante do fatídico. Agora é minha própria carne que chora a dor dos desiludidos, dos incertos, dos impotentes. Os olhos salgam a boca. Agora eu passo, retornando por onde outrora passou a menina com restos de tecido que um dia foi amarelo. Agora as pessoas só não passam, mas me olham e se fingem penalizadas. Estão curiosas, mas não tocadas, pois que meus motivos e conflitos não são os seus. Na praça vasculho as famílias. Os olhos me desapontam por não acha o que procuro. Os meninos continuam no lodo, assim como os adolescentes, os adultos e os idosos que ali fixaram residências. Algo os abate e me abate. Baixo a cabeça perante a sociedade que me cruza. Um banho refresca pensamentos. A menina ressurge a mente. Desejo que amanhã esteja na praça. Ébria e trôpega. Uma forma de apaziguar minhas angústias e dívidas. Talvez sorria sem motivos, ou dos meus motivos. Talvez os leões se mantenham imponentes e dóceis, cuspindo fedores. Talvez a índia continue exuberante em seu banho de águas sujas. Talvez Clarisse suspenda o abajur para inspirar novos escritos. Novas críticas. Talvez sua voz ecoe sobre as desigualdades. Talvez a luz volte a todas as praças e ruas do Recife. Talvez o ano corra trazendo dezembro. Talvez a gente mude de governo. Talvez...

Um comentário:

  1. Epitácio excelente texto, tão real que sentimos na pele...conseguimos visualizar, sentir o cheiro e encher os olhos, o corpo, o coração de indignação....Nos leva sempre a refletir qual o meu papel na sociedade? E o que tenho feito para transformar essa realidade? Abração.

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