Há muito tenho chamado a atenção
para a proliferação das Cracolandias no centro do Recife. Finalmente o assunto
entrou na pauta da “Vênus Platinada”, revelando os efeitos e as dimensões do
crack junto à população desassistida, bem como as inevitáveis consequências para
a sociedade em geral. Assim como na frente do Museu de Arte de São Paulo –
MASP, São Paulo; ou na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro; em Recife o tráfico e
consumo do crack, aliado a outras drogas, tem se consolidado nas principais
ruas e avenidas do centro. Com o tempo novos territórios vão sendo demarcados,
invadindo praças, calçadas, becos e vias de acesso, bem abaixo de nossos olhos.
A permissividade autoriza o consumo descontrolado de uma droga que tem
empurrado homens, mulheres, adolescentes e crianças para o universo da
contravenção. A prostituição, bem como as situações de exploração sexual a que
são submetidas crianças e adolescentes tornam-se meios para aquisição da droga e
custeio da dependência como revelado também pela série de reportagens,
produzida pela Rede Globo Nordeste, exibida durante essa semana no NETV 1ª
Edição.
A iniciativa da emissora apesar
de tardia é louvável. As cenas chocam pela crueldade decorrente da falta de
políticas públicas eficazes e do descaso dos governos no que se referem ao enfrentamento
e combate. São homens, mulheres, travestis, adolescentes e crianças consumindo
drogas diariamente com o autorizo de uma sociedade também inebriada. As
reportagens trazem a invasão das praças públicas, não menos abandonadas, por
traficantes e usuários. É uma lástima chegarmos a tal situação. Mas, mais
lastimável ainda é o despreparo dos órgãos competentes diante do fenômeno. Em entrevista,
na semana passada, o sociólogo Hugo Acero Velásquez (Isto É 2247, 2012),
responsável por transformar a cidade a cidade de Bogotá em exemplo mundial de
segurança pública, afirmou que “o crime está organizado, as autoridades não”. Para
ele, a problemática dos grandes centros urbanos como Rio e São Paulo situa-se
no narcotráfico local, também chamado de microtráfico ou varejo do tráfico. “As
peculiaridades estão na profusão de negócio ilegais paralelos a essa atividade,
como a venda ilegal de armas, o contrabando, as mortes encomendadas, a extorsão,
o sequestro e o tráfico de pessoas”.
A lógica é que a contravenção
chegue sempre onde o Estado se omita. Isto é fato, e contra fatos não existem
argumentos! É assim com a violência urbana; é assim com a pirataria; é assim
com a exploração sexual de crianças e adolescentes; é assim com a corrupção.
Problemas sociais de alta ordem banalizados pela população inerte, alienada
inclusive de seus direitos enquanto cidadãos. Assim se dará também com a territorialização
do tráfico nas praças públicas, ruas, becos ou favelas de Recife. Para o
sociólogo, não reconhecer a crise da violência atual apenas torna mais difícil
sua solução. Verdadeiros governos paralelos vão se formando, ganham forças e se
consolidam no cotidiano de segmentos populacionais que se configuram como
passageiros de segunda classe. Sujeitos invisibilizados, principalmente pelos
interesses políticos. Não diferente da realidade recifense, este se torna o
retrato das cidades sem Governos, resultado direto de uma sociedade que se
mostra omissa em sua alienação política.
O tráfico, nos seus mais variados
segmentos – seja de drogas, de armas, de seres humanos ou de influência, tem
constantemente desafiado o Estado de Direito, evidenciando a urgência de
mudanças. O grande problema consiste no fato de que o mundo da contravenção é
articulado, enquanto que o Governo não. O negócio da contravenção é rápido e
estratégico, enquanto que o Governo, seja na esfera federal, estadual ou
municipal, têm se mostrado burocrático e lento. Penso, porém, que se existe uma
semelhança entre ambos, esta se dá na luta pelo poder. Ao mesmo passo que um
busca a ampliação das áreas de domínio sobre a população pelo estabelecimento
de novos mercados; o outro, busca pelo fortalecimento de espaços políticos,
muitas vezes, negociando cargos públicos, que satisfazem apenas aos interesses
e aos egos inflados de pequenos grupos ou sujeitos. Logo, o tráfico de
influencia política consolida as condições necessárias e propícias ao fortalecimento
dos demais segmentos contraventores. O Estado assume então o lugar de principal
violador de direitos, inclusive constitucionais.
Quem mora em Recife sabe que as
imagens das reportagens, por mais cruéis e brutais que sejam não revelam em sua
totalidade o flagelo vivenciado em nossas ruas e praças. São homens
desfigurados de qualquer semelhança humana, mulheres grávidas de misérias,
adolescentes feridos em seus orgulhos, crianças deformadas pelas condições
indignas de desenvolvimento saudável. Se existe um inferno, pode-se dizer que
com certeza se encontra instalado no centro da cidade. A contravenção e as
violências correlatas, com todas as suas consequências e impactos sobre a
sociedade, se consolidaram nas principais vias e ruas do Recife. Não se combate
a violência apenas com repressão. A segurança vai muito além das polícias, juízes
e presídios. Neste sentido, Velasquez (2012) ressalta que nos espaços controlados
pelo crime e pela violência existem mais do que criminosos, quadrilhas, venda
de drogas e delitos. Nessas regiões existem também crianças e adolescentes fora
da escola e em risco de serem recrutados pelo crime organizado; existem parques
abandonados; ruas mal iluminadas, sem lixeiras; e há principalmente falta de
serviços públicos. Em Recife isto também é fato. E contra fatos não existem
argumentos!
Logo, instalar mais uma câmera de
monitoramento na Praça Abreu e Lima, anunciada ao vivo, no NETV esta semana,
como medida de enfrentamento ao tráfico não resolve o problema em sua
totalidade. Muito menos, disponibilizar um veículo para transportar os usuários
até um determinado espaço para se alimentarem não ameniza as consequências do
abandono e descaso público. Falta qualificação profissional, falta
entendimento, falta compromisso e seriedade. Enquanto as estratégias se
pautarem em ações paliativas e emergenciais apenas fortaleceremos a
contravenção. Política pública é instrumento de garantia de direitos e não
material de propaganda política. Como cidadão de direitos quero ver as ações
acontecerem de forma continuada longe das câmeras de TV. Quero ver e presenciar
a efetividade de ações fundamentadas e respaldadas pelo conhecimento científico,
respaldadas pelas práticas exitosas. É urgente a aplicação dos recursos
financeiros, frutos dos nossos impostos, em ações de atendimento,
acompanhamento e assistência às famílias e sujeitos vulnerabilizados, não em
operação “enxuga gelo”. É preciso entender que a exclusão social é o nascedouro
da violência. E neste sentido, não existe violência maior do que profissionais
despreparados e desqualificados assumindo gestões públicas, que diante das
câmeras disfarçam desconcertos e incômodos por não terem respostas concretas à
população.
É um absurdo que o meu voto continue
sendo deturpado em essência e fundamento, transformado em ferramenta e/ou
instrumento de inconsequentes politiqueiros, porque é através dele que digo e
luto por uma sociedade mais digna e igualitária. Confesso ser exaustivamente
cansativo e desestimulante ver o dinheiro dos meus impostos ser aplicado em
falcatruas, alimentando o mercado das propinas, aliciando ideologias e
maculando a identidade nacional. Já basta de mensalões, mensalinhos, operações
porto seguro e tantas outras de igual teor! A corrupção é a grande mazela da nossa
sociedade. A transformação só se dará pela educação, pois fomos, e ainda somos
culturalmente forjados para fazer desta uma prática social. Corrompemos e nos
deixamos corromper por interesses particulares, alheios e/ou indiferentes às
necessidades e direitos que são da ordem do coletivo. Roubamos a dignidade
alheia por pequenos abonos, contribuições ou presentes “ofertados” com dinheiro
público, e ainda nos sentimos felizes e espertos. Ludibriar o próximo tornou-se
nossa meta. E nesse círculo vicioso abrimos mãos de nossos direitos e
negociamos nossos valores morais, éticos e sociais. Aprendemos e ensinamos o
favorecimento como moeda de troca, incentivando a lei da vantagem, que se
traduz em safadeza e malandragem, em seus sentidos mais pejorativos.
Aproveitem a proximidade do natal
e reflitam sobre os próprios conceitos e valores morais e éticos. Pregar a
transformação do mundo sem rever conceitos pessoais e assumir as
responsabilidades que lhes cabem é falácia, utopia e politicagem.