O dia começa cedo. O sol
arde à pele. O ar abafado fica mais quente com as ruas repletas de camelôs. Chegou
o período natalino. A cidade não muda e a calamidade é a mesma. O lixo invade as
ruas, as canaletas transbordam, os esgotos correm a céu aberto. Apesar da
precariedade urbana, nada impede o consumo insano! Lojas repletas, Shoppings Center
congestionados, calçadas tomadas por ambulantes. Afinal, é preciso comprar o
natal, ainda que as dívidas se multipliquem em parcelas intermináveis pelo
resto do ano.
Pessoas amontoadas continuam
dormindo em meio a papelões e pés estressados. Muitos se tornaram notívagos
devido ao uso de drogas. Para eles o natal não chega! Animais perdidos se
juntam a moribundos, urinando e defecando nas vias. O mijo se junta a lama e a
sujeira que a prefeitura há muito não recolhe. O odor torna-se insuportável,
quase tóxico. Mas, nada interrompe o frenesi consumista do natal! É preciso
pressa porque já não existe comemoração sem presentes. E presente tem que ter
valor comercial agregado. Por isso, pessoas se esbarram, se ferem e se xingam.
O transito reclama aos apressados enquanto bicicletas sonorizadas atropelam
crianças e idosos. Mulheres perdem sandálias na pista, quebram saltos nas
calçadas esburacadas, quebram pés em gelos baianos, mas torcem o nariz aos
aperreios. Na modernidade aprendemos que no natal se reverencia o sofrimento!
Patrulhas cortam avenidas
em alta velocidade, motos oficiais disparam sirenes, guardas apáticos apitam. Sempre
há a quem perseguir, principalmente quando a multidão é evocada a invadir as ruas. Compra-se
de tudo: árvores de plásticos, cordas de luminárias emborrachadas, bolas
natalinas que não se quebram, papai-noel puxando henas que mais parecem
jumentos famintos, guirlandas cafonamente repicadas. É que nos dias de hoje, o
natal se tornou tão artificial quanto os sentimentos correlatos. Algo que se
compra, mas não necessariamente se vivencia. Mas isso não importa, porque no
mundo mercantilizado os valores se invertem, o “ter” torna-se superior ao “ser”.
As horas passam. Vendedores
anunciam promoções nas portas de lojas. O inferno toma conta da cidade. E nada
alivia o estorvo do natal! Ruas exalam fedores. O suor encharca roupas e
corpos. Senhoras se abanam cansadas. Meninos choram o incômodo. Mas nada para
vence a histeria comercial do natal! Mãos puxam e rasgam tecidos. Em movimentos
ensandecidos atingem rostos. Bocas gritam impropérios. Palavrões agridem
tímpanos. Mas nada, nada consegue amenizar a sandice popular. É prá isso que existe
o 13º salário. Para comprar as alegrias!
Uma mulher branquela e feia
bate na cara do vendedor. O segurança entra na confusão. O gerente é chamado. A
agressora é empurrada na rua. Outra mulher morena lhe diz desaforos. Viu a
bolsa primeiro e quer a mercadoria. Elas se atracam. Os cheira-cola riem e
dançam agitados. Policiais os afastam. As mulheres correm unidas e voltam a se
agarrar na esquina. Mas nada, nada mesmo parece incomodar o vai e vem do natal!
De repente, um corpo cai do edifício Sumaré. Não é primeiro corpo que despenca
dos ares no centro do Recife. Gritos de horror ecoam na avenida. A multidão,
como urubus, se alvoroça ao redor dos frangalhos, sobre o que restou de um
homem que só queria comprar o natal. Algumas pessoas desmaiam e atrapalham o
socorro que não chega. Uma mulher chora como se conhecesse o morto. Minutos
depois entra em uma loja para escolher sapatos coloridos. Eis uma prova de que
o natal também reconforta!
Um grito desesperado atravessa
as ruas. Pessoas correm desnorteadas sem rumo. Ninguém sabe ao certo do que se trata,
mas todos correm da catástrofe anunciada. Uma garota nervosa engole uma garrafa
de água enquanto consome as próprias lagrimas. As pessoas assuntam o motivo, se
mostram preocupadas. Outra prova de que o natal sensibiliza os corações!
Param-lhe um ônibus. As sacolas impedem sua subida. Alguém se oferece para
segurá-las. Ela teme ser roubada, e por isso, se espreme na multidão amassando
os presentes.
Do interior do inferno
metálico ouvem-se gritos. Sobre a lataria superior meninos entorpecidos de cola
praticam surf. O natal para eles também nunca chega. A população se alvoroça. O
motorista sai em disparada. Os meninos cambaleiam, mas não caem. A polícia dá o
comando. O ônibus freia abruptamente. O povo grita enquanto meninos escalam
janelas, atingem o asfalto e somem em becos. O susto passa. A polícia volta. O
ônibus segue seu destino. Enquanto isso, na calcada um homem lava as frutas
aquecidas pelo sol. Uma criança abocanha uma maçã. A mãe se acalma e o puxa pelos
braços. Não se arrasta assim nem um animal. O menino tropeça. A maçã cai no
chão. Ela apanha e lhe entrega enquanto encomenda as luzes que vão colorir sua
casa.
Novo corre-corre. Um jovem
avança sobre os carros em movimentos. Leva uma bolsa feminina entre os braços.
Uma moça segue atrás. Ele some na multidão. Ela chora sozinha. O sol aumenta. O
calor abafa mais ainda. A multidão se multiplica. E a cidade ferve
enlouquecida. A suada se espalha. Ninguém se entende, mas todos se comunicam. A
linguagem do natal, assim como a do mercado, se mostra universal, pois que se
resume ao quanto custa. Uma senhora de boca cheia bate no filho. Outra reclama
o ato. Início de novo rebuliço que se apazigua com o tempo. Alguém pede
esmolas. Os olhares se viram. Afinal, os dias são de preparativos e
solidariedade é coisa para o grande momento. Não se antecipa sentimentos
natalinos.
No meio das incoerências natalinas, pelo menos um milagre
aconteceu e a Simone não cantou a melodramática, chata e tradicional melodia de sempre. Mas
como nem tudo é felicidade, o Rei do comercio fonográfico trouxe o compacto
duplo de volta à moda. Três milhões de cópias em duas semanas e a multidão fez
dele “o cara” do ano. Agora é torcer para que no especial da TV ele
apareça vestido de papai-noel. Para que todos juntos, mais uma vez, cantem emocionados: “esse
cara sou eu”. Talvez alguns chorem diante da grande tela nova. E seguindo o
script se abracem e desejem felicidades mútuas. Talvez até saiam as ruas
distribuindo os restos da ceia ou presenteando criancinhas pobres. Afinal de
contas esse é o espírito do natal! Agora, se você ainda não comprou o seu é
melhor correr para o centro do Recife. Na bagunça urbana promovida pela atual
gestão sempre cabe mais um maluco por natais fabricados em série.
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