quarta-feira, 17 de outubro de 2012

TRÊS MULHERES E UM HOMEM?

QUATRO JOVENS ANDANDO PELAS TARDES DO RECIFE

O sol estava quente e a tarde abafada. Apesar da claridade nuvens escuras se amontoavam no céu sinalizando mal tempo. O calor subia do asfalto e se juntava ao monóxido de carbono asfixiando garantas. Carros somavam filas enormes e impacientes reclamavam passagem. Era o Recife congestionado em ruas estreitas. Era a cidade paralisada, esquentando os miolos. Ando buscando sombras, fugindo dos raios que queimam a pele. Chegou o verão, e agora um amontoado de gente parece elevar ainda mais a temperatura. Apressadas enxugam o suor nas palmas das mãos, secando-as nas roupas. Essa gente não tem mais olhos? Em seus lugares, duas películas escuras, que hora assumem formas arredondadas, hora ovais, quadradas ou retangulares, substituem as iris. Todo mundo fica marrom diante destas lentes. Olhando assim, a cidade parece acromática, como num postal antigo, numa foto amarelada pelo tempo. Tudo assume um tom âmbar. Até as pessoas ficam pálidas.

A minha frente visualizo três mulheres e um homem que se mostram indiferentes a ebulição. Parecem absorvidos em suas histórias, em suas cumplicidades. Três mulheres e um homem andando pela tarde. Nada mais corriqueiro e desinteressante. Só mesmo quem não tem o que fazer poderia se prender a pequenos detalhes. O que seriam eles? Amigos? Não nego que a curiosidade me apressou os passos. Confesso até que tenho essa certa mania de bisbilhotar vidas alheias. Certo voyeurismo, comum aos metropolitanos. Me pego indagando sobre suas vidas. Para onde estaria indo o tal quarteto? O que fariam após sumir de meu ângulo de visão? Atenho-me as silhuetas na busca de identificar identidades. Três mulheres e um homem à frente, um bisbilhoteiro atrás aguçando os sentidos.

Uma era loura e cheia. Tinha cabelos curtos, na altura dos ombros, alisados a pouco, que lhe conferiam um ar arredondado a face. Usava um short apertado que se mostrava pequeno para conter nádegas tão fartas. A segunda, ao seu lado direito, era morena, alta, de corpo esguio. Tinha pernas longas e bem torneadas que se perdiam nas bainhas de um mini vestido de lycra, pinçado, que lhe revelava as costas. Os cabelos balançavam ritmados ao andar requebrado. A terceira era negra e de baixa estatura, mas parecendo uma criança. Uma bermuda lhe cobria as coxas, afunilando sobre os joelhos. Uma camiseta de estampas coloridas se ajustava as curvas da cintura. Nas costas, uma bolsa do tipo mochila dava vida a um pequeno macaco, cor de rosa, que balançava preso ao zíper. Seus cabelos eram crespos, penteados para o alto, mas parecendo um pica-pau. Por fim, no lado extremo da linha, o rapaz parecia forte devido a quantidade de roupas sobrepostas. Usava uma camisa azul, de jeans amolecido, sobre uma camiseta de malha preta com mangas longas, mal enroladas até os cotovelos. Tinha cabelos curtos e escuros, quase totalmente encobertos pelo boné vermelho. As pernas, levemente arqueadas, pareciam perdidas no interior de uma calça larga que lhe descia até os sapatos.

Na verdade eram pessoas comuns. Não havia nada de atrativo ou estranho que pudesse despertar minha atenção. Se não fossem tão jovens diria que bem poderiam compor uma família tradicional, formada por uma mãe, duas filhas e um pai. Mas não eram. Seriam irmãos ou apenas amigos? Acelerei novamente os passos na tentativa de alcançá-los. Aproveitei o pretexto de que andavam em linha para não ultrapassá-los. Na verdade nem haveria espaço, caso não quisesse esbarrar em um deles. De repente uma voz anasalada pontuou: - “Então a gente se encontra mais tarde no shoppen! A senhora vai, né môna?” Era a criança negra quem falava enquanto atravessava, em sentido a Rua José de Alencar, diante dos carros que continuavam presos em mecha lenta. “Só chego lá pras oitcho hora”, gritou a loura em resposta. A vozes peculiares aliadas aos dialetos específicos, me aguçaram a atenção. A conversa continuou no mesmo tom jocoso e brincalhão. “A pequena é foda mesmo. Prá ela não tempo ruim”, afirmou o rapaz. “Por isso que chamam ela Bichinha Duracel”, completou a morena de pernas longas. “Agente pode esperar na tua casa? Minha boysinha só chega lá pras seis e meia. Vou pegar ela no Mustang”, voltou a falar o rapaz. “Tu tá gamadão mesmo broder”, riu a loura, do outro lado. “A menina é maneira, é de responsa”, ele completou taxativo.

O trio agora fazia sinal de entrar a direita, pela Rua das Ninfas. Era preciso me adiantar, a fim de visualizar seus rostos. Aproveitei o momento de um abraço coletivo, que acompanhado de uma longa e alta risada chamou a atenção, e passei rente a loura. Disfarcei observar a varanda de um prédio próximo e encarei rapidamente os três. A loura era uma mulher-vaginal; a morena era uma mulher-peniana; e o rapaz, um homem-vaginal. Traduzindo, para evitar confusões, aquele trio de jovens era formado por uma mulher, uma travesti e um trans-homem. Logo, a negra Duracel era um jovem gay. Havia por fim, confirmado minhas hipóteses. Parei e pensei: É isso, Recife está pronta. A diversidade imperava tranquila e fluidas pelas ruas da cidade.

A tarde estava quente e o sol abafado. Apesar das nuvens escuras se amontoarem nos céus a claridade sinalizava bons tempos. O monóxido de carbono que se juntava ao calor do asfalto parecia não mais asfixiar aquelas garantas livres. Os carros impacientes somam filas enormes, mas não reclamavam suas passagens. É o Recife, que apesar de congestionado não se mostra estreito. É a cidade que não mais paralisa diante das diferenças e nem tão pouco esquenta os miolos. As minhas costas, quatro jovens se mostravam indiferentes e em ebulição. Absorvidos em suas cumplicidades históricas. Duas mulheres, um gay e um homem andando pela tarde. Nada mais corriqueiro e desinteressante. Só mesmo quem não tem o que fazer poderia se prender a pequenos detalhes.

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