sexta-feira, 9 de março de 2012

UM GRITO DE INDECÊNCIA SECULAR



NOVOS [?] RETRATOS DO RECIFE.

Em doze de março, segunda-feira próxima, Recife comemorará seus 475 anos. Hoje, nove de março, o Jornal do Commercio estampa na capa uma nova fotografia da cidade. Nela não se vêem os tradicionais casarios históricos ou mesmo as belas praias mansas e mornas do litoral urbano. É uma foto mais crua, desprovida de beleza ou encantos. Em contra posição a imagem revela uma realidade que se tornou comum e corriqueira. Uma família em descanso em uma praça pública. Nada mais bucólico e poético pensaram os apressados românticos. Mas o problema não está no ato, e sim no fato. A foto torna-se então mais que artística, pois que em si trás conceitos que revisam preceitos. Família, crianças, praças, gestão pública e miséria, aspectos entrelaçados por um único fenômeno: a dependência química. Mais que isso, a foto evidencia recortes de etnia/raça, classe social e geracional, abrindo espaço ainda para se pensar questões de territorialidade.

Segundo Jorge Cavalcanti [JC, Caderno Cidades, p.4, 2012], em matéria de uma página, intitulada: “Entregues à Própria Sorte”, “Eles estão sempre por aí. Aos montes e, inevitavelmente, na companhia de um tubo de cola e dos efeitos mais visíveis do crack sob o corpo”. Sim, eles estão sempre aí e acolá. Não têm paradeiro certo, pois que são vidas insertas e desprovidas de dignidade. Desprovidas de tudo, menos da sorte, pois que esta pertence ao destino e não se configura como direito. Pessoas que encontram em praças sujas e descuidadas, como também em ruas e becos fedorentos, o que lhes restam como abrigos. Tornam-se invisíveis aos olhos civis e públicos. Por isso alerta o jornalista: “Você pode não notá-los. Por pressa, por desatenção e até por conveniência. Mas eles continuam por aí”. O aviso soa como presságio de perigo. Para quem? Numa concepção mais rápida perigo salienta a existência de potencial agressão ou agressor. Neste caso específico, quem agride ou será agredido?

Dias atrás abordei aqui o dilema das muitas “meninas que passam e morrem nas ruas do Recife”, destacando a situação da população em situação de rua na Praça Maciel Pinheiro. A praça está fechada para restauro. Tapumes em madeirite impedem o acesso aos inexistentes jardins, mas não impede a proliferação e manutenção de famílias desassistidas. E a Praça da República? Até o começo desta semana permanecia interditada pelo camarote da Rede Globo. Há quanto tempo mesmo o carnaval acabou? A Praça do Parnamirim congrega quantas famílias? E a Joaquim Nabuco? Alguém se lembrou da Sérgio Loureto? Será que a Praça Chora Menino tem famílias abandonadas? Eu sei que na Praça Oswaldo Cruz tem. Na pracinha da Soledade e do Riachuelo também. Será que estas também serão restauradas? Somente as praças ou as vidas que delas dependem diretamente? Será que já começou a campanha eleitoral? Será que dará tempo para maquiar o que se perdeu, ou apodreceu, durante quatro anos?

Todos os dias se vêem crianças soltas em vidas e presas a tubos de cola, ou a cachimbos de crack, nos gramados sujos da Aurora. A Av. Arthur Lima Cavalcanti está em obras para desafogar o transito. Porém os mangues continuam congestionados de crianças e adolescentes em situação de exploração sexual e dependentes químicos. Quando começaremos as obras para restaurar seus direitos de cidadania? Nossas praças se transformaram em territórios dos desprovidos, é verdade. Mas, será necessário entender que o processo de territorialização desorganizada, muitas vezes, se dará pela falta de acesso as condições dignas. E não estamos falando de invasão dos espaços públicos ou pudicos da cidade. Estamos falando do escoamento de uma parcela da população que procura, ou melhor, só encontra abrigo as margens.

Segundo informações da Prefeitura, exite atualmente 1.500 pessoas em situação de rua no Recife [ver reportagem]. Não serão mil e quinhentas famílias? Só embaixo do meu prédio já contabilizei mais de quinze. Alguém já foi na frente do Habbibi`s? E na frente do Lojão dos Calçados? Passaram em frente ao Atacado dos Presentes? Na Loja Riachuelo? No Banco Santander? Fica então a dica para quem desejar conhecer e melhor contabilizar à noite e a madrugada da Av. Conde da Boa Vista. Como diz Cavalcanti [JC, 2012], “não precisa procurar muito”. Eles e elas estão por toda a parte. O problema é que a noite todos os gatos são pardos, e talvez passem despercebidos por estarem misturados a cachorros e ratos. Basta olhar as transversais e paralelas.

Que cerca de 70% desta população possua casa [ver reportagem] até se entende ou aceita. Isso já é sabido de todos. mas o fato não se justifica por si. E muito menos se auto-explica. A questão é entender porque as casas nem sempre se revelam como espaços mais seguros e acolhedores do que as ruas. Neste contexto entende-se que o desafio é maior e tem raízes mais profundas. É preciso trabalhar a família e não individualizar ou particularizar o problema. O atendimento é na base. É preciso rever o processo de socialização primária. Assistir a família é assistir ao indivíduo, e consequentemente a sociedade.

Também é sabido que a mendicância é um problema crônico e cultural de nossa cidade. Tanto que o retrato atual revelado pela foto de uma família negra instalada na Praça das Cinco Pontas, não difere do apresentado pelo professor argentino que viveu em Recife entre os anos de 1960 a 1962, publicado em “Orgia – Os Diários de Túlio Carella, Recife 1960 [São Paulo, 2011]. Não nos bastam descupas ou argumentos fossilizados. Esperamos soluções concretas. O fato é que se cinquenta e dois anos não foram suficientes para se concretizar políticas publicas mais eficazes, talvez nos seja necessários mais 475 novos anos para repensá-las. Como não estaremos vivos até lá, nos consola pensar que reportagens como estas, bem como as repetitivas denuncias que tenho publicado neste espaço, possam ao menos servir de referencia ou alento a possíveis gritos contra a indecência que se fará e se faz secular. E que as praças continuem sendo do povo.





FELIZ ANIVERSÁRIO RECIFE!

Um comentário:

  1. Boa Noite, Epitácio.


    É realmente lamentável o que nós vemos em quase todas as praças de grandes e médias cidades desse nosso imenso Brasil. A poesia de Castro Alves onde “A praça é do povo como o céu é do condor”, infelizmente assumiu uma nova roupagem. Há uma conotação diferente no ar. A praça é do povo - que não tem onde ficar. A presença de famílias inteiras morando nas praças retrata nossa triste realidade. E não há novidades no fato. A ausência de compromisso político de nossos governantes deu azos à desesperança, a indiferença da grande maioria das pessoas, que agindo assim, aliam-se àquele a quem tanto criticam. O romantismo que reserva o céu ao condor, deu lugar à angústia. No mínimo temos que nós conscientizarmos de que fazemos parte do cosmo, o que acontece a um, cedo ou tarde refletirá em todos. É afinal será mesmo que o sol nasce para todos? Maria de Lourdes

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