terça-feira, 27 de março de 2012

A NORMA E A LEI - A REGULAÇÃO DOS CORPOS



Numa livre reflexão sobre a construção dos corpos sou levado a pensar sobre duas instancias poderosas que se sobrepõem, e se impõem, aos homens e mulheres: a norma e a lei. Penso que a primeira poderia ser entendida como um conjunto de regras estabelecidas pelos membros de um grupo a fim de garantir certa regularidade e controle nas relações sociais. Também como aquilo que se estabelece como base ou medida para a realização ou avaliação de alguma coisa [Aurélio, 2012]. Logo, assume o sentido de princípio, preceito, regra ou lei. Servirá como modelo ou padrão para a regulação das condutas e comportamentos aceitáveis dentro de uma determinada comunidade, bem como para controlar os corpos e os desejos e prazeres que deles possam advir. No sentido dos corpos, a norma estabelece a normalidade, que representa a qualidade ou estado de normal. Gramaticalmente, normal, que deriva do latim “normale”, se traduz como tudo que é segundo a norma. Assim, normal se torna o que é habitual e natural para uma determinada cultura. No Brasil a norma estabelece o “ser homem” e o “ser mulher”, bem como suas atribuições e representações correlatas. Cria-se então uma regra ou doutrina, no sentido de ensinamento, do que é ser homem e do que é ser mulher pautada nas diferenças anatômicas e fisiológicas propostas pelo paradigma biologista.

Por sua vez, entende-se lei, também derivada do latim, “lege”, como obrigação imposta pela consciência e pala sociedade. Ainda, como regra do direito, ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para manter, numa comunidade, a ordem e o desenvolvimento [Aurélio, 012]. Neste sentido, a lei estabelece a norma como verdade máxima e útil a vida em sociedade. Logo, não existe sociedade sem lei, pois que sem esta não existirá desenvolvimento. Neste sentido, o Estado torna-se uma instituição poderosa na regulação dos corpos, e também das sexualidades. Muitas vezes respaldados pelas doutrinas religiosas e científicas encontra os meios para estabelecer controles sobre o corpo e a corporeidade, ditando os conceitos de normalidade e anormalidade que serão introjetados pelos membros de um determinado grupo. Logo, a lei torna-se a representação do pensamento de um povo sobre um determinado assunto, aprisionando-os em paradigmas sociais. Se a norma surge da cultura, respaldada pelos ensinamentos doutrinários dos antepassados, a lei torna-se a verdade máxima e consolida a vontade popular. Neste sentido as separações, exclusões, estigmatizações, sentimentos e formas de como lidar com as diferenças, que são criadas, estabelecidas e ensinadas a partir da norma social, tornam-se consolidadas enquanto instrumento legal, meio pelo qual se outorga ao Estado a regulação e controle do grupo social.

O importante nisso tudo é pensar que tanto a norma como a lei precisam ser contextualizadas. O que quero dizer é que ambas se encontram inseridas dentro de um determinado período de tempo e espaço, variando de sociedade para sociedade. Sendo sociedade entendida como conjunto de pessoas que vivem em certa faixa de tempo e espaço, seguindo normas comuns, e que são unidas pelo sentimento de consciência do grupo, ou corpo social [Aurélio, 2012], observa-se que tanto a norma quanto a lei são representações máximas de uma cultura. O conceito de cultura por sua vez também se torna contextual e situacional, ou seja, precisa ser entendido dentro de um determinado contexto local e temporal. Não existe uma cultura única, mas, várias e diferentes culturas. Podemos então questionar como diferentes culturas mantêm, ou se respaldam em padrões eixos para definir o que é aceitável ou não, tolerável ou ultrajante. Seria então como se com o tempo, os povos fossem construindo suas culturas a partir de uma “matriz original”. Especificamente nas culturas ocidentais parecem ter partido de uma espécie de matriz universal, da qual se originou ramificações que sofreram influencias geográficas, étnicas e sociais, entre outras, mas que mantiveram a concepção primitiva, ou seja, primordial, da origem humana. Neste caminho a matriz universal da norma sexual, por exemplo, se confirma inclusive nos dias atuais, através de certos posicionamentos relativos ao controle sobre condutas corporais e comportamentais. Em entrevista recente, o presidente da França, Nicolas Sarcozy, afirmou que “nestes tempos conturbados, quando a nossa sociedade precisa de referencia, eu não acho que devemos manchar a imagem desta instituição social e vital que é a do casamento entre homem e mulher”. Já em Recife, na semana passada, duas jovens lésbicas foram expulsas de um famoso restaurante por estarem demonstrando afetos recíprocos, ou seja, estavam se beijando em publico.

Se a norma social se estabelece a partir das demandas de um grupo, ou sociedade, observa-se que essa tende a se ajustar as novas situações. Torna-se flexível, até certo ponto, para possibilitar ajustes impostos pelo grupo de origem. Assim, o que poderia ser padrão para um determinado período de tempo, pode não mais corresponder às necessidades de funcionamento social nos dias atuais. Nestas situações, a atualização, ou adequação da norma servirá para a definição de novas leis, inclusive, invalidando antigas doutrinas. A instituição casamento, levantada pelo presidente francês como de vital importância a sociedade, é um bom exemplo desse processo de ajuste jurídico. A lei deve servir para atender as necessidades de um determinado grupo de pessoas que vivem de acordo com as normas comuns, que são criadas e aceitas pelo corpo social, a fim de estabelecer os parâmetros das relações saudáveis. Então, adéqua-se ou atualiza-se o conceito de casamento, mas mantém-se a concepção de sua importância e força social. Logo, a lei torna-se um instrumento a favor do homem social. Porém como representam doutrinas, entendidas como conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico, científico e etc, levam mais tempo do que a norma social para se ajustar as novas circunstancias e fatos sociais. Outro exemplo interessante refere-se ao conceito de família, que na nossa Constituição Federal, lei magna, faz referencia direta a um grupo social formado por um homem, uma mulher e filho[s]. Considerando que a mesma é data de 1988 [ultima revisão], observa-se seu descompasso com a realidade social brasileira, onde as famílias assumiram, e continuam assumindo, novas formas, dinâmicas e configurações formais. Neste sentido, a legislação brasileira não contempla ainda, de forma abrangente, o que habitualmente se acostumou a chamar, ou classificar, como “novos arranjos familiares”, incluindo-se as famílias aglutinadas, monoparentais e homoafetivas, entre outras.

Entende-se então que sendo a norma atualizada, o grupo social necessitará de um maior tempo para absorver, compreender, introjetar, e então adotar os novos princípios como regra natural, comum e habitual. Neste aspecto, ressalta-se o estudo realizado pela Universidade de Ontario, Canadá, que revela que quanto menor o grau de desenvolvimento intelectual de uma pessoa, ou de um grupo social, maior será sua tendência ao conservadorismo, manutenção de preconceitos e racismos. Será preciso entender que o tempo de adaptação de um determinado grupo às novas regras de condutas sociais irá variar de um para outro, considerando-se suas doutrinas filosóficas, científicas, políticas, e acima de tudo, religiosas. O grande conflito entre o estabelecimento da norma e a legitimação da lei apresenta-se então, quando a ultima passa a atender interesses particulares ou de pequenos grupos sociais, e não mais aos interesses coletivos. Os dois casos de intolerância as novas regras que contemplam os direitos de livre expressão dos membros da comunidade LGBTTI, citados acima, demonstram como a lei pode ser violada, ou deturpada em entendimento de uma minoria conservadora que luta pela manutenção do poder. Em ambas as situações, as justificativas se respaldam no antigo “atentado violento ao pudor” que ainda serve de aparato legal para legalizar um descontentamento dito coletivo, mas que, contudo, não se revela generalizado.

Penso então que mal pode haver em demonstrações públicas de afeto entre duas pessoas. Beijos e carinhos são regras comuns entre pessoas envolvidas em relações efetivas e sexuais. Existem regras sociais para o beijo em público, porém não existem leis no Brasil que versem sobre sua proibição. Porém as regras sociais nem sempre se traduzirão em normas gerais, ou seja, para todos. O beijo público é possível e aceito entre homens e mulheres. Contudo, entre dois homens ou duas mulheres, ou em suas variantes consideradas transgressoras, ainda causa espanto e certo desconforto. Mas não é o beijo que causa mal estar, mas sim os resquícios conservadores de doutrinas religiosas e científicas sobre a origem humana. É o reflexo de uma educação sexual pautada na procriação. Neste sentido, busca-se então uma brecha na lei para justificar o beijo como atentado ao pudor. Qual a solução para o impasse? Proibir todos os beijos ou modificar a norma social para abranger a todos os cidadãos e a todas as cidadãs de direitos, respeitando-se suas livres expressões, inclusive sexual, garantida legalmente a todas as brasileiras e todos os brasileiros? Não é o mesmo caso do casamento? Se estabelecermos o direito de todos e todas se relacionarem afetiva e sexualmente com outras pessoas, de forma livre e consciente, desde que não haja comprometimento das partes, o que impede o casamento entre pessoas do mesmo sexo? O que causa mal estar é o ato casamento ou a contrariedade e negação da doutrina sexual unicamente reprodutiva?

O conservadorismo incondicional da norma, que outrora atendia as demandas do grupo social brasileiro, talvez seja à base das tantas e quantas fobias sociais que enfrentamos atualmente. Não seria a homofobia, assim como a xenofobia, resultados de uma resistência individual, ou de pequenos grupos, em entender que o direito a diferença é constitucional, e por isso, garantido a todos e todas? Não existe direito pela metade. O direito não pode ser ofertado ou exclusivo a apenas determinadas classes ou seguimentos sociais, pois que assim, o próprio Estado, instancia a quem cabe a regulação da norma geral, torna-se o grande violador dos direitos. Os corpos ainda se mantêm no âmbito do privado, e não do público, apesar de milhões de tentativas de regulação social a que estão expostos, seja pelo Estado, religiões, famílias e ciências. Todos e todas nós temos o direito ao uso e usufruto dos prazeres proporcionados, pelo, e no próprio corpo. Cabe unicamente a nós a decisão de cuidá-lo, alterá-lo ou adequá-lo aos nossos desejos conscientes. Resumindo deveria caber a cada um, indivíduo consciente, o direito de beijar e casar, pois que estas são decisões do campo privado e não do público. São questões de fórum intimo. O que cabe ao coletivo é a convivência harmoniosa, meio pelo qual se atinge o desenvolvimento pessoal e social.

O que precisamos pensar é sobre o que se torna mais agressivo, um beijo entre pessoas do mesmo sexo ou o espancamento e morte de milhares de pessoas em nome da tradição? O que é mais grave e necessita de controle e intervenção estatal, a utilização do corpo privado ou a violação e aniquilamento deste através de um sentimento de ódio extremado que se respaldada por uma norma dita universal? Quem disse realmente que todos os homens e mulheres devem procriar? Se isso fosse um fato “natural” se tornaria uma lei universal e extensiva a todas as espécies. Assim, logicamente, não existiriam árvores que não dariam frutos. Não existiriam animais, tais como homens e mulheres estéreis. Ainda, quem disse que homossexuais, bissexuais e transexuais não podem reproduzir? A reprodução e geração humana não precisam ficar presas a um modelo doutrinário. O ser humano, assim como a natureza, encontra seus meios de se reinventar, descobrir e criar possibilidades. A norma é flexível, assim como nossas possibilidades e capacidade de se redescobrir e se constituir enquanto pessoas maduras e racionais.

A única e verdadeira norma geral é que todo homem e toda mulher tem a capacidade de racionalização. A inteligência é o que nos separa dos demais animais. Agora, inteligência é uma capacidade que precisa ser desenvolvida. E neste sentido, nada melhor do que a “desordem”, no sentido de quebra da norma, para se construir e reconstruir novos paradigmas que atendam em sua totalidade e amplitude as novas demandas sociais que se apresentam. Foi por isso, e para isso que criamos as normas, para serem questionadas e reinventadas quantas vezes se fizer necessário. É por isso, e para isso que as normas sociais respaldamos em leis, para garantir inclusive o direito a fluidez e flexibilidade social. É por isso, e principalmente para isso, que nos fizemos racionais, para criarmos um mundo melhor e digno para todos e todas.

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