sábado, 17 de março de 2012

BARBIES, MARICONAS, BOYS E CAFUÇÚS








MASCULINIDADES ESPELHADAS NA ACADEMIA DE GISNÁTICA

Olho-me no espelho da sala e logo penso: o que é um corpo? Um conjunto de membros e órgãos forma o corpo humano. A resposta, biologicamente satisfatória, não preenche a lacuna reflexiva. Um corpo não pode ser apenas um conjunto de massa e ossos que nos dá forma. É mais que isso, pois do contrário seriamos apenas matéria. Mas penso mais num sentido de corporeidade, numa referencia direta as qualidades do corpo. Sobre a existência de uma razão para que estes assumam formas e contornos que nos diferenciam e homogeniza ao mesmo tempo. Na luta pela individualização, por exemplo, lutamos para nos tornar únicos ao mesmo tempo em que ansiamos a igualdade. Esse antagonismo existencial nos faz recorrer ao desejo das categorias sociais. Sentimos-nos mais confortáveis quando pertencentes a um grupo. Então o corpo transforma-se em instrumento de pertencimento, não só no campo do individual, mas também do coletivo. Como toda categoria ou grupo social impõe regras e parâmetros, o corpo torna-se escravo da norma. O transformamos não por um agrado pessoal, mas por motivos sociais e mercadológicos. Ou seja, absorvemos modismos e introjetamos conceitos ditados pelo mercado capitalista. O corpo torna-se então objeto de consumo. Consome ao mesmo tempo em que será consumido para tornar-se objeto de desejo, nosso e do outro.

Assim, quanto vale um corpo? Atualmente penso que a valoração parece depender mais do outro do que de si. É o outro, e não nós, que estabelece os parâmetros de valia que se dará dentro de uma visão mercadológica. Perco-me em novos devaneios e mais uma vez me ponho a refletir: o mercado constrói os corpos, ou construímos o mercado para, a partir daí construir também os corpos? Economicamente mercado se configura como “conjunto de atividades de compra e venda de determinado bem ou serviço”. Logo, relaciona-se diretamente com comercio, que se estabelece a partir da demanda por determinado bem ou serviço. O mercado então constrói o corpo comercial, ou seja, estabelece os parâmetros que transformam o corpo em bem passível de comercialização. Neste aspecto, o corpo perde o caráter privado e assume um caráter público. Não pertence mais a si mesmo, mas também ao outro. Seguindo Lacan, confirmaríamos o postulado de que o olhar do outro nos constitui enquanto sujeitos. O olhar do outro nos transformará, ou não, em sujeitos desejados. Mas eis que também somos sujeitos desejantes. E este desejo se traduz em cobiça ao corpo do outro, forma pela qual atingimos a semelhança. Então o que realmente desejamos? O corpo carne que excita e desperta prazer sexual, ou o corpo matéria que se traduz em aparência de perfeição estabelecida pelo viés mercadológico? Mas o prazer sexual também não é comerciável? Logo, o corpo torna-se objetificado para se transformar em bem de consumo. Assim, não se deseja apenas o corpo aparência, mais também o corpo potência. Cobiça-se a potencia sexual do outro, revelada através da aparência física. Esta potência se traduzirá em virilidade. Virilidade que se torna a razão para a transformação corporal e desemboca na noção de corporeidade, ao se estabelecer qualidades ao corpo.

Penso então que, se nós construímos o mercado, consequentemente, construímos os corpos. Mas quem serve a quem? Se nessa confusão toda, o mercado cumpre o papel de moldar os corpos, estes por sua vez cumprem o papel de movimentar o mercado. Logo, corpo e mercado são indissociáveis. Um não existe sem o outro. Seguindo a mesma lógica, o mercado cria as concepções de sedução e desejo. Então, o desejo pode ser entendido como resultante da construção social. Desejamos o que nos é ensinado a desejar. Mas o que realmente se deseja? O corpo ou a carne, que é parte do corpo? Digamos então, se é que é possível uma divisão sensata, que corpo é essência e carne aparência. A primeira pode ser entendida como “aquilo que constitui a natureza das coisas”, ou seja, é substância. A essência constitui o cerne de um ser, assumindo um significado especial de natureza. Pode ser entendida ainda como espírito ou como existência. Por sua vez, aparência pode ser classificada como “aquilo que se mostra à primeira vista”. Refere-se à exteriorização, ao aspecto de um ser ou de uma coisa. Aquilo que parece realidade sem o ser. Neste sentido, aparência pode ser entendida como ilusão. Filosoficamente, simulação da realidade ou manifestação, total ou parcial, de uma realidade. Cantaria a Elis Regina, que “as aparências enganam aos que odeiam e aos que amam”. Na mesma lógica, a cultura popular postula que “a primeira impressão é a que fica”. Logo, o corpo que atrai é o aparente e não o essencial. Pelo menos num primeiro momento é a aparência e não a essência que provoca desejo e excitação.

Numa análise aproximativa, o corpo que agrada aos olhos reflete-se no espelho. Este dita à regra, pois nos mostra imperfeições, que muitas vezes passam imperceptíveis ao outro, e que se tornam possíveis de correção. E espelho não é igual em todos os lugares. Pelo contrário. O nosso é sempre mais sincero e pontual. Parece nos conhecer em detalhes, em aparência e essência. Talvez porque o privado nos dispa das censuras. A crueldade do espelho privado não esconde ou simula defeitos. Mas ao contrário, se revela taxativo e implacável. Já o espelho público é mentiroso e fingido, talvez porque o público nos revela em parte. Apenas em aparência. E nada é melhor em fingimento do que espelho de academia de ginástica. É neste espaço, que é público, que os corpos semi se mostram, mas não se revelam. Não é o corpo essência, mas o corpo carne que se reflete. E nessa histeria coletiva despreza-se a substância em nome da massa corpórea. Os exercícios físicos tornaram-se verdadeiros exercícios narcísicos. O espelho público desperta o desejo ao corpo alheio, ou seja, desperta o desejo pela aparência alheia. O outro se torna referencial de perfeição. E é na academia de ginástica que as categorias de pertencimento se evidenciam, ressaltando as diferenças de gênero.

Parto então para uma reflexão específica, e que muito me interessa - as masculinidades. Neste caso, poderia mesmo me referir às masculinidades espelhadas ou aparentes. Assim, na academia que frequento há certo tempo consigo distinguir claramente algumas categorias identitárias, que aqui classificarei com: as “Barbies”, as “Mariconas”, os “Boys” e os “Cafuçús”. Salientamos que nesta salada toda, os artigos definidos nem sempre revelarão identidades de gênero, mas, muitas vezes, sinalizarão orientações sexuais. Desta forma, para melhor compreensão tentarei um descritivo resumido de cada categoria. (01) O primeiro grupo, ou categoria, é representado por homens homossexuais de musculaturas quase simétricas. O corpo busca exibir, ou será transformado para expor uma exuberância milimetricamente calculada. O conjunto das formas segue uma regra da harmonia entre cabeça, tórax e membros. Faz referência direta a perfeição das formas da boneca Barbie. (02) A categoria Mariconas será composta por homens homossexuais idosos que parecem lutar contra a lei da gravidade. Alguns se esmeram na utópica possibilidade de atingirem o estilo Barbie, mas no máximo conseguem uma aparência aproximada da “Susy”. Em casos extremos a aparência conseguida poderá assemelhar-se com a da boneca “Wanderléia”. (03) A categoria Boys, inclui homens de orientação tanto heterossexual quanto homossexual, que revelam uma aparência física e muscular mais próxima do estereótipo do macho. Assumem a forma de cuscuzeira, alargados no tórax, e com cintura e pernas finas. Por fim, (04) a categoria Cafuçús, incluirá homens de orientação hétero e homossexual, que buscam por uma imagem não necessariamente musculosa, mas que exprima uma aparência quase que espontaneamente desleixada.

O que parece diferenciar os Boys dos Cafuçús é a estética corporal. Enquanto os primeiros primam por uma aparência “mais higiênica”, considerando os parâmetros atuais, que incluem depilação do tórax, axilas e pernas, incluindo em alguns casos, sobrancelhas bem feitas e afinadas; os cafuçús assumem uma imagem mais retrô, com peitos, axilas e pernas cabeludas. Assim, estas duas categorias podem ser subdivididas em metrossexuais e retrossexuais. Ambas aludem às dimensões de tempo e encontram-se inseridas no contexto cultural da ocidentalidade. Os primeiros usam tatuagens, que muitas vezes funcionam como estratégias para impor e justificar depilações em partes do corpo. Exagera em adereços, que incluem, via de regras, correntes metálicas no pescoço, alargadores e pequenos brincos nas orelhas, e os cabelos seguem sempre os modelos da moda atual, hoje com ênfase nos moicanos. De modo geral os Boys se constituem como opostos das Barbies, que também usam adornos mais delicados e discretos como pequenos brincos e argolas em uma das orelhas e anéis. Alguns podem ainda utilizar pulseiras coloridas ou acromáticas, confeccionadas em materiais mais rústicos, nos tornozelos. Porém, estes mesmos apetrechos podem ser utilizados pelos Cafuçús e Boys, e até muitas vezes, pelo grupo das Mariconas.

Independentemente das categorias de pertencimento, todos se relacionam com o espelho público, e provavelmente com o privado. Neste quesito, as Barbies e os Boys lideram a concorrência. Observam-se constante e repetidamente durante a realização dos exercícios físicos. Normalmente se exibem para si mesmo, contudo sempre verificam se estão sendo observados. Buscam o olhar do outro para confirmar ou aprovar a aparência construída. Alguns levantam a camisa, em movimentos aparentemente despretensiosos, momentos no qual aproveitam para examinar a barriga estilo tanquinho. Os movimentos também assumem a lateralidade durante o exame dos braços, peitoral e costas. Especificamente no caso das Barbies, o movimento rotacional serve como pretexto para análise e avaliação das nádegas, normalmente adornadas por shorts justos ou apertados. As coxas representam um divisor de águas entre as duas categorias. Supervalorizadas pelas Barbies, não recebem os cuidados merecidos pelos Boys, o que termina por lhes empregar um aspecto de atrofia muscular muito próximo ao provocado pela paralisia infantil. A indumentária torna-se importante para a construção e diferenciação das performances de gênero. Enquanto as camisetas dos Boys possuem mangas, as das Barbies valorizam alças que salientam decotes. Mas, nos dois casos, as peças serão sempre justas, servindo à revelação de muques e peitorais, às vezes moldados por silicone. São o que se poderia chamar de corpos bombados. Por sua vez, apesar de mais discretas no quesito vestimenta, as Mariconas em alguns casos, também se utilizam das roupas justas para formar quase uma segunda pele. Já os Cafuçús parecem optar por bermudas e camisas mais largas.


Dentro desse contexto de corporeidades possíveis e construídas, os corpos serão adequados as categorias para reafirmar as identidades de gênero. As Barbies transformam-se em “delicadas bonecas”, assumindo durante os exercícios físicos movimentos próximos as das bailarinas clássicas. Os boys, por sua vez, assumem o formato de pião, brinquedo grosso na parte superior e afinado em baixo, e desenvolvem durante os exercícios físicos movimentos mais bruscos, próximos aos lutadores de vale tudo. Constroem-se masculinidades dispares, pautadas em diferentes modelos de virilidades. No entanto, o foco da masculinidade abandona o pênis para se centrar em outras partes do corpo. As Barbies, em sua maioria, valorizam as nádegas, enquanto que os Boys, braços e peitoral. As Barbies se olham no espelho de cima a baixo, de frente e verso. Os Boys olham-se de cima ao meio. Mas precisamente do pescoço à cintura, e a mesma medida focal seve de referencia a análise para o verso do corpo. No que se referem as demais categorias, verifica-se que as Mariconas tendem a omitir partes do corpo que parecem desaprovar. Olham-se focadas em partes que valorizam, podendo variar entre pernas, nádegas ou braços, mas nunca o todo. Os adornos e indumentárias, como perucas, bonés, óculos escuros ou de grau encobrem imperfeições ditadas pelo espelho privado, na busca de se atingir uma avaliação mais amenizadas pelo espelho público. Enquanto isso, os Cafuçús tendem a revelar certa indiferença aparente diante da reflexão da própria imagem. Observam-se no geral, e vias de regras, se contentam com o que vêem.

Neste sentido, as academias de ginástica se consolidam enquanto segmento do mercado corpóreo. São verdadeiras fábricas de construção e montagem de corpos e identidades. Trabalha-se a aparência e não a essência, mesmo justificando suas existências numa perspectiva mais ampla de bem-estar físico e mental. Afinal de contas, é na perspectiva do corpo são e mente sã, que se abrem a fabricação das possíveis masculinidades, ainda que sejam apenas masculinidades aparentes e/ou espelhadas. Vendem ilusões reflexivas. Neste sentido, os espelhos públicos das academias iludem por ampliar massas corpóreas, que inevitavelmente se desconstroem no espelho privado. É como se saíssemos inchados da academia e fossemos murchando durante o retorno a casa. O resultado é sempre menor diante do espelho que nos conhece e reconhece. Espelho que nos impõe uma visão mais completa, exigindo a reflexão da essência, da substancia que nos forma enquanto natureza genuína. Se a essência se mostra adequada e congruente a aparência, a corporeidade se completa. Caso contrário, nega-se a profundidade reflexiva do espelho privado e observa-se apenas em superfície, que se configura enquanto campo e espaço da aparência que nunca se faz satisfatória em sua plenitude.

Talvez essa crise com o espelho privado, justifique a compra ilusória oferecida pelo espelho público. Em alguns anos, vi corpos harmoniosamente bonitos serem transformados em amontoados de músculos disformes. É como se existisse um profundo descontentamento com o que se compra e vende. Sucessivamente o espelho reprova a aparência atingida, o que exige sacrifícios físicos e compromete a dimensão emocional. São “Iincríveis Hulks” fragilizados. São Narcisos que se fundam nas próprias imagens, pois que as masculinidades aparentes não se sustentam. Porque ameaçam as identidades. Assim, chega-se a grande questão: quanto vale um corpo? Talvez a melhor resposta se dê no plágio do mercado midiático. Afinal de contas, “tem coisas que não tem preço, para o resto...” tem sempre um cartão de crédito. Mas tal como este, que se traduz em valoração virtual, apenas simbologia do dinheiro moeda, não é concreto; masculinidades e virilidades espelhadas nada significam se não em harmonia com a essência.

Diante do espelho da sala me questiono: o que é um corpo?





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