domingo, 25 de março de 2012

A TRANSEXUALIDADE E OS NOVOS MODELOS DE MASCULININO E FEMININO







TRANSEXUAIS - OS VIAJANTES SOLITÁRIOS.

Este mês tive feliz possibilidade de conhecer a história de vida de João W. Nery. Trata-se de uma autobiografia onde revela passagens marcantes de uma criança do sexo feminino, que aos quatro anos descobre sua transgressora identidade de gênero. “Viagem Solitária – Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois” é sem dúvida alguma uma grande oportunidade par se melhor conhecer o universo Queer, onde se encontram as identidades ditas marginais, ou seja, identidades que contrariam as normas do binarismo masculino/feminino que ainda norteia nossas sexualidades. Acima de tudo, uma grande oportunidade para se repensar no quanto nos tornamos escravos da nossa própria cultura. Difícil não se emocionar. Impossível não refletir sobre a crueldade com que condenamos quem se mostra “diferente” a habitar a marginalidade, a fim, única e exclusivamente, de garantir a supremacia da heteronormatividade.

João Nery era uma criança que se descobre em descompasso entre o corpo físico e o corpo essência. Nascido menina, logo se descobre menino. Dentro de uma cultura heterossexista, onde cruelmente os papeis e as identidades de gênero nos são ensinados a partir de uma norma que se respalda na sexualidade reprodutiva, descobre formas e cria seu próprio universo particular para vivenciar e construir sua masculinidade. Atravessa a infância e a adolescência de forma conturbada, encontrando refúgio na fantasia, mecanismo pelo qual passa a viver duas vidas paralelas, onde socialmente é visto como Joana, enquanto que na sua particular intimidade se reconhece como João. Em sua trajetória trava grandes batalhas onde se evidencia as dificuldades impostas a quem transgride as regras, e mesmo assim, tenta manter-se íntegro. Primeiro consigo mesmo e depois com seus desejos e os da sociedade em que se encontra inserido. O descompasso entre o corpo anatômico e o corpo subjetivado, ou idealizado, o atormenta. A busca pela adequação do corpo fisiológico a identidade de gênero torna-se sua meta. E a viagem solitária continua e permeia todos os processos cirúrgicos, realizados na clandestinidade, devido à falta de regulamentações legais e científicas, que nos anos 70, e início dos anos 80, ainda não reconheciam a transexualidade enquanto categoria identitária. O autor [re]nasce aos 27 anos, já adulto. Mas será preciso matar simbolicamente a identidade antiga. Será preciso apagar, ou aprender a viver com o passado para escrever o próprio futuro.

Neste sentido, não é preciso dizer o quanto o não reconhecimento de pertencimento a um determinado corpo, bem como o processo de exclusão social infringido aos “desviantes” da norma comprometem a auto-estima e o desenvolvimento saudável de qualquer ser humano. O desamparo condena a solidão, todo e qualquer transgressor. E é no momento da exclusão que se revela o requinte da crueldade humana. Devido à falta de aparato legal, o autor é obrigado a abdicar de sua carreira profissional como psicólogo; da carreira acadêmica, iniciada no mestrado; a situação socioeconômica, que lhe garantiam o cargo de professor em cinco faculdades. A sociedade moralmente tradicionalista estabelece o preço e o fardo a quem ousa desafiá-la. Poderosas instituições, como família, religião, estado e ciência estabelecem as classificações de normalidade e anormalidade, para categorizar e dividir pessoas. Assim, aprendemos a não aceitar as diferenças, seja estas de classe, étnica, religiosa ou ideológica, e principalmente, sexual. Dentro desse contexto nos tornamos frutos de uma cultura limitada e limitante em possibilidades de entendimento quanto à dimensão mais ampla da sexualidade. Não somos mais livres, se é que algum dia já o fomos, mas reféns de nossas próprias construções sociais, que logo cedo começamos a introjetar de forma anti-reflexiva e alienante.

Não paramos para pensar que, como disse Simone de Beavoir, “ninguém nasce mulher, aprende-se a ser”. Do mesmo jeito não se percebe que ninguém nasce homem, assim como não se nasce heterossexual, homossexual, bissexual, gay, lésbica. Como também não se nasce médico ou engenheiro, bom ou mau. Nossos corpos e nossos desejos são construídos para se adaptar a norma social. Não somos livres em essência, pois que não nos é permitido a magnitude das descobertas. Nosso processo de formação social torna-se pré-definido, conduzindo-nos a opções limitadas e limitantes de constituição pessoal. Nascido no Rio de Janeiro e vivendo em plena ditadura militar João Nery luta pela preservação da sanidade enquanto se depara com a inexistência de uma categoria identitária. A transexualidade só passaria a ser entendida e aceita enquanto expressão da sexualidade humana a partir do novo século. Nossa necessidade de pertencimento nos leva a identificação com o outro e com grupos sociais. Mas com quem, homossexuais e transexuais, masculinos e femininos, conseguiam se identificar quatro décadas atrás? Como desenvolver o sentimento de pertencimento quando se era encarado como aberração da natureza? Como sobreviver num ambiente hostil onde não se era reconhecido enquanto pessoa normal?

O quanto será que realmente mudamos e evoluímos nestes mais de quarenta anos que separam a primeira cirurgia de transgenitalização e os dias atuais? No universo científico é inquestionável os avanços. Mas nos campos pessoal e social, o quanto conseguimos caminhar no entendimento da sexualidade humana livre dos estigmas fisiológicos? Nossa educação não é ainda severamente marcada pelos rígidos papéis de gênero? Ou se é homem, ou se é mulher. Não existe meio termo, não existem possibilidades viáveis fora da norma, o resto é transgressão. “meninos brincam com bola e meninas com bonecas”, quem nunca ouviu essa máxima afirmativa popular, pelo menos uma vez, ou algum dia na vida? Como aprendemos a nos vestir, nos comportar, como falar e/ou reagir no mundo? A cultura nos é imposta de forma implacável. Desde cedo somos obrigados a aprender, decorar, introjetar e aceitar os códigos de uma ética moral que norteiam e nortearão para sempre nossas vidas e futuros. “Tem que ser, por que é assim. Sempre foi assim e sempre será assim, quer você goste ou não!”, quem nunca ouviu a reprimenda diante dos questionamentos transgressores? Sem dúvida a vida se torna mais fácil na adequação a norma, contudo, até hoje questiono se mais bela. Se já é difícil ser e se constituir enquanto homem quando se tem um corpo masculino, imagina quando o mesmo é preciso ser feito em um corpo feminino? Esse é o caso do autor, um viajante solitário, que se descobriu homem dentro de um corpo de mulher. Um homem honesto consigo mesmo, que resolveu desafiar o mundo para se encontrar inteiro dentro deste.

João Nery é um excelente exemplo de que transexualidade não se trata de um simples caso de homossexualidade. Não se trata apenas de um deslocamento do objeto de desejo, mas da constituição da própria personalidade, da essência de se constituir enquanto pessoa, enquanto sujeito, independente das regras impostas. Não era só o corpo que o incomodava por não corresponder a identidade, mas os papéis sociais previamente estabelecidos e organizados pela cultura, que como diria o grande poeta Cazuza, já vem marcada antes mesmo da gente nascer. E neste sentido, não se muda identidade de alguém. Mas o corpo é passível de mudanças, de ajustes e adequações. Fazemos isso cotidianamente e muitas vezes nem reparamos ou percebemos. Fazemos ginástica para aumentar a massa corporal, pintamos cabelos, implantamos silicone, fazemos cirurgias plásticas e corretivas. Incorporamos as tecnologias do corpo. E tudo isso prá que, a não ser adequar adequá-lo a nossa própria identidade e assim obter qualidade de vida? Transplantamos órgãos, recebemos transfusão de sangue, de medula e de células tronco. Isso já não choca ou incomoda, porque foi inserido e aceito socialmente. Por que passaram a ter respaldos científicos e jurídicos. O que incomoda e causa histeria coletiva quando se fala em cirurgia de transgenitalização é o tabu outorgado ao sexo. Aprendemos de várias formas, e por vários meios, a não falar de sexo. O sexo, e consequentemente a sexualidade se tornam temas do campo privado. É preciso esconder ou encobrir nossas dúvidas, anseios, e principalmente os desejos sexuais. É como se socialmente fossemos quase seres assexuados.

Em palestras e aulas que dou sobre sexualidade, por exemplo, consigo identificar comportamentos padrões de reação a temática. Primeiro o público silencia. Depois surgem as reações estanques, tais como: riso desconcertado; desvio do olhar; piadas despropositadas; e por fim, aprovação ou reprovação. Não aprendemos a falar sobre sexo, menos ainda sobre sexualidade. Talvez por isso se confunda tanto as coisas. É difícil sair do modelo reducionista do pênis/vagina, para adentrar no campo do desejo e das descobertas do prazer, que pertencem ao campo da subjetividade. Neste sentido, aprendemos a falar de ejaculação, mas não de gozo, ou orgasmos. Falamos de fuder, mais não de relações sexuais, que se estabelecem na troca de prazer mútuo, aja ejaculação ou não. Simplificamos ou ridicularizamos tudo aquilo que não entendemos ou dominamos. E agimos por puro mecanismo de defesa. A safadeza e o escracho muitas vezes substituem o conhecimento e a racionalização. Penso que se o desenvolvimento da sexualidade é fundamental ao desenvolvimento da própria identidade e caráter, somos ainda seres subdesenvolvidos ou não desenvolvidos em plenitude. Não podemos nos conhecer em verdade se desconhecemos nossos desejos. Não usufruímos da plenitude do prazer sexual por que renegamos partes do corpo em nome de uma cultura moral. De uma cultura falocêntrica e sexista. E neste sentido é sempre bom lembrar que o maior instrumento sexual que dispomos não é o pênis, mas a mente. É com ela que atingimos o gozo. É ela quem sensibiliza o corpo. É nela, e por meio dela, que se estabelece e se constrói as identidades. A mente não entende de pênis e vagina, mas de plenitude e possibilidades de desenvolvimento, livre de regras, livre de normas, porque se guia pelo “princípio do prazer” tão falado por Freud. Assim, quem não conhece a mente não conhece a si mesmo, logo não pode conhecer o próximo. Por esse viés, automaticamente não se pode julgar o que não se conhece, pois que sempre corremos o risco de nos tornar tolos e/ou ingênuos.

João Nery é mais que o primeiro transexual masculino [trans-homem] cirurgiado no Brasil, mas um marco para nossa história da sexualidade, cotidianamente construída e reconstruída para possibilitar os avanços humanos. Seu livro torna-se acima de tudo um exemplo de como a história deve-se ajustar ao homem, e não apenas o contrário. Ele subverte ao reescrever a história, que não é só sua, mas de milhares de pessoas que sofrem pela intolerância da cultura moral. Cultura construída por nós mesmos, para depois nos tornarmos vitimas. Vítimas de nós mesmos. “Viagem Solitária” torna-se então um excelente instrumento para reflexão, para se reconstruir concepções, ideologia e posicionamentos mais dignos e humanos diante do outro, e de si próprio. Assim, em total consonância com grande mestre Antônio Houaiss, “leiam-no e humanizem-se”.

Referência: Nery, João W. Viagem Solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. São Paulo, Leya, 2011.

2 comentários:

  1. Belíssima análise do meu livro!
    Para quem quiser obter mais detalhes, aqui vai:


    Você já leu meu livro que acaba de receber o segundo prêmio?
    https://www.facebook.com/pages/Viagem-Solit%C3%A1ria/205100982907932
    1 attachment

    Viagem Solitária
    Escritor. Autor do livro Viagem Solitária - Memórias de um transexual 30 anos

    ADQUIRA AQUI http://www.submarino.com.br/produto/110098977/livro-viagem-solitaria-memorias-de-um-transexual-30-anos-depois?opn=BUSCAPESUB&WT.mc_id=Buscape&utm_campaign=bp&utm_source=buscape&epar=102414

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