terça-feira, 7 de setembro de 2010

A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES - O CASO SAKINEH



















"Todos esses anos, o governo tentou me convencer de que eu sou uma mulher adúltera, uma mãe irresponsável. Não deixem que me apedrejem diante do meu filho" (Sakineh/2010).

QUESTÃO DE DIREITOS HUMANOS OU CULTURA?

Você provavelmente já ouviu falar sobre o “Caso Sakineh”! Não? Então talvez seja pertinente discorrer um pouco sobre sua história para que possam entender porque o considero importante para uma reflexão brasileira sobre violência contra mulheres . Sakineh Mahomadi Ashtiani é uma mulher de 43 anos, mãe de dois filhos, hoje acusada de adultério. Nada demais até aí, caso não tivesse o triste destino de ter nascido no Irã, onde adultério ainda é crime e por isso a mulher adultera torna-se alvo de violência. De fato parece que falamos de uma cultura machista, pautada no poder e na honra do homem (mas estamos falando do Irã ou do Brasil?). No ano de 2006, Sakineh foi condenada a 99 chibatadas por ter se envolvido sexualmente com dois homens, após ter ficado viúva com a morte de seu marido. Confinada no corredor da morte, há seis anos espera pela sentença final: “É como se me apedrejassem até a morte todos os dias” (disse recentemente Sakineh, em entrevista ao The Guardian, 2010).

Mas nesse mesmo ano, um dos seus “amantes” foi responsabilizado pelo homicídio de seu marido, e com a reabertura do caso, Sakineh foi condenada a morte. Por isso credita sua sentença capital ao fato de ser mulher, pois o homem que assassinou seu marido – e cujo nome não foi revelado – está livre da pena de morte porque o filho da iraniana o perdoou. Para ela, “a resposta é simples. Tudo isso está acontecendo comigo porque sou mulher. Eles pensam que podem fazer qualquer coisa a uma mulher neste país. Por causa deste governo, o adultério é considerado um crime pior do que o assassinato – mas não para todo o mundo. Um homem adúltero pode nem sequer ser preso, mas, para uma mulher, isso é o fim do mundo” (acreditam que se ela tivesse nascido no Brasil há alguns anos atrás seu destino teria sido muito diferente? será que em nossa sociedade, ainda hoje, se permite que mulheres sejam assassinadas por comprometerem a honra de seus maridos?).

“Vivo num país em que as mulheres não podem se divorciar dos maridos e são privadas de seus direitos mais básicos. Todos esses anos, o governo tentou me convencer de que sou uma mulher adúltera, uma mãe irresponsável, uma criminosa. Mas, com o apoio internacional, uma vez mais me vejo uma pessoa inocente. Não deixem que me apedrejem diante do meu filho", implora Sakineh (qualquer semelhança com nossas brasileiras será apenas mera coincidência?).

Apesar de todo o sofrimento e humilhação, o que tem chamado a atenção da mídia internacional consiste no fato (além dos envolvimentos políticos, claro) da mesma ter como sentença a execução por apedrejamento. E é incrível como em pleno século XXI consigamos assistir imparcialmente tal brutalidade, não? O caso tornou-se de repercussão mundial nos últimos dias, e hoje representa um grande problema diplomático que envolve a primeira dama francesa, Carla Bruni; seu marido e presidente da França, Nicolas Sarkozy; o governo brasileiro, através do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva; a Anistia Internacional, que luta por direitos; A ONU, organismo internacional; a Igreja Católica (que nunca se posiciona verdadeiramente), e sociedade mundial, que se opuseram as barbaridades de um governo tirânico comandado pelo tão conhecido presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad (o mesmo que atormenta atualmente o mundo com seus experimentos bélicos a partir do aquecimento do urânio, base de tecnologia para a produção de  bombas atômicas).

Mas para se entender melhor toda essa confusão é preciso avaliar os motivos e suas implicações. Em agosto, o Jornal Iraniano Kayan publicou uma carta assinada por Carla Bruni, na qual solicita o cancelamento da pena de morte para Sakineh, e deixa claro que seu país não se mostraria indiferente a um crime bárbaro e que contraria os preceitos dos direitos humanos. A primeira dama, comprometeu-se ainda que seu marido iria defender o caso com afinco, e em nome da França, afirmou que não abandonariam Sakineh. Carla Bruni, conseguiu assim o apoio do mundo ocidental, porém teve como resposta do governo iraniano, sua carta publicada sobre a legenda: “As prostitutas francesas entram no tema dos direitos humanos”.

Piorando a situação, três dias depois o mesmo jornal reiterou suas criticas, alegando que: “analisando o histórico de Carla Bruni, vemos claramente os motivos pelos quais uma mulher imoral estaria defendendo uma iraniana condenada à pena de morte por adultério e por ser cúmplice no assassinato de seu marido e, de fato, ela mesma merece morrer”. E para amenizar os atritos políticos, o governo iraniano acrescentou ao crime de adultério, a acusação sobre Sakineh, de envolvimento no assassinato do marido.

Com a opinião pública chocada com tanta sandice e autoritarismo, o presidente do Brasil, em nome do governo, e por manter boas relações diplomáticas com o presidente iraniano, ofereceu asilo a Sakineh. A oferta foi rejeitada, ao passo que o mundo foi informado por um porta-voz do ministério de relações exteriores daquele país, que o presidente brasileiro não deveria se preocupara com o fato, uma vez que não tinha sido plenamente informado sobre o caso.

Nesta semana, a Anistia Internacional, declarou que embora no dia 4 de agosto a condenação à morte de Sakineh tenha começado a ser revisada no Tribunal Supremo iraniano, é muito provável que essa revisão seja apenas uma tentativa das autoridades do Irã para reduzir a pressão internacional. Desta forma, vem recolhendo assinaturas no site: www.actuaconamnistia.org, como forma de pressionar o governo iraniano a revogar a pena de morte da vítima (é fácil de acessar e torna-se importante sua participação, por isso, sugiro que dê uma paradinha nesta leitura e acesse o site).

Por sua vez, o Vaticano se “pronunciou” neste domingo, 05 de agosto, pela primeira vez sobre o caso, alegando que “o apedrejamento é uma forma de punição capital particularmente brutal”, e que sua forma de interceder junto às autoridades do Irã se dá pelos canais diplomáticos e não publicamente (isso é que exemplo de diplomacia, não?). Apesar dos apelos de um dos filhos de Sakineh, para que o Papa Bento XVI intervenha no caso, o Vaticano se limitou a divulgar que a “Santa Sé” está seguindo o caso de perto, e que poderá usar a diplomacia nos bastidores para tentar ajudar.

O caso de Sakineh ficou mais inda complicado, ao ser condenada por ter “propagado a corrupção e a indecência”, ao ter sua foto, sem véu, publicada em um jornal britânico. O jornal britânico Times, que publicou a fotografia em 28 de agosto, afirmou, no entanto que na verdade se tratava de uma ativista política iraniana que mora na Suécia, e não de Sakineh. Diante do público, e das implicações cabíveis, o jornal se desculpou pelo erro da informação através de uma nota aos leitores, em setembro ultimo (isso que é ética profissional, não?).

No dia 13 de agosto, Mina Ahadi, militante do Comitê Internacional contra Apedrejamento, solicita em carta aberta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, que o órgão internacional envie uma delegação ao Irã para revisar o caso de Sakineh. Também alerta que devido ao fato dela correr o risco de ser executada a qualquer momento, se faz necessário o envio de uma delegação da ONU ao Irã para investigar as acusações feitas pelo regime contra a iraniana e rever seu caso (será que a burocracia diplomática vai permitir?).

Tal documento destaca ainda que “hoje, há 170 pessoas condenadas à morte na prisão de Tabriz. Quatro delas são mulheres condenadas à morte por apedrejamento. Há dezenas de homossexuais presos em Tabriz. Entre eles, há um garoto de 15 anos também condenado à morte. Seu crime é ser gay. Ele divide a cela com homens adultos que são criminosos, e nos escreveu pedindo ajuda. Essas atrocidades ocorrem diariamente no Irã. Há uma necessidade urgente de uma ação global”.
Diante de todos esses fatos e implicações políticas e diplomáticas, estão em jogo outros fatores que precisam ser repensados. Primeiro, sobre o que é Direitos Humanos? E segundo, sobre o que é soberania nacional? Assim, penso que antes de tudo, esse caso nos serve como fonte de inspiração para reflexões sobre até que ponto se pode interferir sobre a cultura de uma nação. Se considerarmos que nossas leis ocidentais são mais justas e humanitárias, partiremos do principio de que tal sentença se coloca contrário ao principio fundamental do direito a vida. E parece ser neste argumento que nos apoiamos para que nos julguemos no direito de interceder e até impor nossas regras. Mas se consideramos a cultura local, talvez percebamos o quanto intrometidos nos tornamos por tais decisões. 

E aqui saliento que não me coloco contra tais intervenções, muito pelo contrário, acredito que a barbárie deve ser varrida da face da terra. O que proponho à reflexão se refere ao fato de se pensar sobre quem violenta quem? O governo iraniano com sua arbitrariedade, pautada numa cultura machista e conservadora/religiosa; ou nós ocidentais com nossas pretensas regras humanitárias e do bem viver? Talvez se o fato não se tornasse público, a comoção mundial não ganhasse tanta força, e Sakineh seria apenas mais uma entre as tantas iranianas apedrejadas até a morte.

E penso nisso, considerando a quantidade de mulheres assassinadas no Brasil, e principalmente em Pernambuco, que se transformam apenas em números estatísticos de governos. Não é a mesma situação, quando um determinado assassinato se torna mídia? Porém, penso naqueles que ocorrem diariamente e nunca chegam às manchetes.  Onde fica a comoção da sociedade e dos nossos governantes? Quais as estratégias e políticas públicas serão necessárias para se garantir o direito a vida a essas milhares de mulheres que são brutalmente “apedrejadas” e mortas por seus (ex)maridos, (ex)namorados, (ex)amantes, pais, irmãos? Será que no Brasil não existem centenas de mulheres, que como Sakineh, encontram-se encarceradas e confinadas em corredores da morte, nas quais se transformam suas próprias casas?

Como profissional da área social, destaco que basta apenas olhar nossas estatísticas para ver o quanto não temos sido eficientes na resolução de um problema, que para nós já se tornou domestico. Não validamos os direitos dos nossos próprios habitantes. Nossa rede de proteção a vida é frágil, mas oferecemos asilo “caso a iraniana esteja causando problemas ao Irã”. Talvez essa fala do nosso presidente diga do tanto quanto estamos despreparados para tratar a violência contra mulher. E nesta situação, a lógica seria pensar que o governo iraniano está causando transtornos na vida dela, e nunca o contrário (será que algum assessor mais sensível a causa poderia ter advertido isso ao presidente?). O pior, é que neste caso, nosso representante de governo parece ter preferido abrir mão dos mecanismos diplomáticos e oficiais que credenciam seriedade a nação, para lançar mão de um costume maleficamente incrustado em nossa cultura: o jeitinho brasileiro.

Prefiro acreditar que tal ato e posicionamento tenham sido motivados apenas por precipitação, e não por acreditar que as boas relações pessoais e políticas que mantém com o presidente iraniano fossem suficientes para dissuadi-lo de um posicionamento que parece ir muito além de uma vontade pessoal. E neste caso, penso se o fato de oferecer asilo não se torna reducionista, pois que não resolve a situação de todas as mulheres iranianas.

Acredito mais ainda, que desse jeito voltamos ao velho ditado popular que diz: “o sujo falando do mal lavado”. É só pensar a quantas mulheres brasileiras temos anistiado de suas situações de violência corriqueira? Como explicamos “diplomaticamente” a população, por exemplo, sobre caso Bruno? O fato de uma mulher ser devorada por cães, mesmo que depois de brutalmente assassinada, nos torna menos violentos e bárbaros do que os iranianos? E o fato de nossas mulheres serem reconhecidas internacionalmente como prostitutas as tornam menos ofendidas do que a Carla Bruni? E o que temos feito em relação a essas necessárias reparações quanto à dignidade dessas mulheres, bem como sobre seus direitos a vida e a liberdade?

Será que para nós brasileiros o que está em jogo verdadeiramente, neste caso, é a discussão sobre direitos humanos ou sobre política? Para o regime dos aiatolás, a condenação de uma mulher à morte por apedrejamento ou enforcamento sob a acusação de adultério e assassinato – “não é uma questão de direitos humanos”. Tanto que segundo o chanceler iraniano: “se libertar aquele que cometeu um assassinato agora é percebido como uma questão de direitos humanos, então todos os países europeus deveriam libertar os assassinos presos”.

O que penso no momento, é que considerando as condenações à morte a que temos submetido tantas das nossas crianças, adolescentes, jovens, mulheres, homossexuais e idosos (e mais uma infinidade de pessoas que sofrem pela desigualdade social), não nos tornamos grande referência para discutir o assunto internacionalmente. Principalmente com ações tão imediatistas e simplistas como a proposta pelo governo brasileiro. Talvez seja urgente (re)fazermos o dever de casa, e assim olhar para nosso próprio umbigo. Se aprendermos com nossas experiências talvez possamos sim, expressar nossas opiniões sem parecermos “intrometidos incoerentes”.

Acredito que para tentarmos ajudar a livrar uma mulher iraniana do apedrejamento (que logicamente se configura como barbaridade), nos seja necessário aprendermos primeiro a livrar nossas brasileiras das facadas, tijoladas, foiçadas, bofetadas, murros, esganamentos, asfixiamentos, queimaduras por ácidos, envenenamentos, afogamentos e tiros. E antes de julgamos a cultura alheia como ultraconservadora, machista e arbitrária, talvez seja pertinente refletirmos sobre nossa própria cultura social que parece ainda se pautar em conceitos conservadoramente déspotas e tiranos.   

Por fim, digo que antes de atirarmos a primeira pedra, devemos verificar se nosso telhado não é de vidro. Por isso, divulguem e se engajem em movimentos de defesa de Sakineh Mahommadi Ashitiani, nem que seja apenas para aprenderem a refletir sobre o significado das lutas por direitos humanos. Mas não esqueçam que no apartamento vizinho ao seu, pode haver uma brasileira em condições tão terríveis quanto. E que você pode dar o primeiro passo para tornar tal situação pública através dos equipamentos e instrumentos competentes. Afinal é com iniciativa que exigi providências e faz justiça, e isso é lutar por direitos humanos.

Assistam ao vídeo.



Fontes:
IstoÉ, nº 2130, 08 de setembro de 2010, pag.98

Nenhum comentário:

Postar um comentário