sábado, 4 de setembro de 2010

A CONSTRUÇÃO DOS CORPOS

























Mercado Público de Florianópolis/SC - 2010


REFLETINDO SOBRE NOSSOS CORPOS


Apesar de termos virado o mês, saliento que ainda preciso de algum tempo para atualizar os escritos. Dessa forma, aproveito para destacar a iniciativa de nosso órgão representante através da realização do I Encontro da Psicologia Pernambucana, ocorrido no período de 11 a 14 de agosto. Como já relatado, venho desenvolvendo alguns trabalhos de pesquisa e estudos relacionados a sexualidade e gênero, que aos pouco compartilho com todos através do blog. Nestes trabalhos tem tido o grande prazer de dialogar com um grande profissional, que considero mesmo, um dos meus principais e grandes mestres na psicologia social, Normando Viana, com quem divido posicionamentos teóricos, abordagens e metodologias. Acima de tudo, considero-o uma das pessoas mais generosas, com grande capacidade para dividir conhecimento.

Durante o Encontro da Psicologia Pernambucana, tive a imensa satisfação de, além de dividir com ele os trabalhos de planejamento, elaboração e desenvolvimento de um mini curso sobre a exploração sexual comercial de meninos, poder ouvi-lo em uma mesa redonda discorrendo sobre a construção dos corpos, em análise direta sobre corpo biológico, gênero e identidade sexual.

Considerando a importância e a pertinência de tal reflexão, solicitei ao mesmo a autorização para postagem no blog, o que faço a seguir, objetivando ampliar as discussões relativas a gênero e identidade, bem como oferecer-lhes novos pontos de vista e posicionamento metodológico. A todos, desejo boa leitura. E a Normando Viana, meu agradecimento especial.


Corpo biológico, gênero e identidade sexual

Artigo apresentado em mesa redonda no I Encontro da Psicologia Pernambucana, em 14 de agosto de 2010.

Psicologia (Cultural) do Corpo
Normando José Queiroz Viana [1]

O exercício aqui proposto inicialmente, o de pensar corpo biológico, compreende uma reflexão sobre qual corpo ou quais corpos queremos falar e sobre que biologia é esta, se aquela que encontra referente na perspectiva anatomo-fisiológica dos corpos ou a que leva em conta os aspectos bio-psico-sociais e culturais?

Penso que quando falamos sobre corpo é importante lembrar que aquilo mesmo que chamamos de corpo foi um modo que a sociedade ocidental se utilizou para falar da modalidade de experiência física dos atores com e no mundo, experiência esta que sofre inevitavelmente as marcas da sociedade que o produz (Rios 2004).

Assim, o que se define como corpo pode ser entendido como: [...] ferramenta e invólucro de uma mente/razão; instrumento de labor; integrante dos arsenais postos a serviço da reprodução da espécie e da reprodução do capital; corpo/carne formado de instintos que precisam ser controlados para que a ordem natural e/ou sagrada seja mantida; anatomo-fisiologia incessantemente investigada pelas ciências médicas que vêm buscando estratégias para mantê-lo saudável e funcionando; corpo-forma, constantemente moldado para adequar-se a modelos estéticos e significado para servir como demarcador de status e prestígio social (RIOS, 2004:32-33).

Marcel Mauss (2005) demonstra como o corpo, longe de ser uma entidade exclusivamente biológica, com autonomia própria, separado da cultura, é construído pela e na cultura na qual está inserido.

Na mesma perspectiva, Le Breton (2007) nos chama a atenção para o fato de que é do corpo que nascem e se propagam as significações que fundamentam a existência individual e coletiva. [...] ele é o eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma através da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para outros, servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros das comunidades (LE BRETON, 2007:7/ MEUS GRIFOS).

Ao se relacionar com o mundo, esse corpo, mais plural que singular, constituído no/pelo social e (re)produtor de significado, encontra-se imbricado na estreita e dinâmica relação entre as dimensões biológica, psicológica e social, conforme nos lembra Mauss (1974), em sua antropologia das emoções.

Simpático a este entendimento, Geertz (2001) alerta para o fato de que tornar a reunir o cérebro, o corpo e o mundo é uma tarefa difusa e ambiciosa; contudo, possível e, mais do que isso, necessária.

É nesse sentido que o autor questiona aquelas formas de compreensão que identificam o corpo de maneira fragmentada e desarticulada, tal como aquela que localiza a mente “dentro da cabeça” e a cultura fora dela.

Parafraseando Geertz (2001), a partir dessas dualidades, dentro-fora, interno-externo, psicológico-social e de certa hierarquia que parece privilegiar tais dualidades na relação entre corpo, biologia, mente e cultura, considero pertinente pensar a natureza cultural da biologia, bem como a natureza biológica da cultura, revelando um paralelo de contribuições e influências que ratifica o quanto é estreita essa relação.

Para além da perspectiva anatomo-fisiológica, se faz necessário considerar o campo de tensão que surge a partir do diálogo constante entre as diferentes formas de se conceber e se entender corpo, seja o corpo anatomo-fisiológico, o corpo subjetivado, corpo/carne ou o corpo da cultura. E é desse diálogo que surge a concepção de corpo com a qual comungo. Corpo que ao ser mais do que matéria e mente, é sentido e significado de diferentes formas, em diferentes culturas, contextos e por diferentes grupos.

E é este corpo, no meu entendimento mais que biológico, que performa um gênero que encontra na anatomo-fisiologia o “respaldo”, o “autorizo” para tal. Partindo deste princípio, que se assemelha com o modelo sexo/gênero apresentado por Gayle Rubin (1975), o masculino deve ser performado por corpos com pênis e o feminino por corpos que possuidores de vaginas, e qualquer subversão desta regra causada pela “inversão” desta ordem do sexo/gênero ou pela indefinição anatômica dos sexos (a exemplo dos intersexos) é responsável pela instalação de um mal estar tremendo.

As diferenças anatômicas entre os sexos parecem ainda funcionar como a base que estrutura as feminilidades e a masculinidades, fazendo do corpo lócus de aprendizagem e vitrine do que é, ou deveria ser, o ser homem e ser mulher.

Butler (2008), ao compreender gênero como significados culturais assumidos pelo corpo sexuado, nos chama atenção para o fato de que as discussões sobre gênero, corpo e cultura não são universos dispares, e que identificar o lugar por eles ocupado não revela uma ruptura na interpretação e sim a possibilidade de estabelecermos uma análise menos tendenciosa e unilateral, que por vezes privilegia o substrato biológico em detrimento do aspecto cultural.

“Concebida originalmente para questionar a formulação de que a biologia é o destino, a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: conseqüentemente, não é nem resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo. Assim, a unidade do sujeito já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (Butler, 2008:24).

No entanto, os prejuízos advindos do movimento oposto oriundo dos estudos pautados na perspectiva do construcionismo social hard1, apagam da análise a presença de um corpo que pesa e que é marcado pelo contexto sociocultural no qual está inserido.

“Em algumas explicações, a idéia de que o gênero é construído sugere um certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos de uma lei cultural inexorável . Quando a ‘cultura’ relevante que ‘constrói’ o gênero é compreendida nos termos dessa lei ou conjunto de leis, tem-se a impressão de que o gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que a biologia é o destino. Neste caso não a biologia, mas a cultura é o destino” (Butler, 2008:26).

Ao criticar o construcionismo hard, onde tudo é construção e o sexo é ficção, Butler (1999), considera que “não se pode, de forma alguma, conceber o gênero como um constructo cultural que é simplesmente imposto sobre a superfície da matéria – quer se entenda essa como o “corpo”, quer como um suposto sexo” (Butler, 1999: 54).

A autora revela que a distinção sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos sexuados e gêneros culturalmente construídos. Supõe ainda que por um momento a estabilidade do sexo binário, não está associada à idéia de que a construção de ‘homens’ estaria vinculada exclusivamente a corpos masculinos, e por sua vez as ‘mulheres’ a corpos femininos.

“A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino, como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino” (Butler, 2008: 24-25).

E é neste corpo performado pelo gênero ou deste gênero performado pelo corpo que se esforça ou não para romper com o modelo binário dos gêneros, que se constitui a identidade sexual.

Enquanto a identidade de gênero postula uma posição de operador classificatório universal, a problemática da identidade sexual ganha sentido e relevância em um contexto histórico e culturalmente relevante. Ela se ancora e se impregna do lugar que a sexualidade desfruta/ocupa na cultura ocidental como lócus privilegiado da verdade do sujeito (Heilbron, 1992).

O foco desloca-se das formas de subjetivação e fabricação do sujeito (no gênero) para incidir sobre o modo sobre como se constitui uma condição de “sujeito sexual”, isto é, segundo Foucault, para a indagação da maneira como os indivíduos foram levados a exercer uma hermenêutica do desejo.

Tal condição encontra fundamento na divisão das pessoas em categorias socialmente significantes dentre as quais se mostram relevantes as categorias da heterossexualidade e da homossexualidade.

Ou seja, este corpo não exclusivamente/predominantemente, mas também biológico, de uma performatividade que não apresenta uma aderência exclusiva a ordem de sexo/gênero, surge para os sujeitos como uma espécie de “terreno fértil” onde estes, balizados por suas culturas e seus contextos históricos, encontram elementos necessários à constituição de uma condição de sujeito sexual.


[1] VIANA, N.J.Q - Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Peranambuco - UFPE; Pesquisador vinculado ao Laboratório de Estaudos da Sexualidade Humana - Lab-Eshu/UFPE; Especialista em Psicologia Social e Comunitária - FAFIRE; Consultor Social do Centro Brasileiro de Reciclagem e Capacitação Profissional - CERCAP, OSCIP executora de programas e politicas publicas da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos - SDSDH/PE.
 
I Encontro da Psicologia Pernambucana - 2010

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