terça-feira, 21 de setembro de 2010

POPULAÇÃO DE RUA - VÍTIMAS DO DESENVOLVIMENTO E MISÉRIA HUMANA



















Noite na Av. Conde da Boa Vista, Recife-PE/2010

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO CENTRO DO RECIFE: Até Quando?

São vinte e duas horas e a cidade se arruma para dormir. Aos poucos e lentamente eles chegam carregando suas casas. São nômades, como os antigos ciganos. Homens desfigurados, maltrapilhos e sujos. Mulheres bangelas e despenteadas. Adolescentes desnudos vagando aéreos. Crianças soltas no mundo. Emaranhados de restos humanos aglomerados em calçadas frias e sujas. Sombras de almas amontoadas sobre caixas de papelão. Resíduos de uma sociedade insana e injusta, que jogados a sarjeta, habitam as noites do Recife. Como ratos se alimentam dos restos, vasculham lixos em busca das sobras. Homens velhos e jovens, mulheres lesadas de beleza e crianças condenadas pelo asfalto.

A população em situação de rua configura-se hoje como um dos maiores problemas sociais do Recife, e do Brasil. Não é diferente por onde passei. Em São Paulo, a Praça de República mostra-se como exemplo de incivilidade; Nas ruas paralelas ao Copacabana Pálace, no Rio de Janeiro, as diferenças sociais gritam aos olhos; nos bancos da Praça 15 de Novembro, em Santa Catarina, bancos viram camas duras e incomodas. De norte a sul, ou como queiram do Oiapoqui ao Chui, milhares de pessoas fazem das ruas seus espaços de convivência e sobrevivência. Então, pensaram muitos, não é só no nordeste que existe fome? Não, porque a desigualdade social é o mais cruel retrato de uma sociedade. E exclusão social não tem naturalidade, mas nacionalidade. Não é natural de uma região, e nem fruto de classes sociais menos favorecidas economicamente. Exclusão e segregação social são resultados da desigualdade resultante da mau administração, gestão e aplicação dos recursos públicos.

Nos últimos vinte anos tem se verificado crescente preocupação com as questões da violência na sociedade brasileira. Tem também se percebido que os acelerados processos de industrialização e urbanização, ocorridos no final do século XIX trouxeram em seu rastro a eclosão da violência urbana. Neste sentido, registros sobre a década 1920 já evidenciavam grande inquietação social diante da violência através das ações e intervenções públicas voltadas ao combate da marginalidade dos pobres (Rabelo; Melo & Campos, 2006). E aqui, marginalidade não se traduzia como margem, onde habitamos ainda hoje os excluídos, mas como perigo oferecido pelos tantos e quantos “vagabundos” que agrediam a sociedade burguesa.

Mas há de se entender que com o passar dos tempos, o recrudescimento da miséria, o aumento vertiginoso do desemprego e a crise de valores em nossa política, contribuíram de forma direta ou indireta para a criação de uma espécie de “bode expiatório” pelo qual se justificaria as mazelas do país. Para Sarti (2005), era preciso outorgar a um outro, estranho e diferente, nossas responsabilidades pela violência. Ao Estado faltavam respostas nas quais pudesse esconder sua ineficiência enquanto gestão de direitos e vivencia garantida da democracia. E foi neste contexto, quase que “naturalmente” o pobre passou de forma automática a ocupar um lugar central nas discussões acadêmicas e dos governos, possibilitando a definição de um perfil para os agentes da violência (ADORNO, 2002). A concepção de pobreza tornou-se sinônimo de marginalidade, que passou a ter cara, nome, endereço e identidade. Estudos estatísticos, embora em sua maioria não oficiais, divulgaram as características do “sujeito marginal” a ser combatido: adolescentes e/ou jovens do sexo masculino, pobres, e em sua grande maioria negros ou mestiços que habitam as ruas, comunidades e favelas dos grandes centros urbanos.

Uma reflexão mais atenciosa no entanto evidenciará que o fenômeno da violência urbana apesar de não ser fato recente em nossa sociedade, vem a muito contribuindo para a estigmatização e exclusão social de um grupo específico, formado por crianças, adolescentes e jovens, de ambos os sexos, que sem grandes possibilidades, ou dificuldades no processo de inserção relacional, encontram nas ruas as possibilidades e espaços de sobrevivência. Robert Castel (In Contijo e Medeiros, 2009) salienta que  é preciso entender a situação de marginalidade vivenciada por diferentes indivíduos e grupos sociais de forma dinâmica, através dos eixos do trabalho e da inserção relacional. Dentro dessa premissa, no referente às crianças e adolescentes em situação de rua, evidencia-se uma reflexão do processo de intensificação da vulnerabilidade a que estão submetidas, e que culmina num processo de desfiliação verificado entre milhares de famílias brasileiras vitimas da extrema desigualdade social, classificados e reconhecidos como pobres.

Para Piter Spink (2006) a denominação ou categorização social “ser pobre” é uma expressão infeliz, e carrega em si o risco de transformar a pobreza, que é um processo complexo e que agrega, ao mesmo tempo, aspectos econômicos, sociais e políticos, em um atributo individual e focal. Por isso, é preciso entender a pobreza não somente como resultado das situações de insuficiência de renda ou de meios para adquirir gêneros e bens de consumo. Antes, porém, é preciso pensá-la numa perspectiva de ausência de serviços imprescindíveis ao bem-estar social, tais como: acesso a educação de qualidade, atendimento médico-hospitalar, moradia digna, água potável, coleta de lixo, trabalho e segurança pública. Para o autor, num sentido mais amplo, a pobreza se relaciona diretamente ao campo dos direitos – inclusive direitos constitucionais – e se traduz, assim, na igualdade de oportunidades e de acesso aos bens e serviços, sejam eles públicos ou privados.

Nóbrega e Lucena (2004) salientam que no rastro do equivocado e pernicioso entendimento coletivo, a categoria "meninos de rua" foi forjada na modernidade, passando a circular nos anos 80 como marco teórico para a classificação de um grupo social emergente nas grandes metrópoles de países da América Latina, incluindo-se Brasil, México e Colômbia. E uma vez, utilizada como código de comunicação social, estabeleceu a identificação de um novo foco para estudos nas áreas da psicologia, epidemiologia, social, história, entre tantas outras, que geraram não apenas mudanças de nomenclaturas, mas de explicação histórica do fato (Nóbrega e Lucena, 2004). Tanto que em 1981, o então assessor sobre questões relacionadas a crianças abandonadas e sem famílias, do Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF, Piter Taçon, publicizou mundialmente, pela primeira vez, uma estimativa aproximada em torno de cinquenta milhões de crianças nas ruas das grandes cidades da América Latina, que classificou como “descendentes do milagre econômico e da miséria Humana”.

Foi na década de noventa, porém, que Rosemberg (1994) introduziu pela primeira vez no Brasil uma mudança considerável na terminologia "menino de rua", substituindo-a por "crianças em situação de rua", propondo a desfamiliarização de tal processo de exclusão. Consolida-se assim, o entendimento de que o fato de “estar na rua” não se configura enquanto questão natural ao ser humano, mas ao contrário, apresenta-se como fator situacional. Ao substituir o “de rua” por “situação de rua” nega-se e invalida-se o recorte pautado na origem do sujeito, tão comum nos estudos e políticas públicas, para evidenciar-se uma situação momentânea, logo, passível de mudanças.

Num mesmo sentido, recorro mais uma vez a Abramovay (2002) para reafirmar que é preciso entender que “somente a partir da associação da vulnerabilidade com a desigualdade social e a segregação juvenil, tem-se conseguido esclarecer cenários das complexas nuances de relação juventude e violência”. E digo mesmo, ser preciso aceitar e conceber essa relação como produto de dinâmicas sociais que se respaldam em desigualdade de oportunidades, segregações, inserção deficitária na educação e no mercado de trabalho. A violência então pode ser compreendida como resultado direto da ausência de possibilidades de lazer e formação ética e cultural pautadas nos valores de solidariedade e de cultura de paz. É preciso criar novos parâmetros para a  educação de nossos jovens, distanciando-nos dos modelos que vinculam esforços a êxitos. 

Nessa mesma perspectiva, Castel (2005) avalia que as condições de vida, ou modos de existência social dos diferentes indivíduos e grupos sociais, são determinadas pela associação entre o trabalho e a inserção relacional. Assim, o trabalho tem se configurado para os sujeitos como referência econômica, psicológica, cultural e simbólica na estruturação de suas existências, tornando-se suporte privilegiado de inscrição na estrutura social. Além do trabalho, a inserção relacional também determina as formas de existência social dos sujeitos. E por inserção relacional deve-se entender o processo pelo qual os vínculos estabelecidos pelos sujeitos com os grupos familiar e social, mais próximos, possibilitam o fortalecimento da percepção e do sentimento de pertencimento a uma determinada comunidade.

É preciso então, entender que política pública não pode se configurar como “política para pobre”, como muitas vezes tem se apresentado dentro de uma lógica do “pão e circo”. Acima de tudo é preciso pensar as políticas na perspectiva de condições igualitárias de acesso e direitos. E por isso ínsito que nossos jovens não precisam de “oportunidades” restritas em sentido e significados relacionados a favores ou chances oferecidas pelo Estado, tão comuns nos discursos de gestores públicos e políticos brasileiros. Precisam ter possibilidades de garantias a educação de qualidade, saúde e capacitação profissional para inserção no mercado formal. Igualdades de direitos é o pilar da democracia, e por isso torna-se regra para resolução de conflitos sociais. Educar para não violar, não violentar e mutilar milhares de vidas como as que se espalham e se amontoam nas ruas sórdidas e fétidas de Recife e do Brasil.

Neste sentido, mais uma vez, proponho aos políticos, gestores públicos e sociedade brasileira, refletirem sobre se o que fazemos é política pública, ou na verdade, apenas politicagem com dinheiro público.




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