sábado, 18 de setembro de 2010

NOVA REFLEXÃO SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA EM RECIFE

Visão de Minha Janela - Recife/PE, 2010

A POPULAÇÃO DE RUA NO RECIFE: VÍTIMA DO CAPITALISMO?

Andando pelas ruas do Recife, pode-se facilmente observar um grande contingente de pessoas em situação de rua. São verdadeiras famílias que fazem das marquises espaços de proteção e convivência social. De minha janela, torna-se impossível não se indignar com o descaso e falta de atenção para com esse segmento da população. Em plena Av. Conde da Boa Vista, abriga-se uma senhora, talvez na faixa de quarenta a cinquenta anos de idade, negra e obesa, que em meio a papelões, jornais velhos e entulhos enfiados em sacos plásticos parece estabelecer seu espaço de moradia. Enquanto pesquisador, tal referencia torna-se material primoroso para se avaliar a subjetivação envolvida na construção de certas representações sociais. Basta para isso, um olhar mais cuidadoso no que se refere ao comportamento dos transeuntes, onde cada um a seu modo esboçará reações de repulsa, compaixão ou indignação. Mas alheia aos olhares e julgamento, a negra senhora mostra-se indiferente ao tumultuado vai e vem da cidade. Provavelmente possuidora de algum tipo de transtorno mental, parece muitas vezes, agir e reagir como "um animal", que abandonado vaga pelas ruas. Pois que de certo modo essa é aparência que tal situação lhe impõem, ou impôs durante os sucessivos anos em que tem habitado as ruas da cidade. Mas, fato é que certa forma, aquela criatura já mostra-se incorporada ao cenário urbano. Passou a fazer parte do cotidiano recifense e por isso sua situação tornou-se socialmente banalizada.

Então penso, através de que processo incorporamos determinadas situações não comuns e impróprias como aspectos “naturais” e socialmente aceitáveis? Porque conseguimos neutralizar nossa capacidade de se indignar com situações de violência social, a ponto de nos mantermos “inteiros” e passivos diante das condições de degradação humana? Acredito, logicamente, em nossa capacidade natural e humana de adaptação, mesmo às situações adversas e contrárias a nossas ideologias e concepções de justiça e sociedade. Porém imagino que em casos como esse o incômodo social só se torna claro quando nos atinge diretamente. Tentando explicar melhor, diria que, caso essa senhora negra irrompesse algum ataque contra um de nós, ao cruzarmos seu caminho, provavelmente nos sentiríamos agredidos e violentados em nossos direitos. Também tenho observado entre os cidadãos urbanos, certo incomodo quando esta se abriga embaixo de suas marquises, pelas quais pagam para mantê-las limpas dentro de uma lógica higienista. Ou ainda, talvez, quando em meio ao tumultuo das ruas, ela passa a ocupar um espaço maior do que o devido. Neste aspecto a sujeira das ruas parece incomodar muito mais do que as condições em que se encontra tal indivíduo, que uma vez destituído do lugar de sujeito, perde automaticamente o status de cidadão. Consequentemente, negam-lhe ainda o direito a dignidade. Pois que é a representação máxima de um animal irracional, independente dos motivos ou fatores que o levaram a tal condição. Penso então, que essas são representações fortemente construídas e consolidadas no censo comum da capital pernambucana. E aí, me vem a velha máxima: quem agride e/ou violenta quem?

Essa como tantas outras mulheres, homens e crianças, são relegadas a condição de “passageiros de segunda classe”. Uma espécie de animal inferior, não sociável e improdutivo, e por isso impossibilitado de acessar determinados espaços. A estes são oferecidos, e por que não limitados, as ruas, becos e marquises escuras e sujas. Refletindo melhor dentro dessa concepção, talvez possamos imaginar que apesar de rebaixadas a condição de animais, essas pessoas mostrem-se inofensivas e passivas, o que reforça a idéia da não necessidade em molestá-las. Parte-se do princípio de que não se precisa fazer nada, pois que as coisas já estão arrumadas e organizadas com devem ser. Assim, convive-se pacificamente até que algo, ou alguém, quebre com a ordem e tente sair da marginalidade imposta para acessar outros territórios, espaços ou lugares sociais que não lhes cabem. O conflito então se origina por que as hierarquias precisam estar bem definidas e assimiladas para que se mantenha o equilíbrio social. Nada e nem ninguém pode fugir da regra, que coletivamente estabelecida, torna-se norma social.

Outro exemplo clássico desse descaso e da busca pela manutenção do poder burguês em nossa cidade se dá pelo fato de que a cada sinal de trânsito que separa os principais cruzamentos do centro urbano, burguesia e proletariado se encontram. A tensão torna-se mútua, mas cada qual se mantém no seu espaço e lugar. O sujeito de direito classe média, em sua maioria de pele clara e aspecto saudável, se mantém preso em seu carro de vidros e travas elétricas. Os não sujeitos de direito, representados em sua maioria por crianças e adolescentes de peles não claras, habitam as esquinas munidos de pequenos rodos e garrafas com água. Estes limpam as sujeiras externas da burguesia acuada e "intocável", ou melhor, inatingível. E em meio a milhares de veículos empoeirados, crianças se lançam sobre pára-brisas e janelas protegidas, talvez numa tentativa ilusória de serem notados ou percebidos em suas necessidade de sobrevivência e sub existência. 

Porém, os esforços parecem em vão ou insuficientes, uma vez que no máximo conseguem despertar compaixões aliviadas pelas gorjetas concedidas em esmolas. Assim, enquanto um “brinca” de justificar os trocados, o outro se “purifica” por remunerar a exploração do trabalho humano. A angustia torna-se momentânea, uma vez que o sinal ficará verde em breve e o sujeito burguês poderá prosseguir tanquilamente até o próximo cruzamento. E a cada novo sinal de cruzamento estabelece-se novamente a manutenção da ordem, pautada na desigualdade de poder.

Neste sentido, Rosemberg (1993), chama a atenção para o fato de que nas ultimas décadas tem se observado uma grande mobilização mundial pela ampliação e aplicação dos direitos civis a crianças e adolescentes; e que o desvelamento de condições degradantes, materiais e morais, em que vivem muitas das crianças e adolescentes de países ricos e pobres têm suscitado a indignação e a busca de soluções entre aqueles que defendem a construção de uma terra onde os direitos humanos sejam extensivos aos seus habitantes. Contudo, a autora destaca que apesar desses estudos mostrarem que a violência adulta contra crianças e adolescentes não é fruto das sociedades contemporâneas, torna-se importante que diferentes organizações sociais governamentais e não governamentais, internacionais e intergovernamentais, se esforcem no sentido de denunciar a crueldade e extensão das situações de risco, normalmente relacionadas as situações de violência adulta, coletivas ou individual, concreta ou simbólica, direta ou indireta, vivenciadas cotidianamente por crianças e adolescentes em nossa sociedade. 

Julgo importante também ressaltar que apesar dos resultados e dados colhidos em estudos e pesquisas servirem como objetos de investigação e base para metas de políticas públicas, o esforço em sensibilizar a opinião pública em relação à violência sofrida por crianças e adolescentes em nossa sociedade, tem gerado uma retórica específica, e que no esforço de convencimento, muitas vezes incorpora diagnósticos catastróficos, inverossímeis, distantes da realidade e estigmatizadores de famílias, crianças e adolescentes pobres, além de se mostrarem inadequados para balizar ações concretas e efetivas na garantia de direitos (Rosemberg, 1993).

Por muito tempo, se associou às crianças e adolescentes em situação de rua à imagem e representação social da violência, e num sentido inverso, de vitimas, essas passaram a violadores de direitos dos cidadãos de bem (Souza Neto, 2009). A população de rua tornou-se então estigmatiza como violenta e passível de controle social. Porém Abramovay (2002) destaca, que somente a partir da associação da vulnerabilidade com a desigualdade social e a segregação juvenil, tem-se conseguido esclarecer cenários das complexas nuances de relação juventude e violência. E neste aspecto, digo que logicamente, tal relação precisa ser percebida como produto de dinâmicas sociais que se encontram pautadas na desigualdade de oportunidades, segregações, inserção deficitária na educação e no mercado de trabalho; bem como, na ausência de possibilidades de lazer, formação ética e cultural em valores de solidariedade e de cultura de paz e de distanciamento dos modelos que vinculam esforços a êxitos. 

É neste sentido, que verifica-se que essa combinação de fatores tem sido diretamente responsável por situar os jovens a margem da participação democrática que colabore na construção de identidades sensíveis `a diversidade cultural e à solidariedade por compromissos de cidadania, assim como no fortalecimento de auto-estima e de sentimento de pertencimento comunitário (Abramovay, e tal, 2002). Assim, é preciso entender que a violência juvenil, que tanto se fala e se prega como nociva a sociedade, e natural as camadas populares, nesse contexto, tem muitas vezes representado uma forma encontrada pelos próprios jovens para quebrarem sua invisibilidade e mostrarem sua capacidade em influir nos processos sociais e políticos do país. 

Nessas mesma perspectiva a autora refere que “diante de uma sociedade que manipula canais de mobilidade social e segrega socialmente setores da população, e que, além de não reconhecer, estigmatiza os principais canais de participação juvenil, a violência vem servindo, em alguns casos, para colocá-los nos meios de comunicação e chamar a atenção para sua difícil vida” (Abramovay, e tal, 2002). Por isso, acredito que ao se pensar em políticas públicas voltadas as populações excluídas socialmente, é preciso pensá-las na perspectiva da prevenção, e muito menos no viés da repressão, como muito tem se visto. O fato consiste não em retirar as pessoas das ruas, numa visão de limpeza urbana, para institucionalizá-las em espaços não suficientemente preparados e capacitados para atender as suas demandas e necessidades; mas ao contrário, buscar fortalecer a família e a comunidade para reinserção social em seus grupos de convivência. Até porque, muito já tem se evidenciado, que em algumas situações para muitas dessas pessoas, as ruas se revelam como espaço de muito maior segurança do que seus próprios lares (Souza Neto, 2009). 

Neste aspecto, penso que muito tem se errado na definição de políticas públicas pautadas para atender as necessidades de um sistema capitalista, e consequentemente a manutenção do poder pela hierarquia social. Recorrendo a Engels (2002) fica claro o entendimento de que, “desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, Isto é, da imensa maioria. Cada benefício para uns é necessariamente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra”. Na mesma perspectiva, Teixeira (2009) destaca que as características marcantes do sistema capitalista vêm se estabelecendo desde a época de seu triunfo, em cima de uma lógica onde a classe dominante procura alicerçar sua posição por intermédio de uma ideologia perversa, tendo como único objetivo a racionalização de sua condição política e econômica, e assim, justificar a classe subordinada as razões pelas quais deve aceitar passivelmente tal situação.

Dentro desse prisma, mesmo se considerando que o debate sobre as políticas públicas representa uma temática inserida em muitos campos institucionais no Brasil, não se pode esquecer que o seu aquecimento se deu através do processo de globalização mundial; e que, devido a crise do capitalismo tornou-se preciso encontrar e/ou criar mecanismos que possibilitassem amenizar os efeitos estruturais da crise mundial. Por tanto, neste aspecto, as políticas públicas revelam-se como mecanismo relativamente novo, que usado pelo sistema capitalista tem contribuído significativamente para mascarar as mazelas e a real invisibilidade de um sistema pautado na exploração do homem pelo homem (Teixeira, 2009). 

Ainda segundo Viana  (2006), pode-se entender que “o papel das políticas públicas na perspectiva liberal, caracteriza-se principalmente em políticas compensatórias, considerando a situação como um fato histórico natural, e assim, buscando garantir o acesso dos indivíduos a bens e serviços de satisfação de suas necessidades, num contexto de manutenção e ampliação do modo de produção capitalista”. Seguindo esse raciocínio e em consonância ao pensamento de Teixeira (2009), questiono até que ponto, dentro dessa perspectiva, não se pode pensar que a políticas públicas foram e/ou ainda o são, criadas para “beneficiar” grandes parcelas da sociedade que não tem acesso ao básico necessário para viverem em condições dignas? E ainda reforçando o argumento da autora, saliento a necessidade de se avaliar (ou reavaliar) “o que existe realmente por trás da verdadeira face do capital, que utiliza tais políticas para amenizar e não para de fato erradicar os problemas que afetam as populações exploradas pelo capitalismo”. 

Assim, em clara oposição à concepção liberal, a materialista percebe tais políticas sociais como estratégia da classe dominante para preservar a desigualdade social, uma vez que, ao amenizar os sintomas produzidos pelo sistema, garantem a dificuldade de realização de uma leitura critica da realidade por parte daqueles que se beneficiam com tais políticas, diminuindo assim os conflitos sociais (Viana, 2006).

Por isso, ao analisar a real situação da população em situação de rua de Recife, bem como, o despreparo dos setores competentes para lidar com a problemática, recorro mais uma vez a Teixeira (2009), para propor uma reflexão sobre até que ponto, “não é justamente pela essência excludente do sistema capitalista, bem como por suas sucessivas crises, que se tem pensado as políticas públicas no Brasil”? E até que ponto, tais políticas não tem escondido o único objetivo, manipular a grande parcela da população, possibilitando silenciá-la dentro de um conformismo patológico que tanto interessa a reprodução e a perpetuação do poder?































Ruas do Recife/PE, 2010


REFERÊNCIAS:

Abramovay, Miriam. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina: desafios para políticas públicas / Miriam Abramovay et alii. – Brasília : UNESCO, BID, 2002.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 16. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

ROSEMBERG, Fúlvia. O discurso sobre criança de rua na década de 80. Caderno de pesquisa de São Paulo, nº 87 – São Paulo, 1993.




SOUZA NETO, E.N. Entre boys e frangos: análise das performances de gênero dos homens que se prostituem em Recife. Dissertação de mestrado em psicologia. UFPE, 2009.

SOUZA NETO, E.N. PROGRAMA VIDA NOVA – Pernambuco acolhendo a população em situação de rua. Artigo apresentado no Seminário Internacional França Brasil, são Paulo, 2009. www.sescsp.org.br


TEIXEIRA, Dirlância da Silva. O Centro de Convivência Elo de Vida como uma política pública de apóio a dependentes químicos: caracterização, possibilidades e limites. Dissertação de Mestrado em Políticas Públicas - Universidade Estadual do Ceará, 2009.

VIANA, M. Psicologia, Educação e Cidadania. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, 2006.

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