quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O NATAL DAS[NAS] RUAS DO RECIFE


João Pessoa/PB.

"Eu Pensei que Todo Mundo Fosse Filho de Papai Noel..."
Hoje eu vi um menino invandir uma lata de lixo. Não me espantei com o fato ou mesmo com a voracidade com que vasculhava o interior do vermelho receptor de lixo afixado ao poste em frente a meu prédio. Mas sem falsos moralismos, me absmei com a indiferença dos tantos que se alvoraçavam nas lojas da cidade. Ele era magro e de pequena estatura, o que lhe possibilitava explorar com as pequenas mãos o interior do recipiente. Restos de comida eram então depositados em um saco plástico que ironicamente estampava a logomarca de rede de supermercados. Misturadas as migalhas vinham detritos que eram cuidadosamente separados e depoisitados num canto sobre um pedaço de papelão velho. Depois de sucessivas investidas o garoto apanhou o amontoado de lixo que não lhe servia e voltou a depositá-los no lixeiro. Se baixou, apanhou a pequena sacola plástica, verificou seu conteúdo e seguiu rumo ao próximo poste.
Parecia não havia resignação em seus atos, nem tão pouco deixou transparecer vergolha ou revolta por sua condição. Ao contrário, revelava uma determinação e prática por demais peculiar a quem tem fome. E não falo apenas da fome de comida que se sente e se sacia, mas da fome de dignidade e respeito que adquirimos ao nos tornarmos conscientes de que todos somos igualmente sujeitos de direitos. Mas o corpo desnudo daquele garoto evidenciava não só a total falta de tal consciência, mas, mais que isso, revelava a fragilidade física e moral dos que não conseguem acessar as possibilidades mínimas necessárias ao desenvolvimento saudável.
Me perdi pensando sobre qual idade teria aquele garoto. De onde vinha, para onde iria, o que sabia da vida, e acima de tudo, o que tinha aprendido ou estava por aprender nas ruas. Meus olhos permaneciam fixados em sua imagem. E naquele momento era mesmo como se tudo ao redor houvesse desaparecido. Apenas ele me despertava a atenção, pois que inclinado sobre outro coletor parecia indiferente aos empurrões e reações de indignação dos transeuntes que se atropelavam com suas sacolas e presentes.
Pouco tempo depois o garoto repetiu seu ritual. Recolocou o lixo não aproveitável de volta ao lixeiro e seguiu adiante com sua sacola repleta de resíduos alimentares. De onde realmente teria vindo aquele menino? Rebusquei na memória e não consegui identificá-lo entre as tantas crianças que povoam as ruas do centro do Recife. De certa forma posso assegurar que conheço quase todos os habitantes de minhas calçadas, pois que há muito se tornaram meus vizinhos. Mas aquele garoto não era desse perímetro, não frequentava esse quarteirão e muito menos circulava no meu campo de visão.
Seria ele um novo estranho que encontrara nas ruas agitadas do centro da cidade o abrigo necessário a sua sobrevivência? Seria mais um dos tantos que buscam as ruas nos finais de ano atras das tão gratificantes esmolas? Tudo e nada podia ser. Eu não sabia nada de sua vida e história. Como a maioria das pessoas não sabem nada sobre a população em situação de rua. No entanto, o mas estranho é que ele não estava mendigando como os demais que ocupam as calçadas e cruzamentos do Recife. Não, ele estava buscando comida. E tabém pelo jeito como se comportava não demonstrava fome aparente naquele momento. Então talvez, aquela comida coletada das sargetas urbanas fosse a provisão da noite solitária e vazia, ou mesmo, a garantia de sua única refeição no dia seguinte.
Mas se assim o fosse significaria que amanhã aquele garoto não iria para casa jantar com sua família. Que talvez nem tenha uma família com quem partilhar sua ceia, e muito menos uma verdadeira ceia digna de ser compartilhada. E amanhã, novamente por mais uma ironia da vida, é véspera de natal. Então pensei que talvez nem mesmo soubesse de tal coincidência, pois que para ele hoje seria apenas mais uma das tantas quintas-feiras em que coleta os restos de comida das cidades. Assim, amanhã será também apenas mais uma sexta-feira agitada na qual seu estômago irá emitir os mesmos roncos vazios e ele recorrerá novamente aos restos que não destinamos nem aos porcos.
Duvidei em seguida da minha própria lógica, pois seria impossível não saber de tal data mesmo perdido em referencial cronológico ou histórico. As vitrines lhes diriam. As lojas apinhadas revelariam um frenesi traduzido no desvario e entusiasmo delirante do consumismo que aquela não seria uma quinta-feira comum. Seria fácil identificar a existência de algo diferente no ar. Mesmo indiferente ao agitado movimento do vai e vem humano que entope e congestiona as ruas desestruturadas e esburacadas do Recife, seria impossível não reconhecer a influência das luzes e cores que iluminam a cidade provocando o tão comum arrebatamento de excitação coletiva. A anciedade das pessoas em busca das melhores ofertas e promoções não passariam imperceptível nem mesmo a um cego, o que diria a uma criança.
Definitivamente concluir que estava errado. Aquele garoto sabia sim da existência e da proximidade do natal. Talvez contudo, não saiba ao certo seu sentido e/ou essência, se é que no natal existe algum tipo de sentido ou mesmo alguma essência para quem vive nas/das ruas. Como será então o natal para quem mora ou subexiste das ruas? As luzes coloridas não devem iluminá-los. Sim, pois ao contrário como poderíamos não vê-los ou percebê-los? Também não creio que existam papais noeis e logicamente não existem presentes. Eles não compram roupas novas e não brindam a passagem da noite magica e milagrosa, pois que para eles não existe esperança de milagres.
De minha janela me limitei a observar o garoto que agora sentava em um canto de um muro qualquer, provavelmente cansado ou perdido em devaneios e sonhos inalcansáveis. Meus olhos permaneceram gongelados. Eu estava frio e  estático mais uma vez, como em tantas outras situações e sircunstâncias em que me senti completamente impotente. Mais uma vez não sabia o que fazer. Não tinha respostas ou soluções concretas. Me resignei a me indignar diante de minhas próprias impossibilidades.
E ao contrário de me muitos, não me permiti chorar porque talvez isso aliviasse um pouco minha angústia e sentimento de co-responsabilidades. Naquele instante decidi que essa seria a imagem do natal que guardaria em minhas lembranças. Resolvi que não quero imortalizar as imagens das ruas e praças iluminadas e cuidadosamente decoradas, mas ao contrário, prefirei remoer mais uma vez minha incapacidade e fraqueza enquanto cidadão político e consciente das injustiças. Quero sim, cultivar e perpetuar essa indignação para que possa de forma consciente respaudar e justificar minha permanência e atuação ética e política na Assistência Social.
E entendo que se existe algo que tenho buscado preservar e fortalecer durante esses anos de investimentos e luta por igualdades e garantias de direitos, este refere-se a essa minha capacidade de ainda me poder e conseguir me sentir indignado diante de tais situações e fatos. Até porque sei e acredito que no dia que a perder me tornarei igual aos tantos cidadãos e políticos corruptos e descomprometidos que se mostram apáticos e insessíveis as mazelas sofridas por quem se encontra abaixo da linha da miséria. E isso me tornaria tão miserável e vulnerável quanto aquele e a tantos garotos que habitam as ruas das grandes cidades, pois que o pior tipo de falta e ausência não é a de comida que alimenta o corpo, mas a de consciencia social e política que só alimenta a alma de quem entende o que é justiça.
A todos uma boa noite de reflexões natalinas.

2 comentários:

  1. Eu acompanho seu blog as vezes e fico abismada com tamanha sensibilidade humana. Parabéns por este espaço e por levar sempre as pessoas essas manchetes de sua autoria que sao super importantes, pois, denunciam o descaso da nossa populaçao em geral. Um dos seus textos será provavelmente lido no congresso de trans que haverá em Recife em Outubro de 2011. Meus parabéns, adoro seu blog. By Aleika Barros
    www.aleikabarros.blogspot.com

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  2. Obrigado Aleika, pelo carinho e atençao. Adoraria participar do congresso. Me manda detalhes. Epitacio Nunes.

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