sábado, 9 de outubro de 2010

AS ELEIÇÕES 2010 E AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA MULHERES






















A EQUIDADE CELESTIAL

No nordeste é muito comum que as mulheres se chamem Maria. Assim existem as Marias filhas de Marias, como também, Marias tataravós de Marias. E elas são do Perpétuo Socorro, das Graças, da Paz, e também da Piedade. Quantas ainda são da Luz, do Divino Espírito Santo, de Nazaré ou mesmo de Jesus? Enquanto umas carregam o peso do nome da santa, seja essa da Conceição, de Fátima, de Aparecida; outras tantas recebem de batismos o nome das que foram destituídas de santidade como as Madalenas. Outras ainda são de João ou de José. E no fim, serão todas Marias de alguém, pois que raramente conseguem se tornar, ou serem reconhecidas enquanto simplesmente Marias. Nascem filhas condenadas a obediência e trocam de “donos” quando casam. São educadas para procriar e ensinarem às futuras Marias a procriação da subserviência. E assim, as próprias Marias também, anos após anos, perpetuam a subjugação de suas penitencias e permanecem vitimas dos homens que fazem a cultura.

Na solidão de suas sinas muitas se tornam esposas de seus pais. São as Marias-meninas que abusadas e exploradas sexualmente, são iniciadas sexualmente pelos homens da casa. Em Pernambuco, como no Brasil como um todo, não é raro a constatação de meninas grávidas de seus pais, avôs, tios ou irmãos. São segredos de família denunciados pelas barrigas. São destinos que se repetem da mais velha a mais nova. É a cultura do incesto que passa a formar e configurar verdadeiros haréns sob o sol escaldante. A elas não é permitido falar, reclamar ou mesmo reivindicar um futuro diferente, pois que nasceram sob fado das odaliscas do nordeste.

Outras tantas dessas mesmas Marias-meninas serão dadas a “famílias de criação” e não terão destinos menos dolorosos. Serão levadas aos grandes centros para trabalhar em casas de famílias alheias, sem salários, sem educação ou direito a saúde. Tornam-se mulheres no batente, e repetem o destino das escravas da época da colonização. A exploração do trabalho infanto-juvenil seja nos engenhos dos coronéis do interior ou nas “casas das tias afortunadas” que habitam as cidades grandes, são retratos de uma cultura pautada nas desigualdades e exclusões sociais.

Tem ainda as Marias-prostituídas, muitas das quais vendidas por suas famílias ou entregues as cafetinas e aliciadores que lhes ensinarão as dores da “vida fácil”. Violentadas na carne e na alma, descobrem cedo que a vida é por demais perigosa para quem cresce em condições adversas. Muitas se perdem em seus paradeiros, e talvez por não terem aprendido com a história infantil de Joãozinho e Maria não conseguem marcar o caminho de volta para casa. Mas talvez, neste ponto até questionem qual a real vantagem de voltar, pois que sempre formam Marias-sem-lar. Assim, as Marias-traficadas, sejam adultas, jovens ou crianças se perdem na imensidão de lugares onde o Estado não chega. Tornam-se Marias-anônimas em vida e em morte, muitas vezes longe das divisas territoriais da soberania brasileira.

Digo que existe uma diferença muito grande entre o ouvir falar sobre violência contra mulher e o vivenciar na prática profissional o exercício da assistência social.  No primeiro, a comoção torna-se momentânea, pois que com um simples movimento poderemos mudar o canal da TV, ou mesmo passar as páginas dos jornais e revistas, em busca de noticias mais confortáveis. Porém no segundo caso não se tem a escolha de mudar de lugar. A ética e o compromisso profissional nos impõem o respeito e a atenção necessária que caso solicita. É preciso acolher, exercitar a escuta, praticar a empatia e acima de tudo se livrar dos julgamentos pessoais e morais. Faz-se necessário equilíbrio pessoal e emocional, e acima de tudo aprender a lidar com as frustrações para entender as implicações envolvidas em tal fenômeno. Afinal de contas, lidar com a violência contra mulher é lidar com segredos de família, com temas tabus, com uma espécie de sujeira que se empurra para baixo do tapete sucessivamente, até não ter mais como esconder a enfermidade das relações.

Dizem que em algum momento de sua vida profissional, alguma situação ou pessoa assistida marcará para sempre sua vida e memória. Penso então que nesses longos anos em lutas pela igualdade de direitos teria material suficiente para encher mais que um livro. Mas neste aspecto, nada me marcou tanto quanto o “caso das três-marias”. Eram Marias-casadas, eram Marias-mães. A primeira chegou ensanguentada, com o rosto coberto por uma toalha, pela qual tentava esconder a dor e a vergonha de sua desonra. Era uma mulher espancada pelo marido, como tantas outras que superlotam as delegacias e os equipamentos da Assistência Social de qualquer município. Jogada ao chão, foi espancada violentamente a golpes de tijolo. A segunda apresentava hematomas por todo o corpo e encontrava-se acompanhada de uma das filhas. Sua dor não era menor e nem seu estado de saúde, físico e mental, menos grave. Por fim, a terceira, profissional autônoma teve que fugir de casa depois de sucessivas brigas que envolveram golpes de faca. Em comum, além de suas histórias de violência, as três se encontravam sob ameaças de morte. E logicamente temiam por denunciar o agressor. É a cultura do silencio imposto pela lei do mais forte, que encontra respaldo numa cultura machista que norteia as relações de gênero no Estado de Pernambuco, e logicamente no Brasil como todo.

Mas o que mais me impressiona é o fato da violência contra mulher não constar na pauta de candidatos, seja a presidente, governador, senador, deputados, prefeitos ou vereadores. Não pelo menos, com a seriedade necessária. Durante toda a campanha das eleições de 2010 (que ainda não terminou) pouco ou quase nada se falou sobre o número de mulheres assassinadas no Brasil. O tema até chegou a ameaçar os discursos acalorados dos políticos, mais dizia respeito ao caso de uma mulçumana condenada à morte por apedrejamento (alguém se lembra do Caso Sakineh?), e talvez por isso não apresentasse semelhança com nossa realidade cultural. Será? Pois ontem mesmo foi noticiado pela Rede Globo Nordeste a morte de mais duas mulheres na Região Metropolitana do Recife.

Uma foi barbaramente assassinada a tiros disparados por três ou quatro homens, durante a noite, em um matagal de Olinda; a outra foi morta a golpes de martelo deferidos pelo marido, dentro de uma residência localizada em Jaboatão dos Guararapes. Talvez a diferença consista no fato de que o apedrejamento no Irã aconteça em praça pública, enquanto que nos casos em questão, tanto o matagal noturno quanto o interior de uma casa se configuram como espaços do privado. Então o que parece nos chocar não são os requintes de crueldades, mas sim, o fato de sermos obrigados a presenciar tais assassinatos, o que nos torna cúmplices e exige decisões pessoais. Ao presenciarmos o ato ficamos acuados pela proximidade testemunhal, o que pode implicar em envolvimento inclusive judicial.

Mas os números de Pernambuco apontam 189 mulheres assassinadas no Estado em menos de dez meses, ou seja, no curto período de janeiro a outubro deste ano (NETV, 08.10.2010). Isso significa quase 19 mortes por mês, o que equivale dizer que em média a cada 36 horas uma mulher pernambucana é barbaramente assassinada. Se considerarmos os casos, nos quais tal modalidade da violência não chega as “vias de fatos” (como diriam nossos matutos machistas), mas deixa sequelas que nem sempre serão apenas físicas, mas também morais e psicológicas podemos entender que esse quantitativo é pelo menos o triplo. Então, numa equivalência hipotética teríamos uma média de duas mulheres agredidas e violentamente espancadas por dia.

Neste sentido, não seria lógico pensar que os custos financeiros e sociais relativos aos cuidados e socorros dessas mulheres são bem maiores que os recursos necessários as ações preventivas? E antes mesmo que pensem que estes assassinatos são casos isolados, relembro que a mais ou menos quinze dias os jornais divulgaram o caso de uma ex-atleta do Sport Clube que foi assassinada a tiros em frente de sua casa, estando esta ao lado de seu filho. Na mesma semana, duas mulheres foram alvejadas por balas, disparadas dentro de uma clínica odontológica localizada no centro do Recife, por um ex-namorado inconformado com o fim de uma relação amorosa. E essas são ocorrências que tem se dado apenas na área metropolitana, o que a meu ver tem evidenciado alguns equívocos por parte do Governo no entendimento relativo ao enfrentamento da violência.

Afinal de contas, como já dito anteriormente e comprovado por estudos e pesquisas científicas, não se diminui violência sem se investir na educação de qualidade e na diminuição das desigualdades sociais. Assim, não basta investir na aquisição de novas viaturas, no contingente de agentes policiais e/ou na proliferação desenfreada de câmeras de monitoramento. Mas, ao contrário, é preciso investir esforços, e recursos logicamente, na formação cidadã e na reestruturação e transformação cultural da sociedade pernambucana. Essas situações cotidianas de violência contra a mulher têm evidenciado a fragilidade dos governos (seja no âmbito federal, estadual ou municipal) no enfrentamento ao fenômeno. E destaco a dimensão cultural porque facilmente se constata na prática o quanto é difícil o entendimento por parte de muitos dos gestores públicos, promotores, delegados e agentes de polícia em relação a seus papeis na efetividade do cumprimento e importância, por exemplo, da aplicabilidade da Lei Maria da Penha.

Então, o que fazer se as próprias leis ainda são regidas quase que majoritariamente por homens, e estes, em sua maioria, partem de uma introjeção cultural do “poder masculino” sobre a mulher? O que se tem verificado na ponta, são posicionamentos e práticas profissionais respaldadas nas relações de desigualdades de gênero. É comum o entendimento de que mesmo depois de registrar a agressão em delegacia a vitima retorne e retire a queixa contra o agressor. É o que se chama do ciclo da violência. Isto é fato. Mas é fato também que nem sempre se considera os motivos que a levam as vitimas a procederem dessa forma, muitas vezes, motivadas por ameaças em relação à vida dos filhos, falta de condições financeiras para o sustento e manutenção dos mesmos, falta de qualificação profissional para se inserir no mercado de trabalho, vergonha diante dos filhos e sociedade, sentimento de fracasso diante dos planos de uma família feliz, bem como pela morosidade e ineficiência da garantia de proteção a vida.

Para que é vitima, talvez o grande conflito consista no fato de questionar no que adiantaria denunciar se o agressor, na maioria dos casos, não é preso imediatamente? Quais as garantias se apresentam para uma mãe que tem seus filhos reféns? E neste aspecto, talvez seja interessante repensar também em como garantir que todos terão um final feliz se as delegacias ainda teimam em não cumprir com suas responsabilidades? E como efetivar a garantia de direitos se não conseguimos cumprir com nossas obrigações no sentido de garantir a vida? Assim, até que ponto as mulheres não se tornam mais uma vez vitimas do próprio sistema, uma vez que não conseguem se sentir suficientemente seguras em seus intentos? E claro que neste aspecto, devem-se considerar os esforços e iniciativas governamentais no sentido do fortalecimento da rede de enfrentamento, seja através da ampliação dos Centros de Referência Especializada da Assistência Social – CREAS Regionais em cada Região de Desenvolvimento do Estado, bem como das Secretariais Especiais da Mulher nos municípios com os maiores índices de violência registrados.

Mas acima de tudo, na busca pela garantia de direitos das tantas Marias violentadas diariamente é preciso um maior investimento coletivo no processo de mudança cultural. É preciso uma reestruturação educacional e talvez criar mecanismos punitivos pela isenção de responsabilidades. Precisa modificar o processo pelo qual se faz necessário convencer delegados e juízes a colocar a lei em prática. Se a lei é para ser cumprida, não cabem questionamentos pautados em posicionamentos pessoais, que recheados de julgamentos morais e religiosos colocam em risco de vida milhares de mulheres. E neste sentido, mostra-se assertivo a implantação das Delegacias da Mulher. Porém, o que se questiona é até quando as ações se manterão dentro de uma cultura sectarista. E neste ponto, acredito que investir ainda mais no fortalecimento das mulheres enquanto sujeitos de direitos tem se mostrado como forma viável de se combater as desigualdades.

Na minha própria família são seis as Marias, mais talvez por terem herdado apenas o santificado simbólico como sobrenome, tem se mostrado mulheres da contra cultura machista. Não são feministas, mas lutam cada uma a seu modo por igualdades de direitos. Tornaram-se aos longos dos anos, mães, profissionais e cidadãs. Acredito que este é fruto de um processo de educação de base, por isso lembro que quando criança minha mãe nos mostrava nos céus três estrelas que se localizam próximas ao cruzeiro do sul. Estas são denominadas Marias. E mesmo sem grandes conhecimentos em astrologia, referia-se ao asterismo (grupo de pequenas estrelas) na constelação de Órion (ou constelação equatorial), formada por três estrelas brilhantes, que em linha reta, mostram-se igualmente espaçadas, sendo popularmente conhecidas como as três-irmãs e/ou as três-marias.

E dela sempre ouvia que estas eram em igual proporção aos três-Josés, tanto em quantidade quanto em intensidade de luz. Com isso, minha mãe que também é Maria, mostrava ao mesmo tempo em que nos ensinava a doutrina da harmonia entre os sexos através de uma espécie de equidade celestial. E era como se desejasse nos revelar que o que se via no céu deveria ser extensivo a terra, pois que tal ensinamento era do campo do divino, era sobrenatural e por isso perfeito e primoroso. Aprendemos então que aquela deveria ser uma regra que estava acima da natureza humana, pois que sobrenatural diz respeito a tudo que é ligado à ação da graça divina, que por sua vez, está acima da essência e do agir da criatura. Hoje penso se este não seria um caminho interessante para se reeducar nosso povo. Se o fortalecer do elo humano com o divino e/ou místico, independente de credos e segmentos religiosos, não contribuiria para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária.

Justifico minhas reflexões saudosistas não por acreditar que na época de minha infância as relações de gênero fossem mais igualitárias e justas. Não, mas por confirmar que o processo de transformação cultural é possível e que neste processo as mulheres têm importância e papel fundamental, o que justifica a luta secular do movimento feminista no Brasil e no mundo. Talvez o fortalecimento junto a nossas crianças e jovens quanto ao entendimento de que a delicadeza e a sensibilidade também são do masculino, se apresente como estratégia eficaz para minimizar o medo dos homens em dividir poder. Se a supremacia masculina é fruto de uma construção social, logicamente torna-se passível de mudanças, o que já se revela na modernidade. Daí a acreditar na educação como forma de acelerar transformações.  Garantir os direitos das mulheres hoje se apresenta como necessidade de sobrevivência social e econômica de qualquer sociedade. É fato que no Brasil, não somos mais maioria e preciso ajustar as regras e normas sociais a fim de se garantir maior harmonia.

E talvez neste sentido seja interessante pensar no quanto somos atrasados, pois que pela primeira vez, em mais de quinhentos anos, teremos agora a possibilidade de sermos governados por uma mulher. Não que esse fato por se só justifique meu voto, mas por representar o inicio de uma mudança comportamental e cultural que se faz urgente, até porque a violência contra mulher a muito já se transformou em um problema de saúde pública. Os custos com a violência representam inaplicabilidade de recursos em desenvolvimento, seja social, econômico ou humano. E se a pátria é mãe, nada melhor do que uma representante das Marias para geri-la. E administrar uma nação independe de sexo, mas sim de competências, habilidades e capacidade profissional.


Um comentário:

  1. Fiquei impressionada com o seu blog, se tivessemos mais cidadões como você aqui no Brasil viveriamos talvez de maneira mais justa. Sempre acreditei que as pessoas com a consciência plena da gravidade em que vivemos os nossos dias de hoje, poderiam de alguma forma contribuir para mudar o mundo... Parabéns!!! Pelo conteúdo maravilhoso de seu blog. Fazia muito tempo que eu não via coisas tão bacanas... Adorei... Aleika Barros.

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