quarta-feira, 18 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capitulo XV - Exploração Sexual de Meninos



















Auto Retrato - Recife/PE - 2010

EXPLORAÇÃO SEXUAL COMERCIAL DE MENINOS E MENINAS NAS RUAS DO RECIFE: Que Invisibilidade é Essa?

Decidir retornar aos jovens que se aglomeram nos finais de semana, durante o final da tarde e inicio da noite, no cruzamento entre a Rua José de Alencar e a Rua do Giriquiti, devido à diversidade de sujeitos que compõem os grupos sociais que se misturam e interagem entre si, demarcando através das performances de gênero seus grupos de pertencimento. São verdadeiramente tribos noturnas que se aglomeram todas as noites a partir das dezessete horas, com maior intensidade nas quintas e sextas-feiras, e menor fluxo aos sábados e domingos, no espaço que circunda o Shopping Boa Vista. Assim, entre os bares “Mustang”, “Penthehouse” e “Sete Cores”, tornam-se intensas as circulações grupais de “Darks”, “Emos”, “Jovens Travestis”, “Gays”, “Boys de Programa”, “Mariconas”, “Lésbicas” e “Jovens Héteros”, que travam conversas e encontros, onde a livre expressão sexual parece garantida.

É neste espaço, especificamente, que a socialização gay recifense acontece de fato e onde os papéis e performances de gênero parecem não seguir modelos rígidos. Este cenário multifacetado parece se organizar de forma a permitir um redesenhar situacional, onde não raramente se consolidam parcerias eróticas e afetivas entre as mais diversificadas categorias sexuais. São comuns os contatos íntimos e erotizados que incluem beijos, abraços e carícias, e que se dão tanto entre casais héteros quanto homossexuais. Mas essas interações se dão além das identidades preconizadas e revelam-se em parcerias inimagináveis aos mais ortodoxos. Desta forma, viabilizam-se fortes interações entre garotas heterossexuais e garotos homossexuais, ou vice-versa; lésbicas e gays, lésbicas e draggs, jovens travestis e gays, dragg queens e garotas heterossexuais, Emos e Emos, Dark e Dark, e mais uma infinidade de possibilidades, onde muitas vezes as mãos e as bocas, bem como os sarros eloquentes não se limitam às relações paritárias entre duplas, mas permitem trios, quartetos ou maiores grupos de pessoas. Os roteiros sexuais se mostram redefinidos dentro de um contexto de fluidez e transitoriedade erótica onde as categorias sociais mostram-se e/ou tornam-se insuficientes e inadequadas enquanto instrumentos de classificação para as identidades de gênero.

E ainda que o público seja predominantemente jovem, entre a faixa etária dos 16 aos 20 anos de idade, observa-se também uma grande frequência dos “gays de outras gerações”, entre as quais se observa uma constância cada vez maior de meninos e meninas com menos de doze anos agrupados aos “adolescentes mais novos” (denominação usual para quem ainda não completou os dezesseis anos de idade). Também os homossexuais mais velhos, normalmente denominados pelos jovens como “as tias”, “as tias velhas” ou “as mariconas”, envolvem-se em encontros afetivos com seus parceiros estáveis, ou ainda, em relações de paqueras e encontros fortuitos com alguns boys de programa que buscam um “pagante” ou mesmo um “cliente”.

A primeira vista misturadas, estas categorias parecem se dividir e se agrupar de acordo com as afinidades, ideologias e estilos, sem, contudo estabelecer demarcações claras quanto a territórios específicos. Mesas de bares, muros de empreendimentos comerciais, escadarias de edifícios e esquinas com pontos escuros das duas ruas servem como cenário para simples conversas ou mesmo encontros amorosos. Entre estes jovens as relações se configuram no já tão tradicional estilo “ficar”, onde o fato de estar com alguém num determinado dia ou momento não significa necessariamente compromisso ou ligação amorosa e/ou afetiva estável. Assim, essa modalidade de relação e interação afetiva/sexual possibilita que em muitas situações as trocas de casais se dêem em momentos simultâneos, muito próximos aos encontros estabelecidos também em boates e casas noturnas.

Porém um aspecto que chama a atenção é o envolvimento e interação entre adolescentes e homens adultos, que muitas vezes se efetivam as claras e diante, inclusive, de agentes de segurança pública. Em meio a tanta diversidade de estilos e identidades, uma das categorias que mais vem se destacando no local é formada por crianças e adolescentes inseridos no universo da prostituição masculina. Não é preciso muito sacrifício para se contatar os encontros entre garotos jovens com homens adultos que se dão em toda a extensão do perímetro, principalmente no estacionamento próximo a bifurcação com a Rua do Progresso ou ainda nas mesas dos bares. Tal fato evidencia em si a consolidação, e consequentemente a naturalização (e porque não dizer banalização) da exploração sexual de meninos nas ruas do centro do Recife. O tema já destacado em minha pesquisa sobre a prostituição masculina (ver também Viana, 2010), agora ganha mais força com a reportagem do Jornal do Commércio, intitulada “Garotos de Aluguel”, publicada no dia 01.08.2010.

O que se destaca, de certa forma nesta reportagem-denuncia é o caráter de permissividade social e público que se mostra contraditório ao tão propagado status de “invisibilidade” atribuído ao fenômeno da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes no Brasil, mas que em Recife parece se mostrar institucionalizada. Assim, tal situação a meu ver revela-se enquanto negligência dos órgãos públicos seja nas instanciais federal, estadual ou municipal, que têm se mostrado ineficientes quanto ao enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil. É essa ineficiência que termina por configurar o autorizo legal e social a ação dos agressores, que se personificam tanto nas figuras dos agenciadores quanto dos consumidores das práticas sexuais comerciais envolvendo meninas e meninos. Estes compõem diretamente a rede de exploração sexual comercial de crianças e adolescentes, que nos dias atuais mostra-se como o terceiro comercio contraventor mais lucrativo do mundo, perdendo apenas para o tráfico de armas e o tráfico de drogas.

Afirmam alguns especialistas que as Redes de Exploração Sexual se consolidam a partir da fragilidade do Estado, e neste sentido, observa-se nas ruas do Recife que tal prerogativa torna-se uma realidade eminente. Sempre que tenho possibilidades, sejam em encontros de classes, congressos, seminários ou palestras relativos ao tema, questiono sobre que invisibilidade se está realmente falando. Se daquela que não conseguimos visualizar devido as estratégias utilizadas pelos agenciadores, e também pelos executores, que objetivam camuflar suas ações; ou sobre a situação de não querermos, e consequentemente nos negarmos a ver de fato uma realidade tão explícita. Nesta perspectiva tento uma reflexão sobre quantas vezes se fará necessário, e por que meios se poderá informar e divulgar a ação dos agenciadores de meninos e meninas, que aliciados, são usados para comercialização sexual em pontos estratégicos da cidade? O que será preciso para que os órgãos e equipamentos que integram a Rede de Proteção e Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, incluindo-se a Rede ESCCA (denominação para Rede de Enfrentamento a Exploração Sexual Comercial de Crianças e Adolescentes), tanto estadual, quanto municipal, consigam oferecer respostas a sociedade, e principalmente as centenas de crianças e adolescentes exploradas em nossas ruas?

Na tentativa de retirar o tal fenômeno dessa invisibilidade, talvez valha a pena, mais uma vez, destacar que o envolvimento e inserção de meninas nas práticas sexuais comerciais podem ser facilmente verificados, seja durante o dia ou à noite, na Rua Artur de Lima Cavalcante. O trecho que margeia o Rio Capibaribe após a Ponte do Limoeiro, torna-se quase que percurso obrigatório para quem vem pela Rua da Aurora e pretende chegar a Cruz Cabugá. Esta mesma rua nos leva a Vice-Governadoria que se localiza a poucos metros do local. E se atravessarmos a referida ponte, chega-se ao prédio da Prefeitura do Recife, que por sua localização e altura permite que se visualize através dos milhares de janelas, a movimentação frenética de meninas e homens entre o manguezal. Considerando tais aspectos, nos resta apenas indagar: a exploração sexual de meninas nas ruas do Recife é realmente invisível? E se assim o é, para quem?

Se passarmos pela Rua Oliveira Lima e seguirmos pela do Riachuelo, não será possível observar a presença de meninos e meninas (estas, em menor proporção) num movimento também frenético de entra e sai de veículos conduzidos por adultos? Qualquer órgão ou instituição, seja público ou privado, que atue no enfrentamento a exploração sexual e que se dispuser a contribuir para visibilizar tal realidade, terá obrigatoriamente que circular por tais ruas. E digo mesmo de cátedra que não se fará necessário dispensar tanto tempo assim, pois que a frequência e constância de garotos na faixa de doze a dezessete anos no local é enorme. E neste sentido, outro questionamento que faço se refere a quais resultados concretos sobre a atuação dos agenciadores da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes conseguimos até agora com a instalação de uma câmera de monitoramento bem no coração da pracinha do Riachuelo? Será que já se tem dados suficientes para passarmos a considerar tal fenômeno social como visível? Será que através deste equipamento tão sofisticado não conseguimos identificar os responsáveis pelo agenciamento dessas crianças e adolescentes? Ou realmente a questão desta modalidade de exploração sexual continua invisibilizada às autoridades competentes? Talvez então devamos pensar que esta não é uma atribuição da Defesa Social, mesmo que componha a Rede ESCCA (será?).

E por fim, no espaço entre a Rua Giriquiti e a Rua José de Alencar, ou mesmo na Av. Conde da Boa Vista em frente ao shopping, ou ainda no seu cruzamento com a Rua Gervásio Pires, não se observa grande quantidade de adolescentes em pontos de prostituição? Nestes mesmos pontos não se observa a frequência de veículos que param, sinalizam e abrem-se a entrada de garotos, que muitas vezes, não completaram os quinze anos? Será que nestes pontos também não foram instaladas as “salvadoras câmeras”? Talvez neste sentido possamos questionar se elas não atendem a tal finalidade, ou melhor, se quem as monitora não entende sobre exploração sexual, ou ainda, desconsidera tal gravidade. Talvez estas câmeras tenham apenas como objetivo reprimir ações violentas que se traduzam em assaltos ou conflitos que envolvam brigas. E se esta for realmente apenas sua finalidade, talvez os recursos públicos não estejam sendo devidamente potencializados.

Se considerarmos outro aspecto comum a tais espaços, e que se relaciona diretamente ao uso e venda de drogas, que variam entre vinhos baratos, cervejas e vodca, misturados à maconha, loló, lança-perfume e especificamente o crack, as ações de repressão nestas áreas não deveriam ser mais efetivas? Se aos cidadãos comuns é fácil a visualização de crianças e adolescentes atuando na venda, consumo e/ou distribuição de crack, o que falta aos governos para "visibilizarem" a constatação de dois mercados contraventores – tráfico de drogas e exploração sexual comercial, que se consolidam nas ruas centrais do Recife? E neste caso, quem estará por traz do agenciamento desses tantos meninos e meninas? Não serão os traficantes e aliciadores que encontram nestes e em tantos outros espaços da cidade as condições necessárias para a ampliação de seus comércios? E mais ainda, não seria tão importante quanto à atuação numa perspectiva de repressão, a efetivação de ações preventivas? Não nos seria interessante e fundamental pensarmos na educação e informação enquanto instrumentos essenciais a redução dos índices de violência e violação de direitos?

Penso que talvez devêssemos então, investir não só em câmeras de monitoramento, mas aplicar melhor os recursos públicos em olhos mais humanos, favorecendo inclusive as condições necessárias para que estes se tornem mais sensíveis e principalmente seletivos no que se refere ao registro de imagens e fatos. E neste caso, saliento que é preciso treinamento para que possamos enxergar o que realmente se apresenta diante de nossos olhos, e não penas observar paisagens. Porque talvez assim consigamos de forma efetiva e verdadeira retirar a exploração sexual comercial de meninos e meninas da tal fantasiosa invisibilidade social. E ainda, talvez assim, consigamos efetivar também políticas públicas que se mostrem eficazes no sentido de garantir direitos a esse segmento da população, para que finalmente consigam vivenciar a infância e a adolescência em conformidade com as prerrogativas e preceitos da Constituição Federal, que preconiza o direito a igualdade e a vida digna a todos os cidadãos brasileiros; bem como, em atendimento aos regimentos do Estatuto da Criança e Adolescente que norteiam as diretrizes para a efetivação da garantia de direitos dos mesmos.

Pensem bem, nem sempre o que não conseguimos ver de imediato torna-se invisível aos olhos.


















Auto Retrato - Recife/PE - 2010

CARVALHO, Ciara e RIOS, Miguel. Garotos de Aluguel - Jornal com Commercio, Caderno Especial - Recife, 1º de Agosto de 2010.

SOUZA NETO, E. N. Entre Boys e Frangos – análise das performances de gênero dos homens que se prostituem nas ruas do Recife. Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2009.


SOUZA NETO, E. N. Os pequenos boys de programa: notas etnográficas sobre meninos em situação de exploração sexual. Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes: reflexões sobre condutas, posicionamentos e práticas de enfrentamento/org. Jaileila de Araujo Menezes-Santos, Luis Felipe Rios – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.

VIANA. N. J. Q. ’É Tudo psicológico! Dinheiro... Pruuu! Fica logo duro!’: desejo, excitação e prazer entre boys de programa com práticas homossexuais em Recife”. Dissertação de Mestrado – Programa de pós-graduação em psicologia – UFPE, 2010.

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