segunda-feira, 2 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo X - Vozes que Vêm das Ruas

Nossa Origem Mercantilista


Em Recife se vende de tudo! Podemos mesmo dizer que habitamos um grande mercado de variedades que se estende pelas principais ruas da cidade. Assim, além das lojas de departamentos, incluindo grandes magazines, shopping center, sapatarias, drogarias, restaurantes, hotéis e mais uma enorme quantidade de supermercados e mercadinhos, podemos ainda encontrar frutas e legumes nos antigos mercados livres ou bancas de feiras. E se durante o dia o mercado formal dita as regras do sistema de compra e venda, é durante a noite que a informalidade invade ruas e becos para se consolidar enquanto espaços do comercio alternativo e informal.

Para quem busca a liberdade de escolha e melhores preços, livres da grande agitação diurna, as pequenas feiras livres das ruas centrais se mostram excelentes alternativas viáveis. Torna-se cada vez mais constante a presença de feirantes, que aglomerando barracas e/ou carroças de madeiras nas vias públicas, oferecem grande quantidade de legumes, verduras, frutas e hortaliças. Mas também se vende outros artigos, entre os quais CDs e DVDs (pirateados, claro) por preços inimagináveis. Em determinados casos, pode-se mesmo adquirir três filmes inéditos em um desses tantos discos digitais de vídeos. E acreditem, ainda pode-se obter certificado de garantia, pois que na embalagem encontra-se o nome e número do celular do produtor responsável, favorecendo a troca caso o produto apresente defeitos. Também não se torna muito difícil encontrar filmes que ainda estão sendo anunciados no circuito comercial formal, o que viabiliza sair na frente e assistir aos longas-metragens antes de todo mundo, e ainda no conforto de casa (É a velha cultura da Lei de Gerson, lembram?).

Essa informalidade se estende ainda ao segmento gastronômico e de entretenimento e laser. No centro do Recife estabelecem-se verdadeiras praças de alimentação, a exemplo da Rua Sete de Setembro. Ali, vários comerciantes dividem espaços e vendem desde o simples cachorro quente até comidas mais elaboradas da culinária nordestina, tais como sarapatel, feijoada, cucus e vaca atolada. A variedade de bebidas acompanha a diversidade do fest-food popular, indo da cerveja bem gelada as tradicionais cachaças de fabricação regional.

Outro ponto que se destaca é pracinha do Riachuelo, que no cruzamento com o Corredor do Bispo forma um verdadeiro empório ou complexo comercial da informalidade. Pastéis, coxinhas, empadas, bolos dos mais variados sabores se aliam aos espetinhos e arrumadinhos de charque ou carne de sol. Porém esse perímetro oferece outros produtos e serviços que vão além dos comestíveis. Estabelece-se também o mercado sexual, o que torna o espaço em principal território da prostituição masculina (Souza Neto, 2009; Viana, 2010). Assim, o ato de comer pode ir muito mais além do que o tradicional hábito da degustação.

Constata-se então que Recife é um grande centro comercial, onde também se compra de tudo, inclusive sexo, amores e vidas. E neste aspecto, alguns comerciantes, em determinadas situações tornam-se também mercadorias vivas. A consolidação do mercado sexual nas ruas do centro trás como consequência certa naturalização de dois fenômenos envolvendo crianças e adolescentes: a exploração sexual comercial e o trabalho infantil. Assim, torna-se também cada vez mais constante a presença destes em espaços e atividades insalubres, atuando também, em sua grande maioria como distribuidores ou vendedores de drogas, principalmente o crack, que há muito invadiu nossas principais ruas.

Mas o que realmente me chama muito atenção e pretendo destacar são as estratégias de marketing desenvolvidas e utilizadas pelos comerciantes ambulantes. São as vozes que vem das ruas e que tornam o comércio local em verdadeira escola aberta. Um dos bons exemplos, refere-se a um comerciante de confeitos (designação popular equivalente a balas). O seu produto é originalmente regional e chama-se nego-bom, que nada mais é do que o resultado do doce de banana cristalizado, vendido em pequenos pedaços embrulhados em plástico transparente. Sua estratégia de venda consiste no ato de chamar a atenção do povo, gritando: “quarenta nego-bom é um real! Quarenta nego-bom é um real! Você paga pouco, e come muito!” E para trabalhar, o pequeno empreendedor traja paletó e gravata, no melhor estilo grande administrador. E como todo bom gestor, investiu em tecnologia avançada como forma de ampliar seus negócios. Assim, atualmente não desgasta mais sua voz, pois que dispõe de um alto falante que potencializa sua mensagem gravada. Quem mora em Recife, não passa despercebido pela Rua da Aurora sem ouvir a insistente promoção, que de tantas vezes repetida (e consequentemente escutada, devido ao tradicional engarrafamento) torna-se também gravada em nossa memória.

Passando pela histórica Ponte de Ferro, uma das que liga o Bairro da Boa Vista ao de São José, não se pode deixar de prestigiar as perfomances de uma vendedora de inseticidas. Ela, com cabelos longos e louros, se posta parada, por várias horas seguidas em uma das extremidades de acesso. Em determinados momentos, quase que mecanicamente, apóia o pequeno tabuleiro nos quartos (figurativo popular de ancas ou quadris), alisa os cabelos e recita: “Veneno pra rato, barata mosca e formiga. Mata, seca e não fere. Veneno pra rata, barata, mosca e formiga. Mata, seca e não fere.” Em seguida volta a se calar em intermináveis minutos de silêncio e apatia solitária. E assim permanece em meio a multidão que se acotovela e se esbarra pelas laterais da ponte.

Da minha janela indiscreta, escuto uma voz que invade a Avenida Conde da Boa Vista. Para mim, torna-se irresistível observar um senhor negro que em vestido de chita colorida, carrega um carro-de-mão cheio de macaxeira. Em paradas estratégicas, o negociante pega uma macaxeira enorme com a ponta descascada, coloca na altura da cintura e grita: “Olha a rosinha, olha a rosinha. Grande e grossa... Eita macaxeira danada de boa. Olha a rosinha, olha a rosinha. É dura, mas fica mole visse!” E assim, provoca risos e angaria clientes, que muitas vezes entram no clima amistoso de gozação.

Tem também um outro que comercializa certo titulo de capitalização local. Andando pelas ruas ele parece sempre reconhecer alguém que passa do outro lado. E acenando freneticamente no meio do povo, se precipita a gritar: Ei! Ei! Queres. Só tem o teu visse! Ei! Ei! É o (...) da sorte! E diante das reações assustadas das pessoas que se espantam com seu timbre de voz, o desacatado vendedor parece se divertir e seguir sua rotina de trabalho. Enquanto isso, mais um senhor, sentado próximo a entrada de meu prédio apela às crianças, que acompanhadas pelos pais, observam encantadas seus produtos: "Vai neném, chora que papai compra. Vai, vai, chora neném que se papai não comprar, mamãe compra. Chora neném!"

Confesso que alguns criativos apelos comerciais tornam-se mesmo grandes motivos para gargalhadas e alívio do stress urbano. E afirmo ainda, que não é muito difícil me pegar sorrindo diante de tanta malícia e sagacidade popular. Que muitas vezes, acompanhadas de performances mirabolantes ou audaciosas conquistam a atenção e admiração do público. Considero que essas são as vozes das ruas, que logicamente se transfiguram-se em sons da cidade, pois que são rotineiros, e por isso, tornam-se características.

Mas em outras situações, tais abordagens também se mostram inconvenientes. Em determinado restaurante do centro, por exemplo, uma jovem, sentada a um banco de madeira parece provocar os transeuntes com suas batidas de palmas extremamente ruidosas, que acompanhada de uma voz sonoramente incômoda, parece gritar desalentadamente: “Vem gente, almoçar! Vem gente, que está acabando!”. E seu clamor é tão estridente que parece perfurar nossos tímpanos, e assim logicamente, nos faz perder o apetite. Porém esta mesma lógica enfadonha e desagradável parece ter se tornado regra entre os estabelecimentos voltados a alimentação popular. Tanto que em outra rua que forma uma viela, próximo ao referido empreendimento comercial, outra jovem, também a porta, grita chamando os clientes: “Olha, hoje tem vatapá. Hoje tem caruru. Tem feijão e galinha. Vem que é baratinho e é tudo um “reaus” (Reais). Vem que é baratinho e “isso pode”!” (E isso, numa referencia esdruxulamente caricatural da comediante Fabiana Karla).

Outra estratégia importuna é a utilização de carros de som que potencializam as informações estrídulas e sibilantes que alguns anunciantes utilizam como forma de despertar o interesse popular através de uma graça forçada (Penso mesmo, que neste sentido os órgãos competentes deveriam ser mais eficientes em suas ações). Em algumas dessas façanhas, esse pérfido marketing adota ainda como estratégia a contratação de garotas jovens, que em minúsculos shortinhos (no melhor estilo “BC”) realizam ou simulam coreografias eróticas. E aí entram também as bicicletas de som que desfilam com potentes caixas amplificadoras divulgando os produtos de seus clientes. Afora as carroças musicais, espécies de carrinhos-de-mão em madeira, dotados de aparelhos de sonorização onde os ambulantes demonstram as qualidades e variedades de seus CDs pirateados. Assim, muitas vezes, essa mistura transforma-se em verdadeiro ruído intolerável e atróz. São as vozes dos bárbaros.

E por falar em barbaridade, lembro de duas situações onde o bizarro torna-se mote para as estratégias de venda e consumo. Numa delas, um carro antigo, tipo Brasília, com o parta-malas aberto anuncia através de um alto falante: “Venham ver a garotinha. A garotinha está aqui e precisa de sua ajuda.” E tal apelo destina-se ao pretenso tratamento de uma jovem com deformidades físicas, que ri inocentemente diante de seus espectadores curiosamente admirados. Penso que dentre tantas, essa seja a situação mais desagradável e desumana na tática de angariar benesses, pois que se utiliza do sofrimento do outro para provocar a sensibilização e piedade alheia.

Numa outra, um determinado cinema destinado a exibição de filmes pornôs, anunciava em um fusca sonoro: “É hoje! No cinema (...) a grande promoção do almoço. Você paga uma entrada e assiste a três filmes eróticos. É hoje! Grandes estrelas em grandes cenas. É hoje! E o primeiro filme é, A Sueca Safada. Depois, Apalpe-me Pela Manhã. E em seguida, Absurdamente Tua. Faça seu almoço ficar mais gostoso, no cinema (...).” E confesso que essa é minha predileta no rol dos desalentados marqueteiros oportunistas que muitas vezes invadem nossas ruas. E não falo aqui de puritanismo, mas apenas em relação à forma ultrajante com que a mulher é transformada em mercadoria e anunciada como produto de consumo barato. E acredito que a prostituição como qualquer outra forma de atividade remunerada deva ser respeitada em suas atribuições e sentidos.

Assim, nas ruas do Recife se proliferam formas e métodos de vendas e consumos, que vão com tempo se ajustando ou se adequando as novas situações e realidades urbanas. E essas acomodações parecem também provocar mudanças espaciais e geográficas. Em algumas situações chegam mesmo a consolidar novos espaços e territórios de varejos. Assim, foi com a instalação do camelódromo na Av. Dantas Barreto, espécie de shopping popular, que hoje concentra grande quantidade de camelôs em pleno centro da cidade. O mesmo se evidencia atualmente com o fenômeno da prostituição no perímetro entre a Rua da Soledade e Gervásio Pires, como também na demarcação de território dos adolescentes e jovens das “tribos alternativas” que se aglomeram na Rua José de Alencar, a partir da instalação do shopping Boa Vista. É neste sentido, que o comercio formal e informal de Recife parece fluido e flexível o suficiente para se instalar e se reinstalar em novos espaços.

E na cidade onde se vende de tudo, e consequentemente se compra e consome de tudo, o mercado torna-se dinâmico e renovador (e inovador) constantemente. Talvez seja essa uma característica herdada dos antigos mascates que transformaram Recife no principal pólo de desenvolvimento econômico de Pernambuco. E neste ponto, acredito que para se entender a lógica comercial e a identidade cultural de um povo se faça necessário retroceder na história para encontrar os princípios mercantilistas incorporados em nossa sociedade.

E neste contexto, penso mesmo que nossa habilidade para o comércio começa a se consolidar ainda em 1654, após expulsão dos holandeses de nossas terras, comprometendo os resultados e lucros dos grandes produtores de açúcar daquela época. Durante a crise devido a baixa do açúcar no mercado internacional, os senhores de engenhos ainda possuíam o controle político na Câmara Municipal de Olinda. Porém em Recife, os portugueses controlavam a atividade comercial graças às melhorias e empreendimentos realizados durante colonização holandesa.

Olinda por ser a capital da capitania, aglomerava a burguesia em seus grandes casarios, pertencentes aos poderosos fazendeiros, que endividados precisaram recorrer aos mascates portugueses que cobravam altas taxas de juros. Destruída pelas seguidas guerras que objetivaram a expulsão dos holandeses, a Câmara da cidade decidiu pelo aumento dos impostos, inclusive para os mascates. Inconformados os comerciantes de Recife decidiram pela emancipação política e econômica, elevando o antigo povoado à condição de Vila, e assim, formando sua própria Câmara Municipal. Temendo que os comerciantes legalmente pudessem exigir o pagamento das dívidas, os latifundiários de Olinda decidiram impor as fronteiras entre as duas cidades. E em 1710 (exatamente a trezentos anos atrás), iniciou-se a guerra dos mascates, que só terminou um ano depois com a prisão de todos latifundiários olindenses por determinação do novo governante nomeado pela Coroa Portuguesa

Recife foi elevada a condição de cidade, transformando-se posteriormente em capital da capitania. E com a vitória dos comerciantes, tal guerra apenas reafirmou o predomínio do capital mercantil sobre a produção agrícola. E da antiga alcunha depreciativa dado aos comerciantes portugueses pelos habitantes de Olinda, os mascates tornaram-se grandes mercadores ambulantes que percorriam ruas e estradas para vender objetos manufaturados, tecidos, jóias e uma variedade de produtos

A tradição do porta em porta se consolidou nos tempos modernos através dos “prestanistas”, que em pequenas cadernetas registravam os valores parcelados dos produtos vendidos aos seus clientes. Era a lógica do crédito, acrescido de juros. Lógica inversa dos ambulantes atuais, que devido aos baixos juros (ou ausência dos mesmos), ou inda, procedência clandestina de seus produtos, conseguem estabelecer valores bem mais acessíveis em comparação ao mercado formal. É à base da informalidade, que talvez se configure como uma das bases e princípios de nossa cultura.

Somos mercantes a mais de trezentos anos, e uma cultura secular se consolida na perpetuação de costumes e conceitos valorativos e morais por gerações seguintes. Tanto que cultura pode ser entendida enquanto conjunto de características humanas, não inatas, mas sim que se desenvolvem e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade. Consequentemente podemos entender que tal vocação comercial configura-se como parte ou aspecto de nossa vida coletiva, diretamente relacionada à produção e transmissão de nossos próprios conhecimentos, à nossa criação intelectual e artística através dos tempos.

Assim tornamo-nos ambulantes dentro do nosso próprio espaço geográfico, o que nos confere mobilização e fluidez, tanto cultural como geográfica, que se traduzem na forma genuína e original de se gritar e cantar a compra e venda do temos, do que queremos, ou simplesmente, do que podemos comercializar.

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