quarta-feira, 4 de agosto de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capitulo XII - Um Arco-Ìris Sobre a Cidade

As Tribos de Recife e a Eterna Luta por visibilidade

Andando pelas ruas podemos observar as transformações pelas quais a cidade vem passando e constatar que como toda grande metrópole, Recife apresenta uma grande variedade relativa ao perfil sociocultural de seus habitantes. São trabalhadores, moradores e visitantes que misturados nas ruas mal conservadas formam uma homogênia massa popular. Porém um olhar mais cuidadoso, ou porque não dizer curioso, perceberá que por trás dessa aparente semelhança evidenciam-se diferenças geracionais, de etnia/raça, credos, classes sociais, e principalmente de gênero. Assim, parecem formar verdadeiras aldeias ou tribos que se estabelecem ao mesmo tempo em que se dividem, para ocupar um único espaço geográfico.

A cidade que aparenta grandiosidade, se espalhando pelas três ilhas (Santo Amaro, Santo Antonio e São José) parece pequena em meio a uma densidade demográfica que se espreme nas apertadas e esburacadas calçadas, superlotadas por ambulantes e camelôs. Nos horários de picos, é preciso mesmo paciência e tolerância as características ou costumes locais que muitas vezes se traduzem em incoerências ou ausência de consciência de coletividade. Nos períodos de chuva, as ruas revestidas por pedras soltas formam verdadeiras poças ou consideráveis lagoas de água suja. As pessoas se alvoroçam e se apertam embaixo de velhas marquises e causam um verdadeiro congestionamento de sobrinhas e guarda-chuvas apressados. E neste sentido é bom prestar atenção nos riscos oferecidos aos olhos devido as suas armações de varetas móveis. E aqui preciso explicar que as sombrinhas em si não apresentam perigo. Porém, considerando a estatura mediana do recifense, aliado a adoção de posturas e comportamentos de proteção egoístas, constataremos que suas hastes de metal podem acertar em cheio a visão de um transeunte um pouco mais alto. Talvez por isso, sempre tenha entendido e adotado como raciocínio lógico, o fato de que se estou protegido por tais equipamentos devo deixar as marquises para os desamparados.

Mas voltando a nossa miscigenação, que além de racial, é cultural e social, em Recife nossas tribos (no sentido antropológico da palavra, claro) se estabelecem dentro de um cenário caoticamente organizado. E neste sentido algumas categorias parecem se acomodar, ou serem acomodadas, a fim de atender as suas necessidades e também as exigências do desenvolvimento econômico. Neste panorama as diferenças parecem se fazer visíveis para estabelecer as hierarquias sociais, onde os indivíduos serão agrupados, nomeados e renomeados, e acima de tudo, valorados. E se a sociedade estabelece seus próprios meios pelos quais categoriza as pessoas, define também os atributos comuns aos seus membros.

Assim, mendigos, assaltantes, pedintes, ambulantes, crianças em situação de rua, bêbados, travestis, traficantes de drogas e boys de programa, entre outros, passam a compor a categoria dos “desacreditados” sob o estigma da marginalização para viverem às margens de uma sociedade onde se encontram as “pessoas de bem”: comerciantes, policiais, estudantes, artistas, moradores, religiosos, profissionais autônomos e uma imensa massa de trabalhadores e grupos de jovens das mais diversificadas ideologias. E cada grupo desses evidenciará características definidoras de suas identidades sociais. Assim, homens e mulheres se dividirão e compartilharão o mesmo espaço territorial, onde visibilidade e invisibilidade se transformam em fatores de necessidade e sobrevivência as “pessoas de bem, ou normais” e aos “marginalizados” (Souza Neto, 2009).

E neste aspecto considero extremamente salutar e democrático os movimentos em prol de reconhecimento de direitos através da visibilidade social que algumas categorias ou grupos sociais têm estabelecido ao longo dos anos. Destaco assim, as lutas sociais em nome do reconhecimento da diversidade sexual, mais conhecido como “movimento LGBTTI”. E antes que perguntem ou contra argumentem em desacordo as tantas letras que a cada dia se multiplicam ou trocam sucessivamente de lugar, esclareço que tal “animação” (e aqui no sentido de manifestação de vivacidade) se deu e se dá, exatamente em respeito à variação de possibilidades que permeiam as orientações sexuais.

Se lembrarmos bem, ainda no inicio dos anos oitenta, se deu origem ao movimento GLS – Gays, Lésbicas e Simpatizantes, que coincidia com o período de abertura militar (ou melhor, queda da ditadura). Era então necessário começar um trabalho de base para efetivar o processo de transformação social e cultural, e mesmo considerando que tal “movimento” tinha muito mais cunho econômico do que sociopolítico, não podemos negar seu valor. É importante que se entenda que a sigla GLS foi criada para evidenciar espaços privados abertos a diversão e convivência harmoniosa entre heterossexuais e homossexuais, que se tornou modismo principlamente em boates e bares que buscavam novos públicos, e consequentemente, maiores lucros.

Mas simpatizar não é pertencimento, pois como explica o dito popular local: “simpatia é quase amor”. E quase é sinônimo de proximidade. Assim, o tal “S” que configurava a participação de heterossexuais estava mais próximo do sentido “sou cabeça” que também se configurou como modismo da época. Simpatizante significa “que ou quem simpatiza com alguém ou algo, ou ainda, que ou quem, sem pertencer a um partido ou grupo, adota suas tendências ou aprova sua política e idéias”. Logo, se simpatia não é amor de verdade a causa social, mas apenas um velado interesse em atender às pretensões de alguém (como também, tratamento intencionalmente amistoso dado a alguém), não se configura enquanto categoria de luta e não se consolida enquanto força representativa.

Em seguida, os tais simpatizantes tiveram que buscar outras tribos, e em seu lugar surgiu os bissexuais, totalmente expostos devido ao advento da AIDS. E as pessoas bissexuais começaram entenderam que era preciso mostrar a sociedade que o fato de sentir atração e desejo sexual por homens e mulheres igualmente (de forma simplista para não dificultar o entendimento, claro) não se tornava motivos para perseguições e exclusões. E assim, o movimento passou a ter representatividade social e política de classes ou categorias estigmatizadas verdadeiramente – gays, lesbicas e bissexuais - GLB.

Mais ou menos nos anos noventa, as travestis foram se incorporando e o arco-íris (bandeira do movimento por representar a convivência harmoniosa das cores, que ao se misturarem criam novas nuances, que aqui equivale a possibilidades) começava a tomar corpo e a sigla transformou-se em GLBT – gays, lésbicas, bissexuais e travestis. E aí me lembro de uma grande confusão em determinada palestra que proferi para trabalhadores de uma empresa. A grande questão era: afinal de contas, gay, lesbicas e travesti não é tudo homossexual? Sim, se considerarmos a homossexualidade enquanto identidade sexual, junto com a heterossexualidade e a bissexualidade (que como diz o povo, são mais antigas do que a posição de cócoras).

Mas quando falamos em orientação sexual é preciso entender as particularidades e especificidades dos desejos. E neste sentido, talvez seja interessante esclarecer que a terminologia “gay” é original do inglês para expressar alegria. E alegria é sentimento e não categoria ou classe. Porém, com o tempo foi incorporada em nossa cultura como sinônimo de homossexual masculino, o que configura o recorte de gênero e consequentemente não abrange as homossexuais femininas – as lésbicas. Então é preciso compreender que as letras não surgem ou migram por brincadeira ou irreverência inconsequente, mas porque simbolizam categorias de gênero. Que traduzindo significa que gay é masculino, lésbica é feminino, travestis é feminino ou masculino (que me desculpem as feministas radicais), assim como os bissexuais são masculinos ou femininos (simples, não?).

Posteriormente foram incorporados mais alguns “Ts”, relativos a transexuais e transgênicos. O primeiro para designar as pessoas que se submeteram a cirurgia de transgenitalização (ou mais comumente entendida como mudanças de sexo) para adequar o corpo a identidade psicológica. E neste sentido se diferenciam das travestis, pois que nem todas desejam mudar o sexo biológico. O segundo T (ou melhor, o terceiro) caracteriza as transgêneros, ou pessoas que transitam tranquilamente entre o feminino e o masculino, caso das “dragg quenns”, “caricatas” e “performáticas” – que podem se entender enquanto gays, lesbicas, bissexuais ou heterossexuais.

Tempos depois a sigla foi mais uma vez complementada e tornou-se GLBTTTI, representando gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexos (pessoas que possuem os dois sexos biológicos e que antigamente foram denominadas como hermafroditas – lembram da “Buba” da novela o Rei do Gado?).

E por fim, O “L” passou para frente configurando mais uma vez a necessidade de se repensar as questões de gênero. Atualmente então, entende-se que o movimento representa as categorias LGBTTI. E neste caso também, antes que questionem qual a diferença, explico que o fato de “L” vir atualmente na frente evidencia-se que o movimento não se pauta na cultura machista, onde nas relações de poder o homem é sempre visto como superior a mulher. E logicamente se a causa se justifica pela busca de igualdades, independentes de gênero e orientação sexual, não se poderia replicar a cultura pautada em tais premissas preconceituosas.

Mas saliento que não precisam se precipitar em entender ou aceitar, pois que este é apenas um posicionamento ideológico com qual coaduno, porém não comum entre os próprios integrantes do movimento. Porém que realmente considero importante nisso tudo é a possibilidade de refletir sobre velhos paradigmas, ou antigos conceitos, pautados no modelo biomédico ou anato-fisológico. Tais discussões nos mostram que enquanto sujeitos do desejo, e consequentemente, sujeitos do direito, não devemos nos pautar apenas pelo sexo biológico para entendermos, aceitarmos e reconhecermos nossas próprias identidades.

E para ampliar a reflexão, recorro a mais uma experiência vivida em um treinamento para gestores e coordenadores de um programa social voltado ao atendimento de adolescentes e jovens em situação de riscos e vulnerabilidades. A discussão girava em torno da solicitação de jovens travestis para utilização dos banheiros femininos. E todo o posicionamento dos opositores ortodoxos pautava-se no fato destas possuírem pênis, logo não poderiam ser reconhecidas ou aceitas como sujeitos do feminino. Por isso considero importante destacar que todas as pessoas naquele auditório tinham formação nas ciências humanas e sociais, além de experiência em suas devidas profissões da área social.

E é claro que essa é uma discussão que ainda levará muito tempo para uma conclusão harmoniosa, e não se torna exclusiva ao terceiro setor. Porém, o que questiono é o fato de tais profissionais sentirem tanta dificuldade em refletir a partir de novas perspectivas, inclusive possibilitando a efetivação da garantia de direitos, premissa básica da área social (ou não?). Considero então, que tal dificuldade consista na forte influêcia da cultura local sobre nossa formação intelectual e emocional, se assim podemos dizer. Aprendemos que ou se é homem ou se é mulher (no mais restrito sentido biológico), e assim, somos ainda fruto e reflexo de nossa própria ditadura.

Digo isso porque percebo que a intolerância dos generais-governantes, as perseguições políticas, a repressão cultural e principalmente social, contribuíram e refletiram diretamente sobre a construção de nossas identidades. E apesar da palmatória ter sido abolida nas escolas, as condutas autoritárias, o respeito imposto, bem como, as doutrinas e dogmas da “Santa” Igreja mantiveram-se implacáveis para estabelecer padrões de conduta, controlando, vigiando e regulando a sexualidade dos alunos.

Aos sadios, neste sentido entendam-se pessoas com orientação sexual heterossexual: a tolerância quanto às descobertas, curiosidades e afirmações sexuais; aos “desviados”, aqueles que não se enquadravam no modelo hegemônico estabelecido para a sexualidade reprodutiva: os castigos, as penitências e punições possíveis as instituições educacionais, que embora públicas, seguiam e aplicavam a doutrina religiosa. Naquela época, quando se verbalizava dúvidas oriundas da sexualidade, ou mesmo se expressava comportamentos e condutas “invertidas”, a educação respondia e se pautava nas doutrinas de duas poderosas instituições formadoras de caráter e de opinião: Igreja e Estado.

Não existiam as possibilidades de masculinidades, preferências sexuais, e muito menos diversidade sexual, tão comum aos dias atuais. O modelo heterossexista estabelecia limites à vivência e a consolidação da sexualidade dos indivíduos: ou se era homem, ou se era mulher, pois que não existia meio termo e as “aberrações” ficavam restritas ao mundo artístico. A arte era considerada um campo feminino, não extensivo aos homens, que ao contrário eram estimulados a valorização de suas virilidades através dos esportes violentos e competições acirradas como forma de reafirmação da masculinidade. A arte estimulava a sensibilidade, e por isso era apenas motivada e integrada aos roteiros de formação da conduta moral das meninas.

No cenário repressivo do final dos anos setenta, ser homossexual significava negar a própria identidade, esconder desejos, sofrer por paixões, que como diria Oscar Wilde, “não ousariam em dizer o nome”. E por isso adoecer, ou em última instância, se entregar ao estabelecer parcerias conjugais e sexuais com pessoas do sexo oposto através de casamentos fadados ao fracasso. Assumir-se homossexual representava assumir também um caráter de pertencimento vinculado ao submundo estigmatizado e invisível.

A virada da década marca o renascimento da imprensa, por onde as novas temáticas emergiam do submundo, possibilitando que novos sujeitos sociais começacem a ser construídos. O que antes parecia inexistir, ganha visibilidade. E dos subterrâneos das cidades, novos personagens chegam à luz e entram em cena. Com a abertura política tornou-se possível que as práticas até então mantidas em segredo, pudessem se realizar no espaço público. Assim, os anos oitenta tornaram-se era dos questionamentos e de lutas pelos direitos humanos, consolidando movimentos sociais que trouxeram à tona as discussões relativas aos prazeres, aos corpos, às sexualidades e suas possibilidades no campo do erótico.

Iniciava-se o processo de reconhecimento do homem enquanto ser independente e livre em sua plenitude, incluindo a sexual, bem como, o estabelecimento do indivíduo enquanto sujeito de direito e do prazer. O movimento homossexual abriu caminhos às novas possibilidades de práticas, vivências e construções de diferentes identidades no campo da sexualidade pernambucana. O modelo heterossexista, pautado na bipolaridade masculino/feminino, tornou-se insuficiente e defasado para explicar e/ou abranger uma gama de “novas” categorias e identidades emergentes. Os espaços de sociabilidade homossexual foram se firmando no centro da cidade e o espaço geográfico começou a ser redesenhado para acomodar e atender a uma demanda de desejos, experiências e práticas sexuais. Aos poucos as diferenças sexuais foram sendo incorporadas e/ou absorvidas pela sociedade, que as acomodou se não no campo da compreensão ou aceitação, pelo menos no âmbito da convivência pacífica (Souza Neto, 2009).

As Paradas da Diversidade tomaram as ruas, inicialmente na Avenida Conde da Boa Vista, e hoje na Avenida Beira Mar, em Boa Viagem, e tornaram-se símbolo nacional da luta por reconhecimento e visibilidade. A cada dia novos municípios do interior de nosso estado reivindicam espaços nas discussões e vão as ruas por igualdade de direitos. Aos poucos contribuem para a incorporação popular de novos modelos e parâmetros que orientem nossas concepções acerca da sexualidade humana.

Logicamente precisamos entender que todo processo de transformação é lento, e que não se muda uma cultura secular do dia para noite. Mas acredito que um dia poderemos, universalmente, guiar e respaldar nossas relações pessoais e sociais pela equidade de gênero, onde o feminino e masculino se complementaram nas possibilidades de vivências e experimentações das nossas sexualidades.

Acredito mais ainda, que um dia as masculinidades e feminilidades serão escritas e entendidas sempre no plural porque teremos entendido e aceitado definitivamente que o sexo biológico apenas já não responde as solicitações das orientações de gênero. E talvez assim, ou somente assim, passemos a aceitar o outro como ele é, ou se reconhece, e entender que um ser possuidor de pênis também pode se reconhecer enquanto sujeito do feminino, ao mesmo passo que um ser possuidor de vagina pode se entender enquanto sujeito do masculino.

Até porque para isso, nos basta apenas boa vontade em refletir sobre o fato da orientação está relacionada aquilo para, e pelo qual as pessoas se orientam e se guiam por identificação e desejo. E isso é direito individual e constitucional (ou não?).





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