quinta-feira, 17 de maio de 2012

TRANSGENITALIZAÇÃO - A BUSCA POR SI MESMO



No último 04 de maio, o Jornal Diário de Pernambuco, publicou no Caderno Vida Urbana, a reportagem intitulada: Cirurgias de Mudança de Sexo Interrompidas. Nesta, a jornalista Marcionila Teixeira destaca a aposentadoria do Doutor e Professor João Sabino Pinho Neto, responsável pela equipe médica que realizou 22 cirurgias de transgenitalização pelo Hospital das Clínicas - HC, ligado a Universidade Federal de Pernambuco. Além da importância por contribuir para maior visibilidade da temática, a reportagem cumpre seu papel ao anunciar que o médico, único profissional no Norte-Nordeste a realizar cirurgias de Redefinição Sexual, não tem substitutos. Segundo a jornalista, “desde sua aposentadoria, o serviço está parado”, contudo, destaca existir negociações em andamento para que as cirurgias sejam custeadas pelo Sistema Único de Saúde – SUS.

A discussão relativa à cirurgia de transgenitalização ou de redefinição sexual é polêmica e divide opiniões. Conhecida popularmente como cirurgia da mudança de sexo, também é, muitas vezes, anunciada como cirurgia reparativa, ou ainda como cirurgia corretiva, o que parece contribuir para a patologização da transexualidade. Neste sentido, nos cabe a reflexão sobre o fato de tais terminologias conceituais carregarem em seu bojo o reflexo de uma cultura pautada na heteronormatividade. Se considerarmos que a sexualidade ainda plana como tema tabu para nossa sociedade, facilmente entenderemos certas dificuldades, e logicamente, resistências, no sentido de entender a orientação sexual como pertence ao campo da subjetividade, contrário aos papeis sexuais, construídos pela, e na, cultura. O que pretendo dizer é que ser masculino e feminino é uma produção cultural. Aprendemos com o passar dos tempos a nos comportar e entender como homens ou mulheres porque nos guiamos, ainda, pelo recorte biologista do sexo, que estabelece o padrão corporal pênis/homem, vagina/mulher. Se entendermos que masculinidades e feminilidades mostram-se variadas e flexíveis, constataremos que tal padrão torna-se insuficiente para compreender a amplitude das sexualidades. Assim, será que um homem que tem o pênis amputado, seja por alguma enfermidade ou acidente, por exemplo, deixará de ser visto, aceito e reconhecido como tal? Na mesma linha, uma mulher que retirou o útero deixará de se entender como mulher? O que realmente estabelece, contribui ou influencia a formação da identidade sexual, a biologia dos corpos, ou a subjetividade das emoções?

No meu entendimento a identidade se constitui a partir do que uma pessoa se reconhece; ou seja, somos o que acreditamos ser. A sexualidade é um processo de descobertas e não só de construções, logo, não pode ser entendida como opção. Se o fosse, muito provavelmente milhares de homossexuais, bissexuais, transexuais e travestis escolheriam o enquadramento limitante da norma social, e também jurídica, como forma de proteção e preservação de suas, integridades, seja física e/ou mental, diante de uma sociedade homofóbica e machista como a nossa. A patologização não é reflexo ou resultado das sexualidades estigmatizadas como “desviantes”, mas, fruto da cultura anatomo-fisiológica empregada na definição dos corpos considerados “saudáveis”. Ainda no caminho da fácil reflexão, podemos pensar no quanto de imperfeição corporal possuímos todos nós seres humanos, sejam héteros, homo ou bissexuais. Não se nega que as intervenções cirúrgicas tornam-se benéficas para a restauração e/ou fortalecimento da auto-estima. A cirurgia plástica também foi vítima de preconceitos e hoje o Brasil figura como país com maior índice desta modalidade, inclusive para fins estéticos. Quantos membros são transplantados nos dias atuais sem causar grandes celeumas? A medicina avança em benefício da humanidade, e é neste sentido que cumpre com seu papel e fundamento. Muitas vezes, nos olhamos no espelho e não gostamos do que vemos em nossa frente. Um sinal no rosto, uma cicatriz, um cabelo branco, uma sarda, uma ruga fora de lugar e tantos outros pequenos detalhes que nos trazem, muitas vezes, inseguranças, medos, receios, angustias e até sofrimentos. Para estes, a plástica, o botox, maquiagem, tinturas capilares e tantos outros recursos, sejam cirúrgicos ou não, nos servem como refúgios para a minimização ou neutralização das imperfeições. Já vi gente reclamando do formato do nariz, da textura do cabelo, da cor dos olhos, do formato da boca, do tamanho dos seios e nádegas. Já vi gente se martirizar por defeitos físicos possíveis de correção. Lidamos com tais sentimentos no cotidiano, e, também cotidianamente, recomendamos a busca por especialistas. Agora imagina se olhar no espelho e não se reconhecer. Imagina ser cobrados pela família, grupos de amigos, e pela sociedade como todo, a ser o que não se é em essência, ou a se comportar e a se entender por um modelo pelo qual não nos reconhecemos.

Infelizmente é pelo caminho da patologização que os/as transexuais ainda precisam trilhar para realizar o que o médico especialista classificaria como “a cirurgia da busca por si mesmo”. Não podemos ser simplistas ou reducionistas ao pensar que o que se busca através da cirurgia de transgenitalização é apenas um pênis [para os trans-homens] ou uma vagina [para as trans-mulheres]. É mais que isso. Busca-se por uma adequação corporal a identidade. E neste sentido, deve-se esclarecer que o contrário não se aplica, pois que a prática tem revelado a “construção” de transtornos. Se o corpo é passível de mudanças, de ajustes e redesenhos, objetivando a elevação e/ou fortalecimento da auto-estima, que se possibilite o acesso a todos como forma de garantia de direitos. Um pênis e/ou uma vagina são apenas órgãos, como qualquer outro, com funções e configurações específicas. Neste sentido, entende-se que não é a mudança ou transformação do corpo que incomoda, mas, a quebra da norma. E isso se classifica como preconceito, que se pauta em preceitos pré-estabelecidos muito antes de nossa existência, pois que somos contemporâneos.

Aproveito então, para destacar que apesar da importância da reportagem, é preciso atentar para o quanto nos mantemos presos na cultura limitante da heteronormatividade. Digo isso porque conceitos como “homossexaulismo”, “intersexualismo”, “transexualismo” e “travestismo”, usados na reportagem só contribuem para reforçar uma visão patologizante das sexualidades. Considerar a transexualidade como “transtorno mental” é contribuir para a consolidação da homofobia. É neste aspecto que sugiro uma reflexão quanto à utilização de termos como cirurgias corretivas ou reparativas, pois o que se busca na transgenitalização não é a correção ou reparação de algo errado, herdado pela natureza, mas apenas a adequação de uma forma corporal a própria identidade, que é individual e não generalizante ou generalizável.

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