domingo, 13 de maio de 2012

DIFERENTES TEMPOS PARA DIFERENTES PESSOAS


 
Seu nome é Raul, mas poderia ser Pedro, Paulo, José, Marcos, Bruno, Henrique ou qualquer outro em iguais condições. Mal completara sete anos, mas poderia ter muito menos ou pouco mais, pois que o fato não mudaria sua sina. Sua voz transmitia a inocência, que como tantas se perderam e se perderão no tempo. Porque o tempo é urgente para quem se encontra na miséria. É fundamental para quem tem fome. Acima de tudo, é cruel para quem busca alternativas viáveis a transformação social de tantas crianças marcadas pelas desigualdades socioeconômicas e políticas. O tempo se perde no vento, assim como as vidas dos que não vislumbram perspectivas. Perde-se no espaço, que delimita e demarca destinos. O tempo mata! Quando não a vida, os sonhos, sem os quais não se vive. Esgota e se esgota em diferentes expectativas para sufocar a todos. Tanto aos que perdem a esperança, como também aos que nela se afundam. Assim, o tempo transforma-se em um implacável limite demarcador entre o fracasso e o sucesso.

Raul me disse que estudava quando tinha aula, o que nem sempre acontece. Também disse que gostava de matemática, e por isso vez cálculos, contando nos dedos das mãos e dos pés. Os dedos que se encontram feridos e calejados pelo trabalho forçado. Contou-me ainda que “limpava matos” com o pai, motivo pelo qual sem sempre podia comparecer as atividades desenvolvidas pelo projeto em que atuamos. Do seu jeito, revelou que não tinha tempo para ser criança. E nós não tivemos, ainda, o tempo suficiente para convencê-lo do contrário. Assim como não encontramos possibilidades, ainda, de convencer a sociedade do contrário. A violação de direitos tornou-se naturalizada para sua família. Sua irmã mais velha já cuida da casa sozinha. Ela lava roupa, cozinha, arruma e ainda arranja tempo para estudar, quando tem aula. Também “cuida” da irmã caçula e de um bebê da vizinha. É praticamente a dona da casa, me dizia ele, que não se esqueceu de mencionar que a mesma tem apenas nove anos.

Crianças como Raul, suas irmãs e mais uma enorme quantidade que vive as margens da sociedade parecem não lutar contra o tempo, mas contra as diversidades. Lidam com a violência cotidianamente, sem mesmo compreendê-la. Nem mesmo a percebem como tal, pois que esta se tornou referencial na construção de suas vidas e personalidades. Não reclamam da “lida”, mas apenas da falta de tempo para brincar junto com os demais. É neste ponto que o fracasso se faz angustiante. Como na velha história do boiadeiro, sacrifica-se um boi para salvar a manada. Quem atua no terceiro setor sabe do, e vivencia o, limite de abrangência de suas ações e atuações. Assim, focamos em restritos grupos ou segmentos da população, mesmo sabendo da sua mínima representatividade percentual no universo das vulnerabilidades. Recursos financeiros limitam pés e mãos. Transformam-nos em polvos amputados, incapazes de estender seus tentáculos aos excluídos. Trabalha-se numa perspectiva do que talvez pudéssemos chamar de “sorte social”. É sempre preciso “escolher” um pequeno grupo, um mínimo, para atender em um determinado tempo, e partir daí buscar e/ou favorecer a transformação social.

E é este mesmo tempo nos fragiliza ao revelar no final que precisamos nos contentar, e nos felicitar por tais empreitadas, muitas vezes, consideradas bem sucedidas. E quando olhamos o quanto deixamos de atender, ou ainda analisamos o quanto poderíamos ter ampliado nossas atuações em detrimento da demanda, os resultados obtidos mostram-se ínfimos e frustrantes. Conversas como a que tive com Raul se configuram como socos em nosso estômago. É como se dissessem “Olha, vocês não são competentes. Eu estou aqui e vocês não me viram. Vocês também me excluíram”. Olha-se para dentro e percebe-se a insuficiência do tempo. O mesmo tempo que mede e classifica nossa habilidade e capacidade profissional. O mesmo tempo que se configura em diferentes formas de velocidade para diferentes pessoas. Insuficiente para as crianças atendidas; mínimo para os operadores da ação; e, muitas vezes, demasiadamente longo e oneroso para os patrocinadores. Quem atua, ou pretende atuar na área social deve saber que sempre será necessário mais tempo. Para buscar novos financiadores, para convencer pessoas-chaves, para articular políticas, escrever projetos, definir metodologias, e mais uma vez, escolher os novos sorteados sociais. Será preciso esperar e respeitar a burocracia, assim como as hierarquias do poder, que estabelecem seus próprios tempos. Acima de tudo, se fará necessário respeitar nosso próprio tempo. Como uma espécie de alienação momentânea para poder voltar a respirar, refletir sobre a importância de suas ações e ideologias. É o “parar” para não parar. Não desistir. Não se perder.

A cada projeto “finalizado”, e digo isso considerando o tempo previsto, que logicamente se correlaciona aos recursos financeiros propostos, chega um tempo que é mágico. O tempo de chorar. E digo de cátedra que o choro é minha forma de [re]energização. Chorar pelo sucesso. Chorar pelo fracasso da impossibilidade. Chorar por relembrar todo o processo e a evolução humana estampada nos rostos risonhos de crianças antes invisibilizadas e destituídas de tudo. Chorar por ter que entregar seus destinos de volta. Chorar por saber que cada criança daquela se tornará inesquecível. Chorar pela incompreensão humana, pela insensibilidade alheia. E principalmente por você. Por acreditar nesta loucura que se chama garantia de direitos. É isso! Acho que mais uma vez chegou minha hora mágica. O tempo de minha fragilidade. O tempo de me agachar no piso do banheiro e abrir a água para lavar meu pranto. Tempo de purificar a minha alma despejando no ralo qualquer sinal de cansaço. É o tempo necessário para recobrar minha confiança, fundamental para os novos desafios, mesmo sabendo que o meu tempo será sempre diferente dos tantos e quantos Rauls que encontrarei pela frente.

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