domingo, 6 de maio de 2012

MAIS UMA REFLEXÃO SOBRE A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

DUAS VIDAS, DOIS DESTINOS.

Duas situações vivenciadas nesta semana me trazem de volta à temática: “população em situação de rua”.

Quarta-feira, dia 03 de maio. Na Av. Conde da Boa Vista o vai e vem de pessoas apressadas revelava o cotidiano de uma cidade isenta de culpas. Em um poste, diante de meu prédio, uma criança dormia sobre uma caixa de madeira tão frágil quanto sua própria vida. Eram dez horas da manhã e a cidade se revelava impune. Pessoas trombavam na cama improvisada. Algumas por acaso; outras, em propositados e desconcertantes desagravos. O corpo balançava no ritmo de músicas brega que invadem o ar cotidianamente. A inércia de um sono quase morte invalidava a defesa. Existia o risco de cair para além do meio fio. De se transformar em um pacote de carne e ossos atropelado por um ônibus qualquer. As pessoas se limitavam a observar a cena e a demonstrar reações, das mais diferentes formas. De repente o céu escureceu. Uma chuva grossa e pesada caiu sobre o corpo que demorou a recobrar a consciência. A natureza tomou as rédeas das providencias imediatistas e injustas, expulsando o garoto negro de seu berço débil.


Quinta-feira, 04 de maio. Na Av. Manoel Borba o vai e vem de pessoas apressadas revelava o cotidiano de uma cidade imune as suas mazelas. Um miado me chamou a atenção. Uma pequena gata chorava o abandono ao lado de um jovem adulto que há anos reside nas calçadas do quarteirão. “Acabaram de jogar ela aí”, disse ele de forma comovida. Desisti de meu destino e voltei com o pequeno animal para casa. Contudo, no caminho, me peguei pensando sobre o outro abandonado. Há quanto tempo o teriam jogado ali? Na verdade, a reflexão exige amplitude de análise e talvez por isso se torne incomoda, pois se refere não ao tempo, mas ao sujeito da ação. Ou seja, quem o teria jogado nas ruas sujas do Recife? A mãe, a família ou estado? Se pensarmos que o estado é apenas uma instituição, fruto da criação humana, para nos representar enquanto cidadãos de direitos, concluiremos que somos nós que jogamos diariamente milhões de pessoas as margens de uma sociedade inconsequente.


São duas vidas e dois destinos: um bicho gato e um bicho homem. Duas crianças rejeitadas pela sociedade, a espera de uma chance de vida. Ou melhor, são milhares de vidas sem destinos certos. Continuamos uma cidade de abandonados. São homens, mulheres, pessoas idosas e várias crianças e adolescentes sem condições dignas. Misturados a animais rabugentos e também indefesos. Um gato jogado no ralo se leva para casa, mas uma criança condenada aos esgotos, para onde levá-la? A quem se recorre? Que providencias efetivas se toma? Para que berço se transfere um menino sozinho acalentado pelas drogas? Hoje minha gata tem nome, tem lar, comida e local adequado para dormir. Os meninos da minha rua continuam soltos no mundo. Em três dias o pequeno animal se adaptou a nova realidade e ambiente. Corre segura de um lado para o outro do pequeno apartamento, enquanto que os meninos correm de uma rua para outra sem paradeiros. Meu animal tornou-se mais cidadão do que milhares de pessoas humanas que continuam invisíveis e invisibilizadas pela falta de políticas públicas eficientes.

Mais uma vez, paro para pensar sobre que invisibilidade realmente falamos nestes casos. Da que se torna característica de alguns segmentos da população desassistida; ou da que adotamos como mecanismo de defesa, para justificar nossas faltas? O misto de impotência e revolta que me invade sempre nas mesmas situações provocam reflexões sobre as reais possibilidades de mudanças tão desejadas. Quando adotaremos a máxima de que “Um país justo, é um país sem misérias”? Neste sentido busco amparo no desabafo de uma grande amiga, militante dos direitos humanos, que ao ler meu relato sobre a vulnerabilidade das famílias fixadas na Praça Maciel Pinheiro [ver: Meninas que passam e morrem nas ruas do Recife] reflete meus próprios sentimentos e incertezas:


“É foda! Desculpe a expressão, mas seu manifesto está me doendo na alma e foi meu café da manhã no trabalho. Estou com um sentimento que não sei descrever, a dor da alma é tão intensa que meu corpo dói. Pelo menos hoje, a imagem dessa menina não me sairá da mente e sei, voltará diversas vezes a me atormentar, a me envergonhar por me sentir fazendo parte de quem apenas chora a dor do outro... Vasculho a mente e me pergunto o que realmente posso fazer? Será que sairei dessa realidade sem poder andar em calçadas dignas, vendo pessoas com seus direitos garantidos, podendo olhar no meus olhos em vez de baixar a cabeça e me pedir centavos? Ou me atacar, motivada pelas diversas formas de fome? Será que ainda irei andar pelas ruas de Recife sem sobressaltos....? Sem sentimentos mistos de medo, tristeza e revolta pelo que está posto? E finalmente, será que realmente labuto em prol dessas pessoas ou apenas para garantir meu pão? Enfim, amigo, te agradeço "essa mexida" pois precisamos sair da inércia, chorar apenas não transformará o mundo e tenho consciência que muito precisamos fazer e vou nesse momento dar minha contribuição divulgando esse texto, não só na rede social, mas impresso para pessoas que podem acordar e se indignarem. Talvez assim, formemos um batalhão na busca de viés de mudanças reais e não as que executamos e que cobrem desejos, vaidades e satisfações pessoais de alguns”.

No mesmo sentido, relembro ainda do depoimento de outra grande profissional da assistência social, há quem muito admiro pelas convicções e coerências de ações, que dizia: “Não acredito em quem não gosta de animais”. Em consonância digo mais: não acredito em gestores que não gostam de pessoas, pois que as destituem de suas condições de humanos para rebaixá-las a de animais. E Recife é uma cidade que não cuida de seus animais, sejam estes naturais ou humanos.



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