quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O [DES]RESPEITO AS DIFERENÇAS NA PÓS MODERNIDADE


MODELO ANO 1992





O DIA QUE MINHA TELEVISÃO VIROU RÁDIO


Esta semana minha televisão virou rádio. Na verdade perdeu a imagem, o que dá na mesma coisa. Não é isso que diferencia os dois aparelhos? Assim, tenho em minha sala um rádio enorme, no melhor estilo anos noventa, pelo qual tenho tentado me manter informado e logo, antenado com o mundo. E garanto a vocês que voltar a ouvir o rádio tem se mostrado uma experiência prá lá de inusitada. Sentado no estofado, diante da TV, me coloco a identificar pessoas e personagens pela voz. Seria mais ou menos o mesmo processo ou habilidade utilizada pelos deficientes visuais. Lógico que no meu caso existe um referencia anterior que me possibilita, por exemplo, reconhecer oral e visualmente o William Bone anunciando a entrada do Jornal Nacional. Sua voz é inconfundível assim como o é a de vários atores, atrizes, políticos e personalidades públicas que diariamente invadem nossas casas. Neste caso a memória conecta-se a audição, e juntas formatam uma imagem visual que será codificada e reconhecida pelo cérebro. Pelo som também nos é possível reconhecer determinados caráter. Digo isso, porque facilmente se reconhecerá na voz da Lílian Cabral o talento e a competência comuns as grandes atrizes. A veracidade transmitida através do texto torna-se perceptível, principalmente quando em oposição aos ditos novos talentos que apenas vomitam diálogos. Esses nada revelam além dos seus próprios egos que anulam a existência de personagens verossímeis. Traduzindo no bom português, o que desejo realmente dizer é que pela voz facilmente se reconhece quando o emissor é um sujeito digno ou um falsário nato. Tentem por experiência, ou mesmo por curiosidade, fechar os olhos ao escutar os discursos de determinados políticos. Neste sentido, acho até este seria um excelente recurso para a escolha correta de nossos candidatos a cargos públicos, e automaticamente representantes do povo.
Mas deixando a política de lado, até porque não é este o meu objetivo no momento, digo que ouvir televisão nos possibilita ampliar visões. Talvez porque as imagens traiam os objetivos e interesses ocultos. Talvez porque as embalagens tenham ganhado mais destaque do que a verdadeira qualidade dos produtos. Mas independente destas conjecturas, o fato é que não sei o que fazer com um aparelho, que pela lógica capitalista que estimula o consumo desenfreado, tornou-se totalmente ultrapassado. Se os tempos fossem outros o mandaria a uma assistência técnica, onde trocariam suas peças. Em poucos dias teria de volta minha televisão. Mas hoje em dia não existem mais assistências técnicas. Pelo menos, não como antigamente, instaladas e/ou espremidas em pequenos estabelecimentos espalhados por todas as esquinas. Nos dias atuais os eletrodomésticos com mais de dois anos são transformados em lixo. Assim, penso que o destino de minha televisão seja o deposito coletivo que se localiza na escadaria de meu prédio. Imagino então uma espécie de enterro. Um funeral para o passado. Em um dia qualquer pegarei o velho aparelho, sairei pela porta, me dirigindo as escadarias. São seis degraus até o coletor de lixo onde a mesma será depositada e aguardará até que o funcionário a carregue para onde não sei. Na verdade já o fiz, mas confesso que levei certo tempo para tomar a decisão. É que de certo modo, se livrar dos mortos me parece mais fácil. Mas minha televisão ainda falava, logo estava viva. A falta de imagem era apenas um defeito, provavelmente desenvolvido pelo desgaste causado pelo longo tempo de serviços prestados. Anos após anos ela me trouxe notícias e informações importantes que contribuíram significativamente para o meu desenvolvimento pessoal, e até para minha formação intelectual. Ou seja, aquele não era apenas um eletrodoméstico. Era na verdade uma companheira que me mostrava um pouco de tudo, ou o tudo de cada pouco. Imparcialmente me revelava grandes verdades, muitas vezes escondidas nos subtextos ou entre linhas. Nunca emitia opiniões, nem mesmo revelava cansaço, e muito menos contrariedade durante minhas noites de insônia. Sempre lá, quieta e funcional, como um antigo criado que alivia ou abafa os próprios passos para não incomodar o sinhozinho. 
Só sei que por motivos lógicos, ditados pela modernidade desafeta, eu mesmo condenei aos lixões minha velha e antiga amiga portátil. Com certeza alguns pensarão que estou louco ou sofro de algum transtorno por me apegar a um aparelho cafona e fora de moda. Outros questionarão se sou materialista ao ponto de chorar por uma televisão sem identidade própria que de uma hora para outra se tornou rádio. Digo então que não é a matéria, mas a essência que me causa falta. Na verdade reflito sobre o porquê trocá-la por outra mais moderna e eficaz. O fato de ter ficado velha e ultrapassada não a destitui do seu lugar significativo e simbólico na minha história. Assim como o fato de não mais possuir imagem não a destitui da condição de televisão. Na verdade minha reflexão não é em si sobre a TV, mas sobre o quanto descartamos os intoleráveis defeitos. Penso que como as pessoas, as televisões não precisam ser iguais. A minha, por exemplo, poderia continuar apenas falando, pois que continuaria cumprindo com sua principal finalidade – a de informar e atualizar conteúdos. O problema em si não está na dificuldade de conviver com coisas ou seres, digamos “incompletos”, mas no desrespeito às diferenças. Não sabemos ainda conviver com isso. Basta ouvir o que as próprias televisões nos dizem cotidianamente. Quantas violências elas nos tem revelado sucessivamente dia após dia? Quantos negros, homossexuais, pessoas obesas, pessoas com deficiência, miseráveis ou apenas pobres tem protagonizado os folhetins da Rede Globo, por exemplo? Onde essas pessoas, ou segmentos da população encontram-se representados além das páginas policiais, programas de humor duvidoso ou programas sensacionalistas, onde despertam piedade elevando os ibopes?
Mas na novela da Manoel Carlos tinha uma tetraplégica e uma negra como protagonista e antagonista, reclamarão os insensatos. Na novela do Gilberto Braga tinha a maior quantidade de gays, jamais visto numa novela do horário nobre, dirão outros menos sensatos ainda. Na novela do Agnaldo Silva a protagonista é pobre e batalhadora, aplaudirão os desavisados. Neste sentido, repito mais uma vez que televisão não é só imagem. É preciso escutar para entender e contextualizar os processos de transformações sociais. Relembro então de uma reportagem antiga, onde a atriz Rute de Souza falava sobre sua trajetória fantástica nas artes cênicas. O destaque era um grande prêmio recebido pelo excelente desempenho em um espetáculo de teatro. Falava-se de reconhecimento quando lhe perguntaram sobre a sua maior mágoa. Com os olhos cheios de lágrimas e com orgulho ferido, revelou seu sonho de ser um dia capa em uma revista de grande circulação. Mas as revistas não estampavam mulheres negras em suas capas, mesmo que fossem talentosas e competentes em suas áreas de atuação. Diante da pergunta sobre a possibilidade da realização de seu sonho, a grande mulher apenas retrucou: “agora não precisa mais”. É nesse contexto que quando digo que a TV mostra mais que imagens, refiro-me a contradição do público aplaudir o fato da Thais Araújo ser a primeira atriz negra a protagonizar uma novela das oito na Venus Platinada. Alas duas, pois anteriormente já havia protagonizado uma novela das sete. Na verdade não vejo motivos para se aplaudir reconhecimentos tardios e involuntários. Afinal de contas, os negros “se tornaram gente”, no senso comum brasileiro, através do poder aquisitivo. Não é mesmo caminho trilhado pelos homossexuais? Não é verdade que quando os pobres chegaram ao horário nobre foi porque a burguesia migrou para as TVs por assinatura? Resumindo, é preciso entender que se atualmente as diferenças povoam novelas e programas, é simplesmente porque as camadas sociais das classes C e D tornaram-se os principais consumidores das TVs abertas e não por reconhecimento, respeito ou cidadania. Isso é analisar o discurso que se apresenta por trás do discurso.
Logo o tão falado respeito às diferenças também tem se estabelecido pelo viés do capital. Quem tem se faz representar. Quem não tem se mantém na invisibilidade. Assim, as transformações sociais parecem ainda se pautar nas possibilidades e não no estabelecimento de direitos. Acho que essa é a maior falta que a minha velha televisão me fará. Acho que não precisamos, ou mesmo devemos cobiçar o consumo de imagens esteticamente limpas e             “multi-tridimensionais” onde as pessoas comuns e profissionais precisam aparecer maquiadas de forma extravagante para esconder imperfeições. Não precisamos de imagens que transformam pessoas e profissionais negras em personagens menos étnicos, desfigurados pela ditatória regra higienista. Não basta colocar negros, pessoas com deficiência, homossexuais e pobres na tela plana, mais lhes conferir dignidade. Não nos basta apenas ver para acreditar numa imagem de igualdade forçada e camuflada, mas é preciso ouvir para contextualizar os discursos. E aí sim, talvez na experiência de ouvir mais e acreditar menos nas imagens pasteurizadas, consigamos entender o continuísmo da exclusão social que ainda é vendida como modelo de democracia no Brasil.
Dessa forma, mais uma vez me coloco na contramão da mídia imediatista e vazia da modernidade, para lembrar que ao contrário do que pregava determinado comercial, “imagem não é tudo!”

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