terça-feira, 11 de outubro de 2011

DUAS PEQUENAS VIDAS ABANDONADAS EM UM LIXEIRO QUALQUER DO RECIFE


JOGADAS AO LIXO NO CENTRO DO RECIFE


À CHEGADA DE "WHITHNEY" E "LATÓYA"

Hoje tive a infelicidade de encontrar duas pequenas e frágeis vidas depositadas em um coletor de lixo improvisado na Rua do Progresso, em pleno centro do Recife. Neste sentido, infelizmente sabe-se que estas não serão as primeiras, e muito menos as últimas, a serem brutalmente descartadas como restos inúteis. Nos dias atuais não de se estranhar que a crueldade e o desrespeito aos direitos humanos, muitas vezes pautados nas desigualdades sociais, tenham inevitavelmente condenado algumas pessoas a condição de verdadeiros lixos ambulantes. É sabido ainda que em Recife, como em qualquer grande metrópole, o lixo tem sido transformado constantemente em única fonte de sobrevivência, servindo de alimento para muitas vidas. E isto não é fato difícil de constatação, uma vez que nossas ruas estão repletas de crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, pessoas com transtornos mentais, pessoas com deficiência física, usuários e/ou dependentes de drogas, além de cães e gatos que perambulam perdidos e desassistidos pelas políticas públicas. Talvez essas vidas tenham sido realmente banalizadas pelo sistema capitalista, mas não me considero retrógrado ou conservador ao insistir na defesa da dignidade, ainda que viva em uma sociedade individualista e imediatista como a nossa onde tudo parece facilmente transformar-se em objetos sem valor. A coisificação da vida, na minha concepção, ainda é algo intolerável e insuportável. E não estou falando de sentimentalismo ou falsos moralismos, mas de preceitos morais e éticos que nos parecem cada vez mais ausentes. Principalmente se considerarmos que na escala das espécies habitantes da terra nos encontramos no topo por sermos considerados animais racionais.

Hoje também agradeci por ter tido a possibilidade de ser educado em outros tempos. Não que o passado tenha sido melhor, ou menos violento, que presente. Mas talvez por que na corrida pelo desenvolvimento econômico tenhamos nos esquecido de investir no desenvolvimento moral, consolidando valores mais alinhados a condição de humanos. Sempre aprendi a separar o joio de trigo, ou seja, o que nos serve do que não presta. Talvez essa aprendizagem antiga me tenha possibilitado enxergar e entender a verdadeira dimensão e valor de certas coisas já aparentemente esquecidas e abandonadas entre nós. A própria lei do desenvolvimento organizacional, tão disseminada e cultuada nos dias atuais, prega a existência ou estabelecimento de um lugar adequado pra cada coisa. Mesmo sendo anterior aos paradigmas da qualidade total e da tão sonhada qualidade de vida, sempre aprendi que lixeiro nunca foi espaço para depósito de vidas. É neste sentido, que acredito que as contradições humanas tem se revelado cada vez mais cruéis, chegando mesmo a barbárie e selvageria. Na situação das duas criaturinhas abandonadas a sorte em meio a entulhos e dejetos urbanos, não seria maior a contradição se o referido coletor de lixo não se encontrasse instalado quase em frente a uma unidade hospitalar. Não é assustador imaginar que em uma mesma rua se salva e eliminam-se vidas? Mas estranho ainda, não seria pensar que pessoas da área de saúde conseguem passar apressadas por pequenas criaturas que gritam por socorro sem percebê-las? Não é aterrador constatar que o sistema político e econômico que estabelecemos como modelo de sucesso apropriado as nossas necessidades insensibilize pessoas a ponto de se mostrarem indiferentes a dor alheia?

Eram apenas duas pequenas e indefesas criaturinhas que choravam o abandono espontâneo ou forçado da mãe. Eram apenas duas insignificantes recém nascidas que imploravam cegas pela chance de continuar vivendo. Apenas duas minúsculas guerreiras diante dos desafetos de uma grande cidade. Como se manter inerte e indiferente às suplicas quase que finitas de duas criaturas que nem mesmo abriram os olhos para a imensidão de um mundo, que caminham a ermo, atropeladas por cordões umbilicais ressecados pela poeira e sujeira das ruas? Como negar socorro a quem não sabe o que é a vida, mas instintivamente insiste em contrariar a própria sorte? Como não chorar diante da decadência e putrefação da sociedade? Como não lastimar o produto ou substrato em que nos transformamos? Eram apenas duas pequeninas vidas que consegui enrolar e agasalhar em uma camiseta velha e suada. Dois pequenos seres que conseguimos acomodar em uma velha caixa de papelão, também retirada do coletor de lixo. Duas minúsculas viventes que poderiam ser estraçalhadas entre os pneus dos carros estacionados próximos ao meio fio onde foram deixadas. Eram apenas duas frágeis criaturinhas com poucos dias de vida dependendo apenas de um pequeno gesto de solidariedade e respeito.

Acomodadas em trapos e panos velhos ambas choraram a dor do abandono. Choraram a dor da fome e do frio. Sofreram ao buscar o aconchego materno que lhes fora negado de forma tão grosseira e desumana. E ambas miaram pela noite desconhecida, amontoadas uma sobre a outra como que buscando a cumplicidade do aconchego. Ambas me negaram o sono, por não saber como lidar com a situação. E eram duas criaturinhas tão minúsculas que mal cabiam numa palma das mãos. Vidas que se mexiam agoniadas ao mínimo atrito com a pele estranha. Seres que adormeciam cansados e vencidos pelo inevitável. Confesso que nunca chorei tanto em minha vida. Segurar aqueles dois desprotegidos corpos que cabiam em apenas uma das mãos me fez refletir sobre nossa própria impotência diante dos nossos próprios destinos. Eram apenas duas gatas recém nascidas, apenas dois animais abandonados, apenas duas vidas, como tantas deixadas pelo meio do caminho. Eram tão novinhas que não suportariam uma noite nas ruas. Mal têm pelos para proteger-se do frio. Suas patas são tão finas e transparentes que mal conseguem possibilitar que se arrastem em busca de comida. Seus gemidos eram tão fracos que pareciam anunciar o fim. Estavam tão desnutridas que um sopro mais forte poderia lhes tirar a vida. O ultimo fio de vida que lhes restavam e que pareciam agarrar como algo extremamente precioso.

Hoje penso que uma noite de sono perdida não é nada diante de uma vida que se salva. Uma noite angustiada não representa perda diante da possibilidade de se fazer o bem. E varar a noite acordado para acarinhar e/ou acalentar tamanha fragilidade não representa nenhum grande esforço diante do significado da vida. Não é preciso grandes sacrifícios, basta sensibilidade. Atos e ações simples que podem mudar o mundo. Não o mundo como um todo, pois que este não muda mais, mas pelo menos o destino de poucos. De alguns que sejam. O próprio destino, que parece nos chamar a atenção para o congelamento de nossos sentimentos. Eram apenas duas gatinhas friorentas e enrugadas, mas poderiam ser duas crianças humanas. Apenas duas felinas assustadas e ainda cegas pela pouca idade, mas poderiam ser duas idosas já cegas pela velhice e falta de amparo e assistência adequada. Duas criaturinhas que de tão pequenas mais pareceriam duas ratinhas despeladas, como tantos recém nascidos humanos que dormem sozinhos sobre velhos papelões em baixo de marquises impregnadas.

Hoje penso depois de passado o primeiro sufoco no quanto estamos despreparados para proteger vidas e garantir direitos. É que depois de uma noite atordoada, tentando alimentar ao mesmo tempo dois seres famintos através de uma seringa com leite desnatado, o dia não se fez menos estressante ou indigno. É que se a rede de proteção a vida, destinadas a proteger pessoas humanas em risco de morte, em nosso Estado, apresenta falhas e deficiências que comprometem a atuação imediata e segura; a rede de proteção aos animais, quase inexiste. Das poucas instituições e equipamentos acionados, ainda na madrugada, consultados e identificados através da internet, nenhuma retornou o pedido de socorro e ajuda. Dos tantos “S.O.S bichos” e ou “pró-bichos” da vida, nenhum se dignou ao menos a responder perguntas ou auxiliar ações. Para quem é marinheiro de primeira viagem no socorro e salvamento de vidas, sejam humanas ou animais, talvez a experiência de correr contra o relógio sirva como ponto de reflexão sobre nossas próprias insanidades e inércias. Talvez nessas horas consigamos perceber o quanto continuamos permitindo que alguns discursos ideológicos tenham e continuem apenas se transformando em marketing pessoal e/ou institucional. Talvez nos apontem de fato sobre o que é feito com os recursos públicos que advêm de nossos sacrificados impostos. Talvez nos falem da nossa própria insensibilidade e descompromisso e/ou alienação política. Talvez nos evidencie o quanto nos acostumamos a banalizar e desmerecer o direito a vida e a dignidade cidadã. Mas talvez, também não nos diga nada, o que é uma pena lastimável porque precisaremos continuar desembolsando nossas próprias verbas para garantir um serviço que é responsabilidade e obrigação do setor público.

Hoje me sinto realmente feliz, porque poderei dormir o sono dos justos, como se diz popularmente pelas bandas daqui. Não por ter feito algo que considero mais do que obrigação de qualquer ser humano, mas por saber que as duas pequenas vidas depositadas bárbara e covardemente em um depósito de lixo qualquer, agora dormem alimentadas e bem cuidadas em uma clínica especializada.

E neste sentido, na ausência das fundamentais e eficientes instituições protetora dos animais em nosso Estado, em nome de “Whithney” e “Latóya”, obrigado a Normando Viana, pelo apoio, atenção e profissionalismo em mais uma empreitada em nome do respeito ao direito a vida, direito fundamental a qualquer ser.

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