sexta-feira, 21 de outubro de 2011

HOMENS E MULHERES TRANS - SERES MITOLÓGICOS







TRANSEXUALIDADES - QUESTÕES QUE REVOLUCIONARÃO O MUNDO MODERNO

A sexualidade humana sempre foi um tema inquietante e ao mesmo tempo tentador. O entendimento de como determinadas orientações e preferências sexuais se estabelecem ou se estruturam tornou-se foco de discussões polêmicas ao longo dos séculos, dividindo opiniões, e consequentemente povos e culturas. O movimento feminista trouxe a tona uma necessidade de reavaliação sobre a heteronormatividade, instaurando as discussões sobre gênero entre os acadêmicos e os simples mortais. A revolução sexual impôs novas reflexões sobre as sexualidades dos homens e mulheres, abrindo espaço para a emergência de novas configurações e possibilidades de suas vivências e experimentações. Erotismo, tesão, excitação, prazer e orgasmo invadiram os campos de pesquisas, nas mais diversas e distintas áreas de conhecimento, possibilitando novos olhares sobre como os sujeitos da contemporaneidade tem convivido com suas sexualidades. Antes tabu, com o advento da AIDS, a partir da década de 1980, nunca se falou e pensou tanto sobre sexo e comportamentos sexuais. A viabilidade das discussões fez emergirem dos subterrâneos, categorias identitárias que por muito tempo foram consideradas, rotuladas e mantidas as margens da sociedade como desviantes da norma que se pautava numa lógica unicamente reprodutiva.

Neste sentido entende-se que os tempos mudaram, porém as regras preconcebidas e discriminatórias parecem se mostrar ainda fossilizadas no censo comum das populações em geral. Em vários encontros com estudantes, profissionais da educação, da saúde ou operadores do direito das mulheres, crianças e adolescentes, tenho observado certo ranço em relação as novas configurações da sexualidade, que logicamente encontra respaldo numa lógica biológica e higienista da condição humana. Penso então, se de certa maneira, o pânico gerado pelas diferenças não se mostram como resultantes de um estado de latência. Dito de outra maneira, questiono se para muitas pessoas essa sólida demarcação das diferenças não se apresenta como forma de proteção ao desejo de experimentações potenciais. Sendo mais claro e objetivo, proponho uma reflexão sobre o que realmente nos incomoda na figura das travestis. Será a concretude da quebra de regras naturalizadas como sadias pela cultura ocidental, ou os significados inerentes a constatação da plasticidade das sexualidades? De certo modo, as travestis resgatam velhos signos mitológicos por viabilizar a harmonização entre o masculino e feminino. Seres híbridos que transitam facilmente entre polaridades. Mulheres penianas que concretizam a simetria em um único corpo. Neste sentido, confesso que gosto de pensar nas travestis como sereias encantadas e encantadoras, que numa relação “metá-metá” brincam com as dimensões do imaginário e das subjetividades alheias. Nem humanas, nem peixe. Nem homens e nem mulheres, apenas seres concisas em si mesmas.

Mas no campo dos devaneios, não tem sido raro o contato direto com discursos oposicionistas por parte de ferrenhos conservadores e defensores da velha moral e dos bons costumes, que insistentemente se mantém presos na doutrina do esquartejamento dos corpos. Tendem ainda a entender os homens e mulheres em partes, de forma segmentada e não totalitária. O que é o homem afinal? O que o diferencia da mulher? Afora o pênis, na minha concepção, nada mais os diferencia além dos constructos culturais. Aprendemos a ser homens e mulheres através da cultura, o que significa que existem flexibilidades sobre as próprias concepções sobre o ser macho e fêmea. Não acredito que uma mulher possa, e deva ser vista e entendida apenas como portadora de uma vagina. Afinal de contas, nós humanos somos muito mais que apenas órgãos genitais. Neste sentido, os conceitos de masculinidades e feminilidades nos abrem um leque de possibilidades de entendimentos e concepções que talvez se encontrem mais alinhados com as necessidades e demandas da modernidade. Se sairmos do recorte biologista talvez se consiga entender que o pênis é um órgão tão importante quanto os demais, mas não tão mais operante que os outros a ponto de garantir nossa existência. Como se diria antigamente, talvez o problema consista no fato de algumas pessoas pensarem mais com a “cabeça de baixo”, justificando expectativas e comportamentos através de uma representação simbólica outorgada ao pênis. Neste aspecto, as pessoas falocêntricas tenderam a minimizar suas capacidades de vivenciar prazeres.

Muito tenho ouvido dizer que “as travestis são mulheres presas em corpos masculinos”, ou ainda pior, “homens com almas femininas”. Nestes casos, costumo dizer que definições romanceadas não inviabilizam configurações preconceituosas. A identidade sexual de um sujeito é resultado de um conjunto de fatores e não de uma única causa – a transgressão. No processo de desenvolvimento humano, ninguém nasce com a genuína vontade ou vocação para ser homem ou mulher. Pessoas se descobrem enquanto sujeitos do feminino ou do masculino. A orientação sexual sinaliza o foco do nosso objeto de desejo [ou dos objetos de desejos], para quem ou onde direcionamos nossa atenção e nos sentimos atraídos afetiva e sexualmente. E neste sentido, um pênis ou uma vagina não controlam comandos e impulsos instintivos e corporais no sentido de direcionamento dos desejos. Não é algo racional e manipulável, mais involuntário e inconsciente, pois que é do campo das subjetividades. E subjetividades não se moldam, mas se constroem ao longo dos tempos a partir das experiências individuais. No entendimento dessas novas configurações da sexualidade que se apresentam talvez a grande dificuldade se concentre no processo de abandono a norma milenar estabelecida a partir da biologia, para revisitar velhos conceitos a partir da concepção de gênero. Acredito que só através desse reordenamento poderemos entender e conceber a existência, bem como a viabilidade da existência de homens com vaginas e mulheres com pênis.

Neste sentido, sempre tenho questionado meus alunos sobre suas concepções de heterossexualidade e homossexualidade. Busco dessa forma, instigá-los a [re]pensar no quanto ainda estamos presos aos paradigmas conservadores e ultrapassados que tem respaldado nossas compreensões sobre a sexualidade humana. Como se diria os mais velhos, gosto mesmo de “cutucar o diabo com a vara curta”. Começo lembrando-os que o que caracteriza a heterossexualidade é a atração pelo sexo oposto - logo, homens sentem desejos por mulheres, e por sua vez, as mulheres por homens. Considerando-se então a cirurgia de transgenitalização, pela qual se torna possível a mudança de sexo, um homem que gosta de outro homem, quando transgenitalizado será retirado da categoria homossexual e passará a ser entendido como pertencente a categoria heterossexual. Claro que entre os alunos a colocação mostra-se perturbadora e impactante num primeiro momento, porém as reflexões começam a fluir de forma mais sistematizada. A celeuma se instaura no exato momento de se questionar o que demarca ou delimita a orientação sexual de uma pessoa. Se o que configura e determina nosso entendimento sobre o que é ser mulher encontra-se centrado existência de uma vagina, não existe motivos plausíveis para não se reconhecer uma transexual também enquanto mulher. Explicando melhor, podermos pensar: se antes da cirurgia a pessoa em questão era do sexo masculino pelo simples fato de possuir pênis, após os procedimentos cirúrgicos, automaticamente passará a ser concebido como mulher, pois que agora possui vagina. O silêncio sempre se faz presente nestes momentos. Considero mesmo que o seja inevitável. Porém o incomodo inicial é sempre quebrado com argumentos recorrentes: “mas ela não possui útero e nem trompas, logo não pode ser considerada ou classificada como mulher”. O mais engraçado de tudo é constatar a repetição da afirmativa seguinte, também recorrente: “pelo menos não é uma mulher natural”.

O velho discurso do que é natural parece ser bastante para justificar resistências, negando possibilidades de reflexões mais fundamentadas numa concepção lógica. O objetivo de tal provocação é possibilitar novos olhares sobre velhas concepções. A “mulher não natural” estabelece o lugar de negação e exclusão da “mulher artificial” – a mulher transgenitalizada. Por esse viés entende-se então que não é a vagina que determina o ser mulher. Agora trompas e úteros são evocados para reivindicar o lugar da norma, o que valida e respalda o discurso unicamente biológico entre estudantes ainda nos tempos atuais. Recorro então a uma nova provocação questionando-os se este recorte não nos levaria a entender que o fato de algumas mulheres não possuir útero as destituiria automaticamente do lugar de mulher. Novo silêncio se anuncia e dessa vez tende a se mostrar mais prolongado. Algumas argumentações fragilizadas são lançadas ao ar, até que a grande cartada é lançada sobre a mesa. “Mas mesmo com vagina, as transexuais não conseguem gozar”. Ponto final para a velha discussão, ou momento para ressuscitar Freud e sua polêmica teoria sobre o gozo clitoriano? Talvez momento propício e ideal para se questionar sobre gozo e as formas de gozar, penso eu. E lá vamos nós em novas buscas por respostas. Gozar é a mesma coisa que ejacular ou são coisas distintas? Ejacular é orgânico, logo biológico, enquanto gozar é emocional, logo subjetividade? Só existe gozo através e/ou via ejaculação? Será que um sujeito pode pela falta de envolvimento afetivo, por exemplo, chegar a ejacular sem gozar? E um sujeito envolvido emocionalmente e/ou afetivamente poderá chegar ao gozo sem necessariamente ejacular em algumas situações?

Mas uma vez os antigos diriam que “esse assunto daria panos para as mangas”. Assim, recorrendo ao dicionário verificamos que gramaticalmente gozar significa sentir prazer intimo, deliciar-se com; sentir prazer ou satisfação; experimentar prazer. Na cultura brasileira, gozar assume o sentido de se atingir o orgasmo. Entende-se então que orgasmo pode ser classificado como o mais alto grau de excitação dos sentidos ou de um órgão, especialmente durante o ato sexual. Já ejacular pode ser compreendido como derramamento com força, emissão, expulsão [de um líquido, por exemplo]. Neste sentido o ato de “ejacular algo” parece configurar-se como ação mecânica, que poderá ou não vincular-se a ação prazerosa. Prazer, ou gozo, por sua vez mostra-se como algo mais amplo por envolver sentimentos. O gozo sexual pode ser pensado pelo campo da subjetividade por agregar vários fatores, entre os quais, as sensações provocadas pelo toque, pelo atrito, pelo beijo, troca de suores, galanteios, encantamentos, paixões e amores, entre outros. O gozo em si independe da excitação sexual, o que não se aplica, via regra, a ejaculação. Assim, parece falarmos de coisas distintas, que logicamente quando unidas provocará uma espécie de prazer, mas não a única ou a melhor forma. Outro aspecto relevante é que o prazer não necessariamente se vinculará ao ato sexual. A ejaculação por sua vez, relaciona-se via regra, diretamente ao ato sexual, seja solitário, em dupla, em tripla ou nas mais variadas quantidades de conjugação. Ainda vale salientar que o gozo não será proporcionado apenas pelos pênis ou vaginas, até porque existem outras zonas erógenas espalhadas pelos corpos que podem provocar sensações tão ou mais prazerosas. Neste jogo de sedução e liberação da energia libidinal parece ganhar mais quem expande as possibilidades para outras partes corporais como dedos, bocas, línguas, pés, ânus, seios, entre outras. Neste sentido, o ato de ejacular mostra-se isolado e restrito a um único órgão, enquanto que o prazer tende a revelar outras dimensões corporais e sensoriais.

Acho que neste ponto torna-se interessante pensar que ninguém goza igual a ninguém, seja na forma, intensidade, localização da fonte de prazer ou sentido atribuído ao ato [e ao fato]. Se existe forma, ou regra regular para provocar a ejaculação, o mesmo não se aplica ao gozo. Este faz parte da descoberta, inclusive da própria sexualidade. Assim, acho que gozar é um estado de congruência psíquica e física, pelo qual o corpo torna-se loco das sensações sentidas e vivenciadas. Afirmar que uma pessoa transgenitalizada não goza é negar as possibilidades de descobertas individuais. É tentar generalizar algo que é pessoal e intimo demais para ser propagado como regra. Basta-se pensar que muitos dos homens dotados de pênis e mulheres dotadas de vagina [e também útero e trompas] não conseguem gozar durante as relações sexuais, o que também se aplica ao ato de ejacular, seja voluntaria ou involuntariamente. Neste aspecto, vale a máxima de que a intimidade é algo intransferível, pois que se torna subjetivado na particularidade de cada indivíduo.

Descobri-se do feminino ou do masculino não nos inviabiliza de experimentar novas experiências e configurações corporais e emocionais. Formas de vestir, andar, comer, sentar, falar, bem como comportamentos, são frutos de constructos sociais. Não são naturais ao indivíduo, mas aprendidos e apreendidos dentro de uma cultura específica. Homens escoceses usam saias e nem por isso são destituídos do lugar de masculino. Homens brasileiros esperam o carnaval para extravasar a feminilidade. É a nossa cultura, nem melhor ou pior. Apenas culturas diferentemente ricas. E é por via desta que atos e comportamentos são naturalizados como características peculiares ao masculino e ao feminino. A sociedade ocidental institucionalizou os papéis de gênero, que consolidados no censo comum das populações brasileiras, se estabeleceram como rígidas regras que devem ser seguidas. Então a dificuldade não consiste em aceitar as diferenças, mas no processo de quebra com os antigos paradigmas sociais. Também neste aspecto vale lembrar que a cultura nos dirá dos comportamentos, do processo de socialização, mas não dos nossos sentimentos e desejos mais íntimos. Assim, é preciso entender que orientação sexual não é fruto da aprendizagem, mas das descobertas pessoais. E para quem gosta do discurso “naturalizante” talvez seja aconselhável melhor observar a base da doutrina, uma vez que a própria natureza mostra-se vasta em diferenciações de espécies, onde heterossexualidade, bissexualidade e homossexualidade caminham juntas “desde que o mundo é mundo”.

Finalizo destacando apenas que o processo de naturalização dos processos pessoais e humanos parte talvez da nossa necessidade de diferenciação, processo pelo qual nos descobrimos a nós mesmos, e assim formamos nossa própria identidade. A necessidade de categorização é humana e não da natureza. É uma criação do homem. Assim, da mesma forma que tendemos a dividir e agrupar pessoas entre negros e brancos, altos e baixos, gordos e magros, feios e bonitos, nos sentimos tentados as categorias sexuais – gays, lésbicas, travestis, transexuais, intersexos, bissexuais, homossexuais, heterossexuais, pansexuais. Mas se estas categorizações nos respaldam a distinção do outro, nos tornando individuais [indivíduos], não devem nos servir para respaldar também as desigualdades. Até porque apesar das diferenças identitárias somos iguais em essência no que se refere à espécie animal. Como diz a sabedoria popular, “o mundo não foi construído em apenas um dia”. Do mesmo modo, uma identidade não se constrói do dia para a noite. Por isso, torna-se pertinente [re]pensar que orientação sexual não se configura como opção, pois que esta parte de uma decisão de escolha voluntária e consciente. A classificação ou terminação “opção sexual” nos serve apenas para consolidar a concepção de identidades e práticas desviantes da norma heterossexista que se pauta numa cultura falocêntrica que não cabe nos dias atuais, onde os metrossexuais parecem ditar as novas regras de conduta masculina e a moda. Assim, mais uma vez plagiando o Pepeu Gomes, lembro que “ser um homem feminino não fere o lado masculino” de ninguém, e que ser [e se mostrar] diferente é salutar, não podendo servir como justificativas para a destituição da honra e/ou caráter do outro.

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