sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A DESENFREADA SOLIDÃO URBANA




O CENÁRIO VAZIO DOS GRANDES CENTROS URBANOS

Há muito me sinto dissoluto. Depois de quase seis anos morando sozinho não tenho mais escoras ou amarras. Nada me prende. Muito menos paredes ou grades nas portas. Sinto-me definitivamente solto no tempo e no espaço. Muitos chamam isso de liberdade. A tão almejada possibilidade de sentir-se desatado de tudo e de todos. Por outro lado, alguns argumentam que a liberdade em excesso torna-se prejudicial. Independente das divergências é sabido que sua ausência ou conquista precipitará sempre processos longos e dolorosos. E neste momento é essa dor que me chama a atenção a ponto de traçar algumas linhas reflexivas. A dor da triste liberdade de estar ou sentir-se só. Uma dor que parece se revelar em várias dimensões ou proporções entre os diversos sujeitos urbanos. 

Penso que de certo modo, entre os metropolitanos essa autonomia tem se transmutado em sofrimento que figura estampada em rostos e comportamentos. E isso até certo ponto parece uma verdade meio que generalizada. Não ter que dar satisfações, não ter que pedir licença, não ter que pedir opiniões, não precisar negociar decisões. Neste contexto, o ato de sempre poder decidir por si próprio tem se mostrado um exercício prá lá de desafiador para muitos. Morar num centro urbano, em pleno centro da cidade, diante da avenida mais movimentada, por exemplo, não ameniza a certeza de se está só diante da vida, diante de si, de frente para o infinito. Nestes momentos a responsabilidade para consigo mesmo parece ampliada. Olha-se para os lados e verifica-se que não há quem recorrer. Depois se pára e reflete-se sobre o recorrer? Por fim, não nos resta mais a certeza sobre a quem se deseja realmente recorrer, e principalmente, porque desejar fazê-lo? Percebe-se então que não existem motivos aparentes. Mas descobre-se com o tempo, que a falta de colo é um mal comum a quem habita sozinho, grandes ou pequenos espaços silenciosos que se perdem em meio ao barulho ensurdecedor das grandes cidades. Não ter com quem partilhar, dividir ou comemorar momentos atormenta e em certa proporção adoece. Entende-se então que a dor causada pelo vazio acomete e amolece o mais forte dos fortes, e o mais bravo dos bravos.

As metrópoles são na verdade um grande e vazio cenário cinzento e insensato. Milhares de pessoas sós em si, e de si mesmas, circulam a ermo. Com ou sem destinos certos vagam pelas ruas em busca de algo que parece inatingível e inviável. Algo que não se pode alcançar nunca. Em meio a todas, algumas pessoas mais agitadas revelam tiques nervosos. São populações apressadas, onde todos se mostram atrasados em seus intentos e objetivos imprecisos. Os mais angustiados direcionam repetidamente seus olhares aos pulsos, mas não sentem as vibrações dos próprios corpos. Apenas contam minutos ritimadamente martelados por ponteiros estressados e estressantes. As horas correm e elas aceleram os passos rumos ao nada. Superlotam ônibus, atropelam-se nas calçadas, resmungam e xingam suas condições de sujeitos errantes. Veículos aceleram em sinais fechados e esperam a largada para cantar pneus nos asfaltos. O motor parece substituir seus corações, bombeando monóxido de carbono e alienando seus cérebros. Estão sempre atrapalhados e atrapalhando o resto do mundo em congestionamentos intermináveis e sem motivos. Neste ritmo alucinado e frenético, ruas pequenas e estreitas sufocam e os mantêm reféns de suas próprias armadilhas. Surge o medo que os apavora. Medo de tudo que faz com que janelas e portas se mantenham seguramente trancadas e constantemente vigiadas. O medo do próprio medo que torna necessário que afirmem e reafirmem suas certezas, ainda que as incertezas se mostrem como guias práticos e cotidianos. O medo do nada e do desconhecido ou inesperado que se torna pânico e estabelece comportamentos e condutas neuróticas. Uma espécie de insanidade coletiva que determina as suspeitas que funcionam como alertas aos perigos nem sempre reais.

Presas em seus pequenos mundos e submundos buscam a distancia e privacidade. Mas privacidade é algo que não se compra em grandes cidades. É neste atropelamento de buscas ansiosas que diariamente vejo determinado vizinho, todas as noites, tombar pelo corredor ao lado de uma prostituta. Vejo-os passar diante de minha porta. Ele trôpego, de garrafas nas mãos, a resmungar algo inteligível. Ela, ou elas, atrás, como se fatigadas e sem vidas. Cansadas não pelo ofício, mas pelo sugar de suas atenções em atendimento às carências alheias. No pequeno cubículo, através da parede que nos separa percebo que ele habitualmente canta enquanto dedilha um velho violão. Ao longo da noite sua voz abafada e rouca derrama lamentações e saudades de um tempo outrora vivido. Silenciosamente acompanho sons e ruídos que se intercalam e revelam movimentos e ações. Imagino que depois de algum tempo caia de sono sobre o pequeno estofado listrado encostado a parede da minúscula sala. Minutos depois, ela, ou elas, em silencio se retiram para o vazio e escuro corredor. Com dedos imprecisos acionam o botão do elevador que range até a chegada. A porta reclama o movimento para depois lentamente voltar à posição de repouso. Confinadas no calabouço vertical talvez se avaliem diante do espelho e reflitam sobre quem, nessa relação de amenidades solitárias, compra ou vende companhia momentânea. Talvez até exista mesmo cumplicidade entre ambos. E neste sentido, quem estará mais sozinho entre os dois, o velho homem bigodudo ou a puta, ou putas da praça da independência? E falo destas no plural porque raramente seus rostos se repetem, assim como seus nomes de batalha. Louras, morenas, negras, altas, magras ou obesas, apesar de diferentes se revelam as mesmas em essência e histórias. São mulheres da “vida nada fácil” perdidas em uma cidade sozinha.

Outro vizinho, aos finais de semana, aumenta o som. De Ângela Maria a Padre Fábio. Dos enredos das escolas de samba carioca a Roberto Carlos. Ninguém termina a música, ninguém completa sua triste lamúria. Talvez porque sejam os mesmos velhos e conhecidos lamentos, talvez porque encontrem eco nos prantos do ouvinte. De um modo ou de outro ninguém os escuta. Até porque não é ouvir o que se deseja naqueles momentos, mas falar. Ter a possibilidade de ser acolhido em sua própria lastima. Interpretes e fãs parecem misturados numa espécie de “fossa” catártica onde todos se purgam, se purificam e se limpam.  Todos interrompidos e maltrados pela angustia da solidão. Todos sufocados pelo silêncio que se mostra mais potente e sonoro para quem vivencia o medo de estar e de se sentir sozinho. 

Do andar de baixo, a voz de uma mulher de meia idade parecem gritos de socorro. É a Dalva de Oliveira que cantando impregna de lamentos o prédio inteiro. Sua voz lamenta e chora a falta dos amores perdidos. Ela canta enquanto a mulher grita sua dor na mesma intensidade. A dor do abandono, da rejeição e da falta imposta. Homens e mulheres, sozinhos entre quatro paredes. Acompanhados por fantasmas e assombrações pessoais. Esquecidos no tempo e no espaço. A voz da solidão se espalha e encontra respaldo dois andares acima do meu. Uma senhora chega à janela para reclamar através das músicas suas faltas. É à cidade que ela clama, perdida em brechas entreabertas entre as grades que parecem impedi-la de alçar vôos. E estes, em meio ao nada, se tornam cada vez mais constantes. Dos altos e frios prédios, a cada dia, mais pessoas despencam como folhas mortas. Lançam-se ao sabor do vento para se espatifar como frutas podres entre multidões anestesiadas que, apressadamente observam e se dissipam indiferentes. O frio que sopra do mar invade corpos e congela almas. Não existe tempo para reflexões que possam suscitar ou incentivar o próprio aniquilamento. 

Em busca desse algo desconhecido e aparentemente inatingível, dia desses vi um corpo descontrolado mergulhar de cabeça em sua sarjeta. Pareceu devorado pela boca de lobo que entulhava dejetos urbanos. Despropositadamente a cena pareceu insinuar sua condição humana, revelando um sinistro e funesto problema social que contribui para transformar pessoas em lixo nas esquinas e ruas que cortam a cidade. Corpos varridos para não atrapalhar o trânsito e a rotina dos que ainda vivem na ânsia de suas buscas. No mesmo sentido, também vi os bêbados que caem nas calçadas esburacadas e sujas. Dizem que o “porre” adormece a mente e alivia a dor. E se a noite acoberta os choros, o dia traz o sol que ilumina a vergonha do fracasso e impotência diante do vazio pessoal. Dia após dia, noite após noite, corpos pendem ou caminham trôpegos por ruas desertas e abandonadas. Perambulam ziguezagueando entre as vias duplas. Muitas vezes trombam de frente com a morte e adormecem para sempre no meio das pistas. Outras vezes estendem os ferimentos da alma à carne dilacerada por tropeços solitários. Os que cheiram vagueiam como almas penadas e as alucinações não parecem ameaçar mais que a realidade vivida. E em meio aos desastres urbanos, colas, solventes, álcool, cultos, músicas, ou qualquer outra droga, tendem a se configurar enquanto alternativas para apaziguar ou minimizar o medo do desencontro, ou das impossibilidades de encontros, consigo mesmo. Servem como alento aos prantos e desconfortos individuais.

À noite os invisíveis se arrastam pelas ruas sob o céu prateado. A imagem fantasmagórica refletiva sobre as águas mansas dos rios que cortam a cidade aumentam o ar de mistérios e perigos. Rapazes descem os edifícios e caminham em calçadas encobertas pelas sombras. Alguém encontra o que poderia ser sua alma gêmea e logo se espremem em pilastras sujas de orgasmos ressecados.  Os sarros e azarações se completam em esquinas e abaixo de marquises. É a busca desenfreada pela companhia alheia e desconhecida. Casais sobem escadarias na tentativa de se esconder, mas a privacidade é revelada por janelas repletas de sombrios e vazios vultos que sofrem de insônia ou buscam curtas diversões. Beijos eloquentes acontecem em paradas de ônibus, e do mesmo jeito, e na mesma velocidade com que as bocas se encontram, se separam e desaparecem nos bacuraus que insistem em atrasar. Nas janelas penduradas em paredes escuras, luzes denunciam sôfregas tentativas e insistências por permanências não desejadas. Busca-se além do sexo, o calor do corpo para as noites abafadas. Não demora e os movimentos nas escadarias se mostram invertidos. Meia hora, cinco minutos, desencantos, arrependimentos e incompatibilidades de desejos e preferências separam os pares. Novas buscas, novos encontros e desencontros. A noite se apressa em denunciar as obscuras safadezas que povoam os grandes e antigos centros.

As ruas se transformam em caminhos encantados, e as trilhas secularmente conhecidas e repetidamente refeitas findam em lugares comuns. As boates aglomeram milhares de pessoas que se acotovelam em buscas ansiosas. Não existe novidade. Musicas, decorações e pessoas tornam-se velhas conhecidas. Não existe mais encanto, apenas olhares languidos e nervosos que se cruzam e entrecruzam para revelar intenções. E na maior prova da busca pelo o que não se sabe, ou nem mesmo se deseja em verdade, bocas conhecidas voltam a se reconhecer em beijos frágeis e volúveis que nada representam ou despertam além do vazio de sempre. Quanto mais as horas correm ameaçando acabar a farsa, mas os nervos se afloram na busca por qualquer coisa personificada em qualquer pessoa. O importante parece ser estar, como um troféu que se precisa mostrar para validar competências e habilidades inexistentes e desacreditadas. Estranhamente as casas de shows se transformam em clubes privados onde se compactuam silêncios e vazios inconfessáveis. A felicidade revela-se frágil e enganadora. Todos riem ao mesmo tempo e do mesmo jeito. Estabelece-se um padrão de comportamento onde a falsa autonomia e a confiança compõem personagens que se desmancham a luz do dia seguinte. Coreografias são ensaiadas a exaustão para demonstrar alegrias cuidadosamente programadas e calculadas. Paira no ar um falso contentamento que nunca denotará o verdadeiro êxito do encontro duradouro. Neste cansativo processo de pegação pessoas se revezam em encontros frustrados, sempre na tentativa de uma nova possibilidade.

Na madrugada, as ruas se transformam em mercados onde carnes humanas são exibidas e oferecidas por pequenos valores. Um afago, um olhar embriagado, uma palavra despropositada solta ao vento, e novos encontros e pares se estabelecem no fracasso dos possíveis amores ansiados e ansiosos. Estranhos e estranhamentos despertam juntos, muitas vezes enrolados em corpos nunca desejados. Nada resta, nada sobra, além do vazio que não cessa. As recomposições se estabelecem e se afirmam até a próxima noite. E assim, pessoas buscam e se perdem sucessivamente em novas embalagens demarcadas por etiquetas que insinuam falsos status. São as caças urbanas que findam sempre em esperas prolongadas e monótonas. Talvez seja este o grande e principal motivo das dores que se correlacionam a liberdade dos sozinhos que se aglomeram nos grandes centros urbanos. Daqueles que permanecem ou insistem em permanecer desconhecidos. Dos que se enclausuram em pequenas celas esteticamente espremidas e organizadas em longos corredores, andar por andar, prédio por prédio, rua por rua, cidade por cidade. Os mesmos grandes espaços que juntam e amontoam são os mesmos que separam e isolam pessoas que insensatamente fingem viver liberdades não conquistadas e/ou ainda não entendidas.

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