O TEMPO QUE [RE]CATEGORIZA E TRANSFORMA PAPÉIS SOCIAIS
Hoje acordei sentido que tudo
estava fora do lugar. Porém quanto mais observo e analiso, mais percebo que a
única coisa fora de foco sou eu. Acho que na verdade estou fugindo de algo,
providencias que preciso tomar, mas que por falta de coragem deixei pendentes.
Depois de certa idade a vida parece nos exigir reparações. Fica um sentimento
de dívida com quem não sabemos. Talvez esteja em plena crise da meia idade.
Dizem que é natural. Não sei. Mas é como se não sentisse apenas falta de algo
específico, mas ao contrário, falta de tudo. O pior é que é uma falta de um todo
que não sei explicar. Talvez falta de mim mesmo, ou de quem tenha planejado ser
na idade em que me encontro. É como se tivesse projetado ou planejado tanta
coisa importante, coisas quem nem me lembro mais, ou mesmo continuo valorando.
Na verdade nem sei do que falo ao certo. Apenas sinto que neste exato momento
algo me deixa incompleto.
Revisar as próprias angustias
nunca foi uma tarefa fácil prá ninguém, porém necessária de vez em quando.
Preciso por exemplo, retornar a casa dos meus pais. Desde junho que não vou por
lá. Minha mãe faleceu em junho. Talvez seja um pouco disso, um sentimento de
“soltura” no mundo. Uma espécie de falta de pertencimento ou de abandono. A
quebra do elo com as próprias origens. As vezes acho que tenho medo de revelar
a saudade que sinto, ou de constatar o vazio deixado pelo vinculo que se rompeu
definitivamente. Vez por outra penso que saí de casa muito cedo para conquistar
o mundo. Hoje, de certa forma temo o mundo que conquistei, e muito mais o que
falto conquistar. A incerteza do alcançar o que presumimos como sucesso
atormenta e amedronta. Como dizem, amadurecer dói, não fisicamente porque o
corpo espicha lenta e gradativamente com o passar dos anos. O espírito sente a
passagem do tempo de outra forma. É como uma contagem regressiva calculada
silenciosamente onde cada segundo parece significar uma infinidade de tempo
que pode ser produtivo ou desperdiçado. Como uma velha ampulheta que te
acompanha e que lentamente derrama a areia da vida. O pior é que diferentemente
das histórias infantis que embalavam nossos sonhos, não podemos virá-la de lado
e começar nova contagem. O tempo então se mostra implacável diante do inevitável.
Esse processo se dá sempre de si para
si mesmo. Não existe cumplicidade. E por mais que alguém lhe diga que entende
sempre se terá a plena certeza de que este é quem menos compreende o que se
passa. O envelhecimento é frio e solitário. De repente nos olhamos no espelho e
nos estranhamos. Verifica-se uma ruga em algum ponto onde nunca estivera antes.
A pele parece dobrar cansada formando vincos que salientam e modificam
expressões. Passamos a sorrir de forma diferente. Aparentamos diferenças nos
traços que sorrateiramente insistem em redesenhar novas silhuetas. Fios
prateado substituem os negros e longos cachos outrora cultivados com tanto
esmero. A testa franze de forma mais tenaz e consistente a cada nova
contrariedade ou discordância talvez evidenciando a falta de paciência que nos
acomete. Tornamos-nos mais impacientes diante do ritmo alheio porque giramos em
outra velocidade. Passamos a ter pressa nos resultados. Voltamos duas ou três vezes
ao maldito espelho antes de sairmos de casa. Buscamos inutilmente ocultar o que
há muito se mostra evidente ao mundo. Nós envelhecemos.
Neste ponto penso que a minha
geração sofre certa crise de identidade. Isso se explica porque quando criança,
estar diante de alguém com quarenta anos ou mais significava postar-se diante
de uma pessoa velha. Hoje tenho quarenta e cinco e não me percebo ou reconheço
na figura simbólica introjetada na infância. Lógico que a estimativa de vida e
as condições relacionadas a qualidade de vida melhoraram. Mas o que foi cultivado durante décadas não se
apaga de um dia para outro. a velhice é e continua estigmatizada e estigmatizante. Desta forma, é preciso tempo para desconstruir modelos
incorporados, automaticamente tomados como únicos e adotados como verdade
absoluta. Sei que o processo de envelhecimento não me é privilegio ou castigo.
A população brasileira está envelhecendo junto comigo. Meus ídolos envelheceram.
Meus amigos me revelam a passagem do tempo estampado em seus rostos. Meus
irmãos ficaram diferentes. A família vem se modificando a cada dia e tomando
novas configurações. Olho para meus sobrinhos e, muitas vezes, me assusta
perceber seus tamanhos e comportamentos. Deixaram de ser crianças rapidamente e
com a mesma velocidade seguiram formando e construindo a terceira geração. Os
papéis sociais também mudam e se alternam sucessivamente. Deixamos de ser filhos
e nos tornamos pais e/ou tios, para logo em seguida assumir a condição de
tio-avô. Olhamos para os lados e as lembranças logo se
tornaram passado que não volta. Entramos num ciclo sem retorno. Não existe
possibilidade de acordos ou negociações. O tempo é implacável em seu intento e
soberano em sabedoria.
Nas relações sociais deixamos de
ser tratados por você e passamos a categoria de senhor. Apesar de
profissionalmente ter assumido muito cedo tal rotulo devido a cargos e lugares de
representação que sempre ocupei e que me conferia poder, a fatídica alcunha
hoje me fere os ouvidos. O sentido de respeito empregado denota não mais status
social, mas também a idade cronológica e a diferença geracional. E isso
logicamente tem suas implicações. Você está sendo [re]categorizado. E isso logicamente também, trás e tem
implicações simbólicas dentro de nossa cultura. Fazer quarenta e cinco é
vivenciar a ameaça do presente onde se hiper valoriza a juventude, e
consequentemente o corpo. Assim, o mundo moderno nos tem colocado em eternas e
frequentes encruzilhadas. Se não acompanhamos as mudanças tecnológicas e lingüísticas,
por exemplo, nos mostramos ultrapassados. Se ao contrário, caímos na armadilha
de atualizar gírias, tendências e comportamentos, corremos o risco de parecer
ridículo. Difícil é encontrar o meio termo, se é que esse existe.
Nessa nova roupagem, se assim
podemos denominar o envelhecer, a gravidade se mostra como grande inimiga
feroz. Nada parece se manter mais no lugar devido. As olheiras saltam e
torneiam os olhos, a boca arqueia parecendo débil em certos ângulos, os peitos
e músculos se mostram flácidos, enquanto a barriga exige maior espaço. É como
se estivéssemos cheios de objetos que insistem em cair de nossas mãos. Não dá
para segurar ou controlar tudo de uma só vez. E devido a esse despencar
desenfreado, tem dias que acordamos tão amassados que verdadeiramente desejamos
nos esconder de nós mesmos. Manter-nos debaixo dos lençóis parece evitar o
temido reflexo da própria imagem. Da cabeça aos pés descobrem-se fios brancos. De inicio até começamos a contá-los, mas com o
tempo parece não restar algarismos numéricos para a quantificação total. A soma
nunca bate e o resultado é sempre insatisfatório e traumático, para não dizer
assustador.
Talvez a crise da meia idade seja
apenas uma sábia estratégia natural para demarcar a necessidade de se rever
velhos conceitos. Seria o inicio da reparação de nossas dividas, de
redirecionar o foco para nós mesmos, de valorizar mais os momentos e
possibilidades, pois que essas mudam e transmutam o corpo e a alma. Talvez seja
só uma crise, e como todas as outras específicas das idades, tenda a passar do
mesmo jeito que chegou: tranquila e silenciosa. Mas de uma coisa tenho certeza
absoluta, essa é uma crise que deixa marcas que não mais se apagarão. Marcas
que te contarão de tua vida, que evidenciarão tua história e trajetória, como
um livro que se escreve por si mesmo, autônomo e altivo como o próprio tempo
tem se mostrado para todos.
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