terça-feira, 31 de maio de 2011

PORQUE NÃO FALAR DA MORTE?


OS MISTÉRIOS E TABUS DA MORTE

A morte é realmente um tema cercado por mistérios e tabus. Temida e indesejada, tem por séculos permeado o imaginário dos homens. Ultimamente ela tem me sido cotidiana, seja através dos noticiários das TV, jornais e revistas, ou mesmo através da parida de amigos e parentes. Talvez ela venha me rondado nos últimos meses. Talvez exista algum motivo. Talvez seja coincidência. Talvez nem seja nada demais. Fato é que há algum tempo tenho evitado o assunto, mas agora acho que tenho bons motivos para tais reflexões.

Não me considero supersticioso e por isso penso que na verdade a morte tem rondado a todos. Na verdade a morte tornou-se uma constante nas conversas, debates e discussões relativas às crescentes ondas de violência que atingem os grandes centros urbanos, seja na área metropolitana, seja no interior do estado. Especificamente no mês de abril, o Brasil parou chocado diante da televisão para assistir ao massacre de crianças de uma escola carioca. Também nos comovemos com a morte do ex-vice presidente José Alencar. Um jovem foi assassinado dentro de uma livraria na Avenida Paulista. A descoberta das caixas pretas do avião da Air Frence fez submergir centenas de corpos das profundezas oceânicas.

No mesmo mês, um de meus cunhados faleceu depois de lutar durante anos contra um câncer de próstata. Era um aviso de sua proximidade. Dias depois, um amigo morreu por complicações causadas pelo HIV. Eram de certa forma mortes preanunciadas. Mas aí, outro amigo, com quem trabalhei, foi assassinado a pedradas e pauladas no município de Bom Jardim, município da Região de Desenvolvimento do Agreste Setentrional, a uns cento e sessenta quilômetros do Recife. Uma jovem estudante da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE foi morta durante a tentativa de assalto em Aldeia, bairro nobre, localizado no município de Camaragibe, cidade onde vivi minha infância e parte da adolescência.

Os meses seguintes trouxeram mais mortes. Um assaltante foi assassinado por um policial durante um assalto no município de Garanhuns. Sua morte foi transmitida em rede nacional. O mesmo ocorreu com uma travesti morta a facadas, na cidade de Campina Grande, na Paraíba. A cena transmitida no Fantástico me deixou estarrecido. Nem tanto pela morte em si, mas pela banalização da notícia [afinal de contas mata-se travestis e mulheres em Pernambuco quase todos os dias]. Mas as posturas de indiferença estampadas nas vozes e rostos dos ancoras da revista eletrônica [como gostam de anunciar] me chocou. Foram vinte sete facadas exibidas e relatadas como se descreve uma receita de bolo. Talvez se tivesse sido transmitido no melodramático e oportunista programa da Ana Maria Braga tivesse causado mais impacto. Mais uma vez a morte saiu das telas e aproximou-se de minhas janelas. É que uma pessoa se jogou do ultimo andar de um edifício a menos de quinhentos metros do meu. Não soube quem era. Qual sexo, idade, raça, classe social e muito menos sua história de vida. Isso acontece nas grandes cidades e em Recife não é novidade pessoas alçarem vôos em quedas livres. Quem mora nos centros das cidades sabe que não só jarros caem das janelas, mas também corpos que se espatifam nos meio-fios.

Dizem que a morte só precisa de uma desculpa para se anunciar. Dizem também que ela chega para todos sem distinção. Não se sabe quando, onde, a que horas e de que forma se encontrará conosco. A única certeza que temos é que mais cedo ou mais tarde ela virá. A morte não falha. Acho que não escolhe suas vitimas aleatoriamente ou por acaso. Existe uma lógica para se morrer. O grande problema é que ainda não conseguimos entendê-la [ou simplesmente aceitá-la]. Seja qual for o caso, a morte parece causar sempre surpresa. E apesar de próxima nos parece sempre distante. Isso até que ela se anuncia em sua família. A simples perspectiva de sua iminência causa desespero e incômodo. Não sabemos lidar com uma realidade tão fria. Talvez porque não nos preparamos. Talvez porque nos negamos a reconhecê-la enquanto fato natural. Provavelmente porque não temos a certeza de uma continuidade.

A morte é o antônimo da vida [ou será o contrário?]. E é engraçado pensar que quando criança não se tem medo de morrer. Na verdade nem sabemos seu significado. Aprendemos a receá-la através dos adultos. Na verdade ninguém nos explica nada, mas todos reafirmam sua existência. Quando minha avó paterna morreu fiquei feliz porque parecia festa. Tinha passeio garantido e todos pareciam me dedicar maior atenção. É que os adultos temem que as crianças se assustem e por isso criam fantasias mirabolantes e ilógicas. Alguns dizem apenas que a pessoa morta está dormindo. Outros por sua vez dizem que viajou para longe e que um dia nos reencontraremos com ela no céu. Mas aí a gente pensa, partiu por quê? Para onde essa pessoa foi se ninguém havia nos dito de sua partida? E onde fica o céu que ninguém esclarece? Quando minha avó materna morreu, senti alívio. Não havia convivido com ela e logicamente não existia afinidade ou afetividade. Nunca nem mesmo a havia conhecido, até que foi morar com a gente. Velha e cansada, não conseguia mais se alimentar e nem se mover sozinha. Era um trabalho extremo para crianças tão pequenas cuidar de uma senhora que parecia com as bruxas dos contos de fada.

Quando meu pai morreu [por incrível que pareça não lembro a data e nem ano] encontrei pela primeira vez a morte de perto. Internado na Unidade de Terapia Intensiva de um hospital, os dias se arrastaram. Era uma morte lenta e inconsciente. A nós, filhos e demais parentes cabia a espera. Um dia acordei sobressaltado com o anuncio de sua partida. Tenho certeza que ele veio me avisar. Pensaram que havia sido apenas um sonho. Não era. Liguei para o hospital e tive a confirmação do fato que se dera há poucos minutos antes. Coube-me informar a família. E isso nunca é uma tarefa fácil. Não se sabe o que dizer e muito menos como dizer. Como é que se anuncia a morte de alguém próximo sem causar comoção ou dor? A gente não aprende isso nas escolas e muito menos em casa. Nascimento é fácil porque tem comemoração. Anuncio de morte nos exige embargar a voz. Tem que ter cuidado com o tom, e se possível, aconselha-se usar pausas que devem ser acompanhadas de penar e sofrimento.

Acho que já relatei a incompreensão de muitos de meus amigos de faculdade com o fato de ter bebido um amigo de sala de aula. Chama-se beber o defunto. Acredito que é uma forma de se comemorar sua passagem [se é que existe passagem]. De qualquer forma comemora-se o fechamento de um ciclo, inclusive em nossa vida. Afinal de contas a morte não marca apenas a vida [ou ausência desta] de quem se vai, mas de quem fica também. Fiz o mesmo na morte de meu pai. Nem sei o que pensarão meus irmãos ao lerem tal relato. É a primeira vez que confesso o que para muitos pode parecer heresia. Mas para mim é homenagem. Acho que é assim que lido [tenho lidado, ou talvez, tenho tentado lidar] com a morte. Acho até que não tenho medo dela. Tenho sim, medo da forma como pode se apresentar. Não é a morte em si que assusta, mas a qualidade da mesma. Penso que tememos o sofrimento, a dor, a agonização. Tememos o desconhecido e a incerteza. E talvez isso contribua para nos manter cuidadosos e vivos. Até porque se tivéssemos certeza da continuidade da vida, e ainda que esta se desse num paraíso, muito prefeririam antecipar a “viagem”. Então o medo nos mantém vivo.

Quem nunca se deparou com a morte pelo menos uma vez na vida? Não a morte alheia, mas a sua própria? Como dizia o querido poeta da geração oitenta: “eu vi a cara da morte e ela estava viva”. Esteve muito perto de mim durante um assalto [também já relatado] há alguns anos atrás. Mas não era minha hora. O gatilho não foi disparado. Mas senti o frio atravessar meu corpo e eriçar meus pelos. Não tinha manto preto e nem foice. Não havia sinal concreto de sua existência, ma sua presença era real. Estava ali. Ao meu lado. E ao contrário do muitos podem pensar, queria me proteger. Irreal? Talvez! Fato é que a morte pareceu me salvar da minha própria morte e tudo correu, de certa forma, tranquilamente. Pedi calma, retirei a certeira do bolso, entreguei o dinheiro, voltei com as pernas cambaleando para casa. Não olhei para traz, mas sabia que a morte estava me acompanhando. Parada ao longe, cumprindo sua missão. Talvez a morte seja na realidade um anjo que nos ajuda a enfrentar o momento fatídico. Não sei se acredito em anjos ou seres divinos. Mas por via das dúvidas prefiro acreditar que acredito. É menos incômodo pensar que não estamos sós e que podemos sempre contar com a proteção superior.

Independente de todas essas divagações acredito que a única certeza que podemos ter é que não morremos sós. Ela está conosco. A morte é nossa única companheira na hora de nossa morte. De um jeito ou de outro, ela nos conduzirá para outra dimensão, outro espaço ou simplesmente rumo ao finito. E como costuma dizer um grande amigo meu: “só peço que me dêem uma boa hora”. E isso basta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário