sábado, 4 de junho de 2011

A ESPERA DA MORTE

Dona Alice - minha mãe.


À MINHA MÃE COM CARINHO

Era madrugada da quarta-feira e o quarto estava gelado. De repente fui acordado pelo movimento brusco de um corpo que afundava em minha cama. A sensação de pânico provocada pela presença de alguém ao meu lado me paralisou por completo. Não é a primeira vez que isso acontece. Não é a primeira vez que entro em choque. Alguém chorava e eu estava sozinho. E como sempre, fui tomado por um desespero que parece me deixar embriagado. O corpo não responde aos comandos cerebrais e os movimentos desengonçados me desequilibram física e emocionalmente. Não consigo falar, enxergar, mover, mas a audição se aguça e o mínimo ruído gera arrepios. Os momentos de tormenta parecem se prolongar por horas. Alguém chora ao meu lado, mas não existe ninguém no quarto frio e escuro além de mim. A presença não é física. Não vejo, mas sei do que se trata e por isso mesmo me apavoro.

Eram duas horas da madrugada quando senti que minha mãe estava presente. Talvez estivesse se despedindo. Talvez não seja nada disso. Talvez nada disso faça sentido. Mas o fato de sua morte está próximo me desperta um turbilhão de sentimentos e emoções que se revelam difíceis demais para explicar. A racionalidade perde espaço e o choro me lava o rosto. Acho que a morte fragiliza e inviabiliza a coerência. Mas penso que não choramos a morte em si, mas os incômodos que ela nos gera. Na verdade penso que a morte demarca uma despedida. Como numa viagem longa onde duas pessoas seguem caminhos opostos e não se encontram mais, como nos rompimentos de longas relações amorosas ou final de grandes amizades. Neste sentido, milhares de pessoas entram e saem de nossas vidas constantemente. E essas partidas são como mortes sucessivas as quais nos acostumamos com o tempo. Dizem que o tempo cura tudo. E a saudade inicialmente forte e dolorosa vai se atenuando com o passar dos dias.

A morte em si nos impõe mudanças de hábitos, e as vezes até de comportamentos. Penso que este é o motivo maior da nossa dor. A partir daquele momento teremos que agir de forma diferente. Não contamos mais com um elemento importante e precisaremos solucionar problemas a partir de outras perspectivas. Seja no campo das emoções ou no campo das questões físicas e concretas, a morte gera dor porque nos obriga a sair da nossa zona de conforto, que será novamente alcançada após um período de readaptação. E assim as coisas voltam ao normal. Nós humanos tendemos à acomodação até para eliminar o sofrimento e a dor. Buscamos conforto em outros ombros, outros amores, outras amizades. Não digo com isso que esquecemos o ente querido, pois pessoas importantes marcam nossas vidas para sempre. E na minha realidade, a figura materna tem importância e valor fundamental. A dor da perda se transforma e assume outra proporção ou dimensão.

Minha mãe sempre disse que as mães deveriam morrer antes de seus filhos. Que nenhuma delas deveria ter que passar pela triste experiência de enterrá-los. É como se o amor de mãe pelos filhos fosse muito maior que o inverso. E talvez seja verdade. Nós filhos, crescemos e constituímos novas famílias, construímos novas relações de afeto, parcerias conjugais. Multiplicamo-nos através dos nossos próprios filhos. Aprendemos a repartir o amor. Mas o amor de mãe é diferente. Talvez não seja repartido, mas distribuído naturalmente. E neste sentido o papel de mãe é talvez um dos mais importantes e difíceis por requerer abdicação e renuncias constante. Pelo menos essa é a referencia que tenho "do ser mãe". E neste sentido digo que a minha sempre foi uma grande mulher. Firme, forte e convicta em seus propósitos. Uma mulher guerreira que com dignidade gerou, criou e amou seus dez filhos. Uma mulher, que ao seu jeito nos ensinou e impôs as boas regras da vida. Que nos protegeu quando necessário e nos feriu quando devido. Que nos acarinhou e mimou mesmo sem necessidade.

Minha mãe é assim. Dessas mulheres batalhadoras e incansáveis na formação dos filhos. Dizia que estudo era fundamental e por isso batia pernas atrás de escolas, de livros, cadernos. Viabilizava possibilidades de dignidade, por mínima que fosse. Em certos momentos se mostrava compreensiva a ponto de reformular velhos conceitos, a ponto de rever posições e até de omitir opiniões que pudessem machucar. Em outros, se fazia altiva e imperiosa com suas ácidas críticas e comentários até certo ponto maldosos. Mas as mães são assim. E podem ser assim. Até porque, por pior que seja a situação as mães pensam sempre no bem estar dos filhos. E minha mãe sempre foi assim. Um bicho bravo capaz de atacar para defender sua cria. Capaz de dar a própria vida por um deles. Do tipo de pessoa que se fazia presente mesmo estando distante. Que cobrava proximidade. Que exigia notícias. Que reivindicava respeito.

Hoje penso que a dor [ou incomodo] que sinto é muito próxima da que senti quando sair de casa. É uma mistura de vazio e solidão que nunca passa. É um espaço que ninguém preenche. Um lugar que ninguém ocupa. A separação é sempre algo muito difícil. A única diferença é que aquela era um decisão voluntária. A de agora é imposta. Não existe possibilidade de escolhas, de intervenção. Não se pode mudar de planos, refazer as contas e reorganizar as ações. Agora não nos cabe nada. Não nos é perguntado se estamos prontos, ou se pode ser. Apenas é, e pronto. O que fica é a sensação de algo muito importante que foi perdido. Penso então no que perdi ao sair de junto, ao me desvencilhar para crescer. E crescer é algo que também dói bastante. Talvez porque não dar para voltar atrás. O tempo é impiedoso e segue tanquilamente seu curso.

A proximidade da morte de alguém que amamos impõe lembranças. Acho que é uma forma de prenuncio. Uma maneira de nos preparar ou talvez de purgar alguns pecados cometidos mesmo que inconscientemente. Não sei porque mas acho que estamos sempre em dívida com nossas mães. Não sei se falo besteiras. Na verdade não sei dizer o que sinto. Talvez seja novamente a sensação de vazio e solidão que ficará para sempre. A falta de algo que nos incompleta, nos aleija. É como se perdêssemos o elo. Uma espécie de fio que por mais distante que formos não se parte. Uma garantia de pertencimento, afinal somos sempre filhos de alguém. E o elo de um filho com sua mãe é sempre muito forte. E é diferente do elo com o pai. Neste aspecto, relembro que ela sempre dizia que “pai é qualquer um, mas mãe só existe uma”. E logicamente tinha razão. Filho é uma extensão da mãe. É como se ela se dividisse, se multiplicasse em vários.

E agora o meu fio está se partindo. E talvez ela esteja apenas esperando nossa compreensão e aceitação para completar sua jornada. A morte então é o repouso necessário. A recompensa por anos de dedicação e esforços sobre humano. E neste sentido, que ela tenha a certeza de missão cumprida. Que tenha certeza do meu agradecimento eterno. E acima de tudo que tenha o conhecimento do meu orgulho em ser seu filho. De ter aprendido tanto, de ter recebido tanto. Do meu agradecimento por ter contribuído para que me tornasse a pessoa que sou hoje. Penso que tenho tantas coisas que gostaria de dizer. Mas na verdade acho que os filhos nunca falam tudo. Talvez essa seja nossa principal dívida. Mas talvez não seja preciso. E de qualquer forma nunca daria tempo para contar ou falar tudo. Assim, que sua espera não seja longa. Pode partir em paz, pois que as lembranças sempre te farão presente. Um abraço, um beijo e boa viagem.

Boa noite minha mãe.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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