terça-feira, 28 de junho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - DE VOLTA AO PASSADO










PRIMEIRO CAPÍTULO DO RECOMEÇO
Há exatamente um ano comecei a escrever sobre minha própria vida. E confesso não ser uma coisa muito fácil falar sobre si mesmo. Relendo algumas linhas comecei a refletir sobre como a vida segue rapidamente por caminhos que, muitas vezes, nem imaginamos ser possíveis. Alguns planos ou projetos se concretizam, outros não. Alguns abandonamos ou simplesmente decidimos por adiá-los. A vida nos obriga, inevitavelmente, a rever constantemente nossos próprios conceitos. E isso se torna por demais, interessante. Apesar de doze meses não se configurar como tão prolongado período de tempo, percebo que muitas coisas importantes aconteceram. Algumas boas, outras nem tanto. Na semana passada ao reencontrar uma grande amiga, ela me disse que nunca se esquecera de uma frase que havia lhe enviado por e-mail: “por mais difíceis que sejam as fases da vida, todas merecem ser vividas”. Logicamente não lembrava mais de tal mensagem, mas confesso ser gratificante saber que o que dizemos, ou dissemos em algum momento, servira, serviu ou servirá de alento ou referência para alguém. E é exatamente sobre isso que resolvi escrever: as fases da vida e o merecimento de vivê-las com dignidade.

Em um ano alguns acontecimentos se tornaram marcantes em minha trajetória e por isso 2011, com certeza, me será inesquecível. Tornei-me professor, e pela primeira vez tive que encarar o desafio de enfrentar salas repletas de jovens alunos ávidos por novos conhecimentos; voltei a trabalhar para mim mesmo, e assim estou num processo de reestruturação pessoal e profissional; minha mãe faleceu depois de alguns dias internada em uma unidade de terapia intensiva. Posso mesmo dizer que neste ano consegui ser ouvido por milhares de pessoas. Primeiro devido ao sucesso do blog que hoje tem uma média de mil acessos mensais. E neste ponto, confesso ainda me espantar em perceber que pessoas desconhecidas, inclusive no outro lado do mundo, investem tempo para ler memórias, pensamentos e conjecturas de uma pessoa totalmente comum. Também falei para variadas platéias, seja através das aulas, seja em palestras de capacitação de profissionais, seja através dos textos que escrevo para encenações teatrais. São minhas idéias e percepções sobre a vida atingindo milhões de pessoas, em várias localidades e de diferentes formas. Por fim, das três premissas básicas para se marcar a passagem na terra (plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho) que falei no início de minhas memórias, posso afirmar me sentir extremamente feliz em está a um passo de concretizar a segunda (sobre a qual pretendo falar posteriormente). Acho que isso já se torna suficiente para justificar e explicar por este ano se torna tão importante para mim.

Relendo também os escritos iniciais percebo o quanto faltou ser dito ou contado. Engraçado lembrar que após as postagens no blog meus irmãos reclamaram (no bom sentido, claro) a ausência de algumas passagens importantes e memoráveis. Divertido e gratificante foi vê-los também voltar ao passado em busca de lembranças que hoje se tornaram engraçadas e divertidas a ponto de provocar boas e altas risadas. Peço então licença para me redimir diante de tal falha vasculhando minhas histórias (que também são deles) para recompor nossas trajetórias. Esclareço, contudo, que tais relatos corresponderão ao meu modo de ver a vida, de entender os fatos e de ressignificar algumas situações, a fim de evitar os “dramalhões mexicanos” sobre pobrezas e dificuldades sociais que se tornaram marcas registradas dos cantores de duplas sertanejas. Neste aspecto, relembro de uma frase dita pelo ex-presidente Lula, no Marco Zero, diante de milhares de conterrâneos: “só sabe o que é falta, quem já passou por isso”. E partindo desse principio posso afirmar que pobreza nunca foi vergonha, pois que essa se concentra na impossibilidade de condições dignas de existência e desenvolvimento saudável.

Posto isso, dá para entender as dificuldades e ausências sentidas e vivenciadas por uma família composta por dez filhos, uma mãe semi-analfabeta e um pai que muito jovem se tornou o provedor. Minha casa mudou de estrutura e tamanho várias vezes, talvez no mesmo [des]compasso com que evoluiu o número de irmãos. Refazendo as contas, na semana passada descobri que minha mãe se casou com dezoito anos, provavelmente no mês de julho, já que minha irmã mais velha nasceu no mês de abril. Isso significa que antigamente [exatamente a cinquenta e seis anos atrás] as mulheres casavam e logo se viam grávidas. Se meus cálculos estiverem corretos, até eu nascer em 1966 [sim, irei completar 45 anos de idade] minha mãe se manteve grávida por doze anos consecutivos. Isso significa uma média de 1,5 filhos por ano. Ou seja, mal paria, ela se descobria novamente gestante. E antes que perguntem ou questionem a soma, lembro que depois de mim vieram mais dois filhos, que devido ao desenvolvimento foram gerados em intervalos maiores.

Do pouco que sei sobre a história de meus pais, fica o registro de uma conversa relatada por minha mãe em certa ocasião. Ela nascera em Gravatá, cidade interiorana, a mais ou menos uma hora e meia do Recife [lembrem que sou péssimo em orientação geográfica e espacial]. Viveu sua infância junto aos irmãos em um pequeno sítio, que nem sei onde se localiza. Na verdade nunca conheci sua cidade natal. Para mim era apenas mais uma das pequenas cidades pelas quais passava quando em viagem rumo a Caruaru ou Petrolina. Pelo que sei a pobre família era dirigida por um pai severo, que batia nos filhos e adotava punições severas, como por exemplo, colocar os filhos homens para trabalhar nus no campo. Lembro de minha mãe contar que me algumas situações precisou engatinhas escondida pelo chão para levar-lhes roupas, comida e água. Lembro também de seus relatos sobre suas corridas em cavalos, momentos em que se sentia livre e poderosa. Na verdade sei muito pouco de seu passado, mas sei que devido as aspereza do pai, alguns filhos tomaram o mundo sem deixar rastros. Um deles reapareceu depois de décadas em São Paulo. Já morávamos em Camaragibe quando um carro estranho estacionou na frente de casa. Minha mãe emocionadíssima, de imediato reconheceu o irmão desaparecido, que trouxera a família em viagem de férias. Esse fato nunca saiu de minhas memórias, até porque foi a primeira vez que andei de carro. Nem sei ao certo que idade tinha, mas sei que era uma criança meio afastada da civilização, e isso logicamente tinha uma importância enorme. O carro era uma Brasília, se não me engano, de cor creme. O irmão de minha mãe tinha uma esposa gorda e duas filhas adolescentes. Em determinado dia fomos todos à praia. O carro ficou pequeno para tanta gente. Tinha meninos na mala e também amontoados, uns sobre os outros no compartimento de passageiros. Minha tia gorda me ajeitou entre suas pernas, e agachado ali não conseguir ver as maravilhas do desenvolvimento. Não sabia o que eram prédios e muito menos tinha visto tanto carro ao mesmo tempo. Mas encolhido daquele jeito pude apenas visualizar as nuvens que passavam apressadas pela janela.

Outro irmão de minha mãe nunca voltou e provavelmente morreu sem reencontrar a família. Das irmãs, sempre tivemos poucas notícias. Na verdade, nunca tive muita aproximação, e muito menos afinidades com tios, tias e primos e outros parentes e aderentes. Acho que a distância nos impossibilitava disto. Assim, nossa família se resumia a nós mesmos e aos muitos bichos que sempre criamos. Mas, voltando a história de minha mãe, sei que viera morar na casa de uma senhora conhecida como “Didinha”, que na verdade nunca soube direito o grau de parentesco. O que sei ao certo é que morava em plena Av. Norte. Segundo uma de minhas irmãs, ela era prima de minha mãe, ou seja, seu pai era o irmão rico do meu avô materno. Tinha alguns filhos [que nem sei ao certo quanto] e uma filha única de quem minha mãe se tornaria “dama de companhia”. Se hoje em dia, ainda se torna comum importar crianças de outros municípios (menos desenvolvidos, logicamente) para assumirem os afazeres domésticos nas casas das famílias de classe média aburguesadas da capital, imagina naquelas épocas em que nem se imaginava falar sobre direitos das crianças e adolescentes. Assim, a família abastada se dividia entre a casa do Recife, onde moravam, e a de Olinda, onde veraneavam todos os anos. Apesar de imaginar as belezas da época, esse se tornou um período do qual nunca tive muitas informações. Sei apenas, que como acompanhante minha mãe parou os estudos na mesma época em que a “senhorinha”. Da casa na Av. Norte ainda me lembro, pois, quando criança a acompanhei em algumas visitas. Era grande e tinha terraço com piso de mosaico vermelho com adornos brancos, que também se estendiam por todos os cômodos. Eles também tinham televisão e até tela colorida. Nesta época, essas telas eram adaptadas ao aparelho para colorir as imagens. E assim, podia ver Fred e Wilma Flingstones mudarem de cor a cada movimento. Era alta tecnologia só acessível aos ricos. Tinha um muro na frente e nas pilastras que seguravam o portão havia uma pinha portuguesa de porcelana colorida. Daquelas que ornavam as residências dos que tinham beiras.

Minha mãe conviveu com eles por muitos anos, e segundo ela, nossos destinos seriam bem diferentes se quando, recém saída da adolescência, tivesse resolvido aceitar o convite de um pretendente caminhoneiro apaixonado. Independente disso tudo o seu encontro com meu pai parece ter se dado em uma das janelas dessa casa. Gosto de imaginar que era uma tarde ensolarada e que na tal janela existia vasos com flores, daqueles que se estendem por todo o peitoral, onde as moças colocavam o rosto sobre as palmas das mãos e ficavam a suspirar pelos príncipes encantados que por ventura lhes lançavam olhares languidos de paixão [adoro os olhares lânguidos, que significam voluptuosos e sensuais]. Ao que tudo indica esses encontros foram se sucedendo até que um dia o enamorado futuro papai tomou coragem para adentrar na residência e pedir permissão para namorá-la. Daí para o casório e consequentemente para a chegada de uma penca de filhos, parece que foi um passo. Neste ponto, não sei ao certo a cronologia dos fatos, mas pelo que minhas irmãs contavam o jovem casal morou por alguns anos no bairro de Água Fria, próximo a casa dos meus avôs paternos. Como a situação financeira de início não era das melhores, parece que se fez necessário uma distribuição dos filhos entre os parentes mais afortunados. Assim, a primeira filha passou umas temporadas na casa da avó, que lhe deu o nome de batismo; e a segunda, no sítio de uma tia que morava no município de Vicência (local que por coincidência trabalha atualmente). Acho que essas “temporadas” não foram tão curtas, uma vez que, pelo que eu sei só após meu nascimento nos mudamos para Camaragibe.

Era uma pequena casa perdida no meio dos matos. Pelo que me contavam os mais velhos, tinha apenas uma sala, quarto, cozinha, e um grande espaço para se construir. A casa foi sendo reformada de acordo com a chegada dos novos filhos. O banheiro era externo e logicamente não tinha água encanda [como se chamava], por isso era preciso pegar água na cacimba e colocar no vaso sanitário [que se chamava bacia]. Ainda lembro o quanto era difícil e temeroso acordar durante a noite para ir ao cubículo escuro. Como era criança, era natural que tivesse medo de assombração. Isso na verdade não tinha. Mas tinham os sapos e as lagartixas que corriam pelas paredes. Daquelas escuras e cascudas que paradas, nos fitavam balançando a cabeça. Nossas camas coletivas e muitas vezes dormimos amontoados, o que não deixava de ser divertido. Com o passar dos tempos os cômodos foram melhor divididos e passamos a dormir em beliches de madeira, confeccionados por meu pai. Detestava dormir no andar de cima, pois como me mexia muito durante a noite, as vezes caia e estatelava no chão. Dizem que em um desses episódios meu sono era tão pesado, que mesmo tendo caído, continuei a dormir [será que não tinha desmaiado?]. Meus irmãos também não gostavam do fato. Isso porque, segundo eles, eu urinava na cama e a urina escorria por cima de quem dormia na cama de baixo. E nesse ponto, também é engraçado lembrar que a gente não urinava, mas mijava.

Mas antes disso lembro que quando criancinha dormia em um berço protegido por um mosquiteiro. Em certa noite acordem aos ouvir os sons de pequenos sinos. Havia fadas minúsculas sobrevoando o berço. Elas eram coloridas e cintilantes e brilhavam na noite escura. Nunca descobri se o fato foi real ou apenas sonho. De qualquer forma, acho mesmo que as crianças são mesmo protegidas em seus sonos. E isso nós éramos, tanto pelos adultos, quanto pelos seres invisíveis que nos livram de várias enrascadas e difíceis situações. Essa é a única explicação que encontro para o fato de nunca termos sido picados pelas tantas cobras que apareciam naquela casa. Elas vinham de todos os lados. Telhado, janelas, portas, buracos de tijolos e das árvores. Certo dia, durante o café da manhã, uma papa-ova caiu de telhado bem em cima de nossa mesa. Foi um corre-corre. Em outra situação, outra apareceu na porta da sala. Certa vez, minha irmã mais velha saiu correndo nua do banheiro porque uma cobra havia entrado pela janela enquanto tomava banho. Já as cobras cipós sempre nos causavam arrepios e repugnâncias. Na verdade acho que não são venenosas e por serem finas demais se assemelham a galhos de árvores. Assim, muitas vezes as confundíamos e elas escorregavam de nossas mãos.

Sei que meu pai trabalhava muito e por isso só estava em casa à noite. Às vezes conseguíamos esperá-lo e ficávamos na mesa enquanto ele jantava. Depois eu e minha irmã [que ele chamava de “bitoco” e “bitoca”] ficávamos fazendo cachos em seus cabelos, que já eram grisalhos. Sua cabeça ficava cheia de pitós amarrados com linha. Gostava que fizéssemos cafuné até que adormecesse. Perto de nossa casa tinha uma linha férrea e um pontilhão enorme. Muitas vezes até brincamos lá. Era conhecida como a linha do trem. Havia uma placa vermelha com as palavras: pare, olhe, escute. Esse trem atravessava a pista de asfalto, e por isso, ocorriam muitos acidentes graves, que logo se transformavam em notícia e movimentava o lugarejo. Um desses grandes acontecimentos foi provocado pelo boato de que a barragem de Tapacurá teria estourado. Foi um inferno em Recife. O radio divulgava informações a todo o momento e povo entrou em desespero. Foi um dos maiores acontecimentos de minha infância. Nem sei o que significava aquilo tudo e muito menos onde ficava a tal barragem. Mas sabia que era uma catástrofe. Minha mãe estava preocupada com meu pai, que só chegou muito tempo depois. Soubemos então que ele precisou atravessar o tal pontilhão em pleno breu. Como os trens haviam parado por causa dos boatos, as pessoas tiveram que voltar para suas casas a pés. Hoje imagino o desespero e o cansaço de tal empreitada, afinal de contas são quilômetros e mais quilômetros do Recife até Camaragibe.

Minha terra encantada [acho que sofro do complexo de Piter Pan] ficava muito longe da cidade. E não se iludam, naquelas épocas, e por muito tempo, chamávamos de cidade apenas a capital. O resto, ou demais territórios eram apenas locais onde morávamos. Tudo acontecia naquele pequeno espaço de terra repleto de matas e ruas de barro que se estendiam por longas estradas. Só para se ter uma idéia de como era desestruturado e distante o danado do lugar, diziam que morávamos “onde o diabo perdeu as botas”. Minha mãe nos dizia em suas histórias que “era onde o vento fazia a curva”. Na verdade por muito tempo não tinha idéia do que isso significava, pois no meu referencial não existiam outras paragens [como diriam os matutos]. Assim, meu mundo se resumia a algumas ruas onde brincávamos até o entardecer e o terreno de minha casa, que na época considerava imenso [talvez minha falta de percepção espacial esteja correlacionada, vai se saber]. O fato é que a infância feliz foi marcada por fatos históricos que recontam a própria história do país. Como já disse anteriormente, sou filho da ditadura, pois nasci em pleno regime militar. A censura era tão grande que até paródias com a música do Roberto Carlos era proibido. Sabe aquela que ele diz: “olho pro céu e vejo uma nuvem branca que vai passando/ olho prá terra e vejo uma multidão que vai caminhando...“ [?]. Pois é, para nós era bastante divertido mudar a letra e cantarolar: “olho pro céu e vejo uma nuvem negra de urubu, olho prá terra e vejo uma multidão tomando no cu”.

É claro que quando estávamos na frente dos mais velhos, não chegávamos a completar a frase, porque cu era coisa feia. Era palavrão e significava ofensa e falta de educação. Não cabia na boca de crianças inocentes, assim como “essa tabaca”, “essa porra”, “esse cacete”... “Essa buceta” nem pensar. Naqueles anos, no máximo, criança revoltada usava chigamentos como “essa cebola”, “ora pipoca” e coisas do gênero, que sem graça e sem sentido não traduziam nossos sentimentos de raiva. Assim, ao cantar a música proibida à gente completava com a seguinte frase: “... olho prá terra e vejo uma multidão tomando... Brahma chope... Brahma chope...” Em outras situações também podíamos mandar alguém tomar no “Crush” [alguém se lembra disso?]. É que esse era o nome de um antigo refrigerante de laranja que era vendido em uma garrafa de vidro, barrigudinha, onde se lia Crush em letras verdes vazadas. Em nossas bocas o nome da bebida torna-se sinônimo de pornografia e nos servia para ofender a quem nos contrariava.

Também costumávamos dar o dedo. E neste sentido, cada dedo da mão tinha um nome: polegar, indicador, maior de todos, tira bolo e cata piolho. O ato de dar o dedo se traduzia em contrair o indicador e o tira bolo para salientar e evidenciar o maior de todos [está tentando fazer? Tenta que é legal]. Dessa forma surgia em nossa frente uma imagem que Freud denominaria como falo, mas que para nós significava um “caralho”, que era como denominávamos o pênis. Dependendo da intensidade de nossa raiva podíamos dar o dedo e dizer de forma grosseira: “toma prá tu”, ou então, “senta aqui e roda”! E isso era ofensa grave, que muitas vezes justificavam a violência por parte dos adultos que nos batiam na boca.

Quanto às brincadeiras eram criativas e variadas. Podíamos brincar de “pega” que consistia em correr atrás de alguém para torná-lo o perseguidor; ou de “trinta e um alerta”, que consistia em brincar de se esconder. Quem era descoberto ia para uma pilastra ou árvore mais afastada e contava em voz alta de um até trinta e um, enquanto os outros se escondiam. Caso fosse descoberto, tínhamos que nos livrar do perseguidor e correr até o local para gritar: trinta e um alerta. Era a senha que garantia a vitória. Passávamos noites inteiras e consecutivas correndo como loucos pelo quintal, normalmente acompanhados por nosso cachorro Ping. Acho que esse era um animal que se considerava gente, porque mesmo nos atrapalhando participava das brincadeiras, normalmente revelando nossos esconderijos. Também pulávamos academia [ou amarelinha]. Mas era proibido porque dava azar e diziam que o pai da família podia morrer. Por isso mesmo nunca tivemos um pé de pinheiro em nossa casa. Segundo as crendices se o topo do mesmo ultrapassasse o telhado nosso pai morreria no ano seguinte. Na verdade sempre quis colocar em xeque essa verdade absoluta. Não que desejasse a morte do meu pai, mas porque nunca gostei de [ou ser obrigado a] acreditar em algo que não podia comprovar. Acho que era partidário de Santo Agostinho, e por isso, tinha que ver para crer. Na impossibilidade, as brincadeiras de roda se tornavam suficientes e divertidas. “Atirei o pau no gato” era a mais comum e bobinha. O “Pai Francisco” dançava enquanto cantávamos “quando ele vem se requebrando, parece um boneco se desmanchando”. E isso, dependendo de quem o interpretava provocava deliciosas risadas. “Passar o anel” ou a fita, “barra ou bandeira” [que eu chamava de Bárbara Bandeira, imaginando uma mulher importante e poderosa], “esconder a peia”, “garrafão”, “pular cordas” e tantas outras enchiam nossos imaginários.

Lembro também das “bolas de gude” [acho que é assim que se escreve]. Havia verdadeiras competições e quem tivesse a maior bola era considerado esperto e inteligente. As que eram de metal, chamadas de rolimãs, eram super cobiçadas e valiosas. Riscava-se um triangulo no chão e em cada ponto se colocava uma bola dessas, depois com os dedos íamos empurrando até bater umas contra as outras. Quem acertava ficava com a bola do outro e aumentava sua coleção. Normalmente surgiam as brigas, mas as regras sempre eram respeitadas. Lá em casa, no terraço, vivia um sapo de estimação. Desses cururus, que vivia escondido atrás de um vaso de planta. Muitas vezes ele engolia nossas bolas e voltava a se esconder, acabando com a brincadeira. A gente tinha que esperar até o outro dia para ver se o bicho vomitava a bola, que tinha que ser lavada. Quem vigiasse o sapo e conseguisse recuperá-la se tornava seu dono. Muitas vezes eu até me coloquei a esperar, mas o sapo era teimoso por demais e só devolvia a bola quando queria. Também tinha os “espetos”, que eram considerados perigosos por causa dos riscos de se atingir os pés de alguém. Mas a gente nunca se importou e jogava escondido mesmo. “Jogar queimado”, ou “matar-morreu” era outra diversão que aglomerava as crianças e adolescentes do local. Havia um campo [na verdade um terreno baldio] ao lado de nossa casa. Era lá que, sem camisas, a gente queimava do sol e também das boladas violentas. O impacto da bola no corpo suado fazia queimar a pele. Tinha uma menina chamada Tissa [ou seria Tirça?]. De qualquer forma o apelido era referente a tição, devido a sua cor. Vale salientar que naqueles tempos não existiam os movimentos negros para reclamar as ações de racismo. Ela era a melhor e mais forte jogadora. Eu adorava competir e por isso sempre jogava no time contrário. Às vezes ganhava, em outras perdia. Na verdade sempre tive grande adimiração por Tiça. Porém hoje, se a encontrasse na rua provavelmente não nos reconheceríamos. Digo isso porque andando pela Av. Conde da Boa Vista, onde moro a mais de duas décadas, sempre vejo uma senhora que comercializa nas ruas. Tenho certeza que se chama Santana. E lembro que quando era criança, sua mãe a amarrava com cordas aos pés dos móveis para ir trabalhar. É engraçado pensar sobre os caminhos que tomamos, ou destinos que seguimos. Mas voltando, do lado oposto ao tal campo havia outro terreno com um jambeiro frondoso, onde a gente se trepava [ato de subir] o mais alto possível para se livrar das boladas que viam de baixo. Quem fosse atingido tinha que descer e se tornava o bobo.

Dia de praia era uma farra. Na verdade nem sabíamos onde ficava o mar, que pra gente só existia nas histórias mirabolantes do capitão gancho. Lembro que um dia estava marcado o piquenique. Passamos a noite rezando para não chover. Nem sabíamos como se vestir para ir a praia. Só sei que para evitar o naufrágio de nossa aventura era preciso que o caçula [filho mais novo] desenhasse um sol bem grande no quintal. Dessa forma ficávamos na dependência de nossa irmã, que muito nova, não sabia desenhar direito e por isso colocava nosso programa em risco. E é interessante que nossa representação infantil de sol tinha olhos, nariz e uma boca aberta cheia de dentes. No dia seguinte, acordamos cedo [na verdade apenas levantamos da cama porque não tínhamos conseguido dormir], tomamos banho, escovamos os dentes, penteamos os cabelos e sentamos para esperar pela hora de passear. O ônibus era longe e tínhamos que andar a pé até a estrada de asfalto [ou pista, como era conhecida a única rodovia que cortava a cidade]. A companhia que fazia o transporte até Recife era conhecida como Alberto Maia, e acho os dois únicos ônibus só passavam de tempos em tempos, seguindo em sentidos contrários. Ou seja, enquanto um vinha sentido subúrbio, o outro ia sentido cidade.

A gente adora passar pela Avenida Caxangá, que era enorme. Logo depois da ponte que divide os municípios havia uma loja de alguma coisa, que tinha um grande monumento onde existia um pinto dentro de um ovo de concreto. Tenho essa imagem na cabeça até os dias de hoje e mesmo com as mudanças estruturais provocadas pela passagem do tempo sei exatamente onde ficava o dando do pinto amarelo. A viagem até a praia era cansativa. O ônibus lotado, muitas vezes dificultava a acomodação das nossas bóias. Eram câmeras de ar, de pneus de ônibus, que cheias acomodavam várias crianças, e até adultos, que se balançavam nas ondas. Quando o mar estava cheio as crianças ficavam brincando apenas na beira. Era terrível a quantidade de areia que entrava pelos calções. Como era terrível também a quantidade de água salgada que engolíamos quando atropelados pelas ondas fortes. Os garotos mais velhos e alguns adultos se arvoravam de mar adentro. Eles sabiam nadar, pois estavam acostumados com os açudes e rios próximos as nossas casas.Eu nunca me arrisquei. Primeiro porque nunca pude tomar banhos de açude, logo não tinha aprendido a nadar. Depois os adultos alertavam sobre os perigos de tubarão. Diziam que se sentisse cheiro de melancia deveríamos sair correndo. Cheiro de melancia era sinal de tubarão nas proximidades. Mas eu não sabia como era o cheiro de melancia, logo, como poderia me proteger? Não entrava fundo no mar, como hoje ainda não entro. De qualquer forma, o que antes era uma precaução, hoje se transformou em fobia. Só depois de adulto é que vim descobri que não sabia o cheiro da melancia por que não tinha olfato.

Os dias de piquenique era uma danação. Quando a fome batia a gente sentava num canto e devorava tudo que vinha pela frente. Tinha cachorro quente, feito com pão Frances. Pão com carne de lata [Wilson, claro], pão com ovo e pão com doce de goiabada. Tinha também biscoitos com doce e bolachas Cream Cracker. Isso era lanche, porque o almoço mesmo era à base de macarronada [provavelmente fria e engordurada] que se misturava com farinha para render. Quando o vento pegava de jeito era farinha por todos os cantos, olhos, boca, nariz e cabelos. Às vezes surgia feijão e até arroz com carne. As frutas eram muitas e variadas, principalmente as laranjas, bananas e melancias. Passávamos a manhã e parte da tarde no melhor estilo farofeiro. Era divertido enrolar na areia e ficar todo melado, parecendo fatia parida. Ah, essas também entravam no cardápio [dá para acreditar que um dia comi fatia parida em baixo de sol quente, em plana praia de Boa Viagem?].

Em certa ocasião, uma vizinha que nos acompanhou levou até sabonete novo para tomar banho de mar. Hoje imagino a cena dantesca do casal se ensaboando todo e se enxaguando com água salgada. E essa era terrível durante a volta porque o sal impregnado parecia nos furar quando em contato com as roupas. Eu sempre tive problemas com os ônibus. Nada relativo a preconceito ou coisa parecida. Mas é que eu não podia pegar ônibus com cadeiras azuis salpicadas com pontos pretos e cinzas que logo vomitava. As cadeiras de couro vermelho também me provocavam as mesmas náuseas e lá ia eu botando tudo o que tinha comido para fora. Era um vexame, e logicamente também ficava envergonhado. Mas não tinha jeito. Eu precisava viajar olhando para o teto do veículo. E isso até funcionava. Mas se um freio forte ou uma manobra mais irregular me fizesse perder o foco, era vômito na certa. Assim, sair de casa rumo a destinos mais longos se tornava um inferno para mim. Enquanto criança vivia um verdadeiro conflito, uma vez que desejava a aventura ao mesmo tempo em que temia suas consequências e vexames.

Bom, como costumam dizer: relembrar é viver, e talvez por isso a gente termine perdendo a noção das horas. São duas da manhã e preciso acordar cedo para dar andamento ao livro que estou por publicar. De qualquer forma, essa é uma história que não acaba agora e nem tem pressa para ser contada. Assim irei apresentando-a em capítulos, o que me possibilita mais tempo para remover as teias da memória e completar meu retorno ao passado.

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