sábado, 2 de julho de 2011

HISTÓRIAS DA MINHA VIDA - PARTE II - AS MAZELAS DA POBREZA E A DITADURA MILITAR



A MINHA HISTÓRIA DO BRASIL

 
Exatamente as 13:00 do dia 06 de julho de 1966, eu daria meu primeiro grito. Não de gol, mas de vida. Acabara de nascer em uma maternidade pública localizada no bairro de Casa Amarela, em Recife. Cinco dias depois a Inglaterra entraria em campo contra o Uruguai. Placar zero a zero. E apesar da fragilidade da seleção [segundo especialistas], os inventores do futebol ganharam a copa do mundo. Naquele ano o Rio Capibaribe subiu além da conta invadindo terras, submergindo quarteirões inteiros e comprometendo drasticamente minha terra natal. No bairro de Beberibe, onde minha família morava, a água deu no meio da canela. Por causa disso fui levando a um lugar longínquo e desconhecido. Mas para entender melhor essa história é preciso retornar ao passado. Mais precisamente a sessenta e nove anos atrás, quando em Fortaleza, no Ceará, nascia o homem que orgulharia o Brasil durante a campanha italiana, na II Guerra Mundial; se tornaria comandante do IV Exercito, em Recife; e posteriormente entraria para história como um dos principais articuladores do golpe militar de 1964: Humberto de Alencar Castelo Branco. Com a queda de João Goulart, o então chefe do Estado-Maior do Exercito tornou-se presidente da república dando início ao período de ditadura militar que perdurou por duas décadas. Dessa forma, graças ao Castelo Branco e a uma corja de fardados torturadores e corruptos só conheci, e passei a entender o conceito e a importância da democracia aos 18 anos de idade.

Mas dois anos depois do grande golpe eu era apenas uma criança que ensaiava os primeiros passos. O oitavo filho de uma mulher de trinta anos, que acabara de se mudar com a família para os cafundós de um lugar chamado Camaragibe [um dos três distritos ligados administrativamente ao município de São Lourenço da Mata]. O lugar havia sido elevado à condição de município em 1963, porém com a ascensão dos milicos foi promulgado o “acórdão do Tribunal de Justiça” e através do mandato de segurança nº 59.906, em 06 de julho de 1964 o lugarejo foi novamente reanexado a cidade de São Lourenço, retornando a condição de distrito. Era o inicio do retrocesso que levaria o Brasil ao patamar de país em desenvolvimento. A história da ditadura parece mesmo ligada a minha própria história, tanto que exatamente um ano depois do meu nascimento, morreria em um acidente aéreo o homem que comandou a perseguição de milhões de estudantes, invadiu universidades e expulsou do país grandes intelectuais, politicos e artistas que se levantaram contra o autoritarismo fardado [e forjado]. Nesta época não entendia de política, não participava de movimentos e não saia às ruas gritando por liberdade. Minhas dores de cabeça eram outras. Mas tinham praticamente as mesmas raízes – a tirania de um regime político que contribuiu de forma direta para a consolidação das desigualdades sociais e para o empobrecimento financeiro, intelectual e, político e social de milhões de brasileiros.

As dores que sentia eram causadas por uma ferida que se estendia por quase todo couro cabeludo. Uma espécie de caspa enorme da qual nunca soube o motivo e muito menos a origem, mas logicamente se relacionava as condições de pobreza e falta de assistência médica pública de qualidade. Só lembro o quanto sofri, pois que durante os banhos minha mãe tinha que remover toda a casca que se formava para nova reposição de remédios. Ela então passava um pente bem fino até remover toda a crosta e eu chorava enquanto o sangue me corria pelo rosto. Assim, parte de minha infância foi marcada pelas mazelas causadas pela estratificação social. Como morávamos no meio dos matos era muito natural que houvesse as condições necessárias para a proliferação de toda espécie de insetos que provocam doenças, deficiências e mortes.

Aquele lugar era infestado de muriçocas. Mas aquelas não eram muriçocas comuns. Com certeza que não. À noite pareciam tomar forma e se transformavam em jatos de guerra, iguais ao que cansei de ver cruzar os céus do Recife durante os desfiles militares. Em Camaragibe não passavam aviões, em compensação as muriçocas passavam zumbindo em nossos ouvidos. Faziam manobras mirabolantes no ar, miravam o alvo e partiam para o ataque. As picadas eram terríveis e sucessivas. As investidas aéreas duravam a noite inteira e durante o dia contávamos os prejuízos gerados pelos bombardeios. O corpo amanhecia marcado, como que furado por balas. Como a pele coçava, nossas unhas se transformavam em armas afiadas e através do atrito com o couro ressecado provocavam feridas. Pior que essas, eram os maruins que se faziam invisíveis para nos atacar pernas e braços. Acho que em decorrência da alergia fiquei com o corpo repleto de irritações, que logicamente se transformavam em pequenas feridas inflamadas que podem ser classificadas como eczemas. Naqueles anos remédio de pobre era sabão amarelo, que era vendido em barra nas barracas e armarinhos locais.

Aquele sabão, que mais parecia um pedaço de sebo, servia para tudo, inclusive para mordidas de cachorros, das quais me tornei recordista. Acho que onde morávamos os vira-latas já me conheciam, e de certa forma, existia mesmo um complô contra mim. Assim, volta e meio era atacado por um deles. Talvez porque fosse magro demais e os animais me vissem apenas como deliciosos ossos. Não sei! Mas praticamente a cada semana era uma nova mordida. Nos pés, nas pernas, bochecha e até na barriga. E a cada novo ataque, novas sessões de terapia popular. O ritual era sempre o mesmo. Tomava banho e lavava o local com sabão amarelo [para não infeccionar, dizia minha mãe]. Depois tinha que esfregar dois gomos de alho descascados sobre o ferimento. Até aí tudo bem porque dava para aguentar o ardor. O pior era ter que mastigar bem os dentes de alho [que junto com a saliva formava uma massa pastosa] para depois engolir. Não sei por que, mas os adultos achavam que alho cru e sabão amarelo era a combinação perfeita para qualquer doença de criança.

Como sempre gripava, lá vinha o chá de alho, que precisava ser tomado quente. Tinha também um tal de mingau de cachorro [como era chamado] que fazia qualquer um colocar os bofes prá fora. Era feito com farinha e água fervida misturada com alho, pimenta do reino e pedacinhos de coentro. O negócio parecia uma gosma transparente. Feito uma geléia ou grude, daqueles que agente usava para substituir as colas industriais que custavam os olhos da cara. Eu olhava para aquela coisa e só conseguia ver as bolinhas pretas que se revezavam com as pintinhas verdes que serviam para enfeitar aquela goma pegajosa de sabor horrível. Quando começava a chorar, minha mãe logo gritava: “engole o choro e toma tudo de uma vez”. Prendia a respiração, virava o caneco [como se chamava os copos] e esperava que a gosma descesse de goela a baixo.

Tinha um cachorro chamado “Xareu”, que se não me engano pertencia a um tio, irmão de meu pai. Eles moravam a poucas quadras de nossa casa e por isso o rabugento vivia por lá. Ele era meio amarelado e sujo, e tinha os pelos ouriçados. Devia feder prá burro, e por isso, logicamente, tinha muita pena do pobre coitado. Com as melhores intenções que uma criança inocente como eu poderia ter, certo dia inventei de alimentá-lo com os restos de meu almoço. O bicho comeu feito doido. Rosnando como se avisando para ninguém se aproximar. Sem entender direito a linguagem “cachorrícea” resolvi organizar um pouco as coisas já que ele espalhava tudo e se lambuzava feito um camobembe. De forma carinhosa tentei fazer amizade, mais no menor movimento, o bichano saltou pra cima de mim e me mordeu o rosto. Resultado? Dois dias de cama foi o meu castigo. E ainda por cima tive que comer novamente os dois dentes de alho e engolir a gororoba gelatinosa [será que era por isso que se chamava mingau de cachorro?].

Confesso que me senti ofendido e injustiçado com a situação. Afinal de contas tinha aprendido que para se tornar uma pessoa melhor era preciso repartir o pão nosso de cada dia. E eu tinha feito uma boa ação já que reservara parte de minha comida para o desgraçado moribundo. Achei que era demais para mim e por isso resolvi me vingar de todos os cachorros da redondeza. Lembro que eu e meus irmãos aprendemos que amassando pimenta vermelha e esfregando no rabo dos vira-latas eles ficavam enlouquecidos. Com tal estratégia a gente ia à forra. Quando aparecia um desconhecido e mal encarado, pegávamos uma varinha e tascávamos pimenta no rabo dele. Os cachorros corriam como loucos, rodopiavam e passavam horas seguidas esfregando o “furico” no chão. Nessa mesma linha de maldades inocentes aprendemos que cruzando os dois dedos indicadores em forma de elo, se provocava prisão de ventre nos animais. Assim, sempre que algum cachorro começava a defecar a gente prendia os dedos e lá ficava o bicho na maior agonia. É claro que hoje sei que nada daquilo era verdade, mais por coincidência ou não, toda vez que fazíamos, a maldade dava certo. Acho que toda criança é sempre meio perversa. Mas na verdade nossas maldades em nada se comparavam com as dos militares que aplicavam choques elétricos e afogavam os “comunistas” durante seções de torturas que aconteciam nos porões dos presídios espalhados pelo país.

Na nossa lista de inimigos quadrúpedes, as vacas e os bois ganhavam em disparada. Um vizinho nosso tinha um sitio, e nele havia uma vaca que a gente chamava de Bonina. Alguém já sentiu a aspereza da língua de uma vaca? Pois é, eu já. É que um dia, passando perto dela resolvi fazer contato. Comecei a lhe fazer carinho e achei até que ela estava gostando. Seguro e confiante de minha boa intenção, e logicamente me assegurando que não tinha chifres, me aproximei um pouco mais. Até já me sentia amigo da vaca quando de repente uma coisa grossa lambeu todo meu rosto. Com os olhos ainda meio embaçados com tanta saliva viscosa, tive tempo de correr antes que Bonina repetisse seu gesto de carinho. Acho que também não entendia nada da linguagem bovina. Mas contava-se uma história que não se devia passar por perto de um touro com roupa vermelha. Talvez isso tenha inspiração nas touradas espanholas. Não sei. Mas levávamos a coisa a sério e, por via das dúvidas preferíamos não arriscar. Neste sítio também havia vários pés de azeitonas roxas. Era divertido subir nas árvores e ficar enchendo nossas sacolas plásticas com toneladas delas. Acho que a gente gostava mesmo era do perigo, pois no campo existia uma quantidade enorme de bois com grandes chifres pontiagudos e vacas envenenadas que pastavam soltos. Éramos eu, minha irmã Lígia e dois irmãos Eliel [o mais velho] e George [o mais novo]. Nós três já sabíamos subir nas árvores com grande destreza, enquanto o menor [que sempre chamamos de “nego”] ficava embaixo esperando nossas remessas. Certo dia um touro chifrudo e malhado partiu em disparada ao seu encontro. Ele atravessou uma cerca de arame farpado que limitava o terreno. Só que para sua surpresa havia uma grande cobra preta no local e por isso teve que retornar apressado. Foi uma aventura e tanto. Como não havia alternativas, descemos das árvores para salvá-lo e saímos correndo, os quatro, pelo meio dos matos. Só paramos quando chegamos a nossa casa, sãos e salvos. Depois do susto e recobrados do cansaço nos demos conta que as azeitonas tinham se perdido pelo caminho.

Outros bichos que se tornavam nossos reféns eram os zigue-zagues [que a gente chamava de cavalo do cão]. Se pegava os voadores pelas asas e se amarava uma linha em seus rabos. Depois a gente prendia a outra ponta da linha em um galho qualquer e deixava os bichinhos presos por horas seguidas. Os gafanhotos a gente prendia pela cabeça, com linhas ou cordões. A gente brincava fazendo de conta que eram cavalos voadores. Já as picadas de abelhas e marimbondos nos eram constantes. Como vivíamos feito macacos, sempre pendurados em árvores, era comum se deparar com enormes colméias. Uma vez meu irmão Eliel, que hoje mora em São Paulo, foi atacado por abelhas africanas e desceu de uma árvore tão depressa que nem percebeu a quantidade de pele da barriga que deixou no tronco. Para esses casos o sabão amarelo também era remédio. Mas como os arranhões e escoriações eram grandes foi preciso colocar mertiolate. Esse sim, era o temor das crianças por que ardia demais. E para aliviar a gente ficava soprando o ferimento até aliviar a dor.

Antigamente o mertiolate era vendido em um vidro transparente, o que deixava evidente seu tom escarlate que lembrava as chamas do fogo em brasa. Vinha acompanhado de uma paletinha de plástico com a qual se aplicava a dosagem. A gente esfregava a paleta sobre o ferimento e novamente a colocava de volta no vidro. Ou seja, contaminava-se a tal paleta e depois todo o remédio. Ninguém nunca nos disse que seria preciso lavá-la após o uso. Afinal de contas, nos anos de chumbo as classes pobres nunca foram prioridade dos governos. Os militares controlavam tudo, inclusive nossa educação e poder de decisão. Tanto que o médico e industrial Nilo de Souza Coelho, descendente de Petrolina, em 1966 se tornou o primeiro governador de Pernambuco eleito via indireta após o Golpe Militar. Hoje em dia as coisas são bem diferentes. Conseguimos até eleger uma mulher para presidente da república. E o antigo remédio agora é vendido em forma de aerosol. Neste sentido, o mercúrio era bem melhor porque não ardia, porém melava demais. Assim a gente vivia cheio de manchas arroxeadas pelo corpo. Os dois eram ótimos tanto para feridas quanto para as topadas pelas quais perdíamos sucessivamente as unhas dos pés. Até hoje tenho duas delas prejudicadas pela força com que foram arrancadas. Nunca tinha lido Carlos Drumont de Andrade, e por isso não sabia que “no meio do caminho tinha uma pedra”. Acho mesmo que nos meus sempre existiram várias, e enormes. Assim, quando via, a cabeça do dedo já tinha voado. Mas, dos males, o menor. E invertendo um pouco o ditado popular diria que nesses casos o importante é que “vão-se as unhas e ficam-se os dedos”.

Para outros males tinha a violeta que servia para curar boqueira. Boqueira na verdade é uma espécie de ferida que dava nos cantos da boca, causando rachaduras que doíam principalmente quando queríamos rir. Naquela época quem tinha boqueira era chamado de “boca rasgada”. E a gente vivia com os cantos da boca pintados com violeta, e logicamente isso servia de gozação por parte de todos. Ela também servia para as frieiras, que são afecções cutâneas que se desenvolvem nos pés e principalmente nos entrededos. Como era muito comum andar descalços, até porque não tínhamos sapatos, vira e mexe se pisava em fezes de animais. Assim, perecíamos indios caras-pálidas, todo pintado dos pés à cabeça.

Na extensa relação de mazelas, lembro de uma vez que tive cobreiro. Engraçado que descobri no dicionário [Aurélio, claro] que o nome correto é “cobrelo”, e que assim era chamado por que se imaginava que tal dermatose era provocada pelo contato da roupa sobre a qual haveria passado alguma cobra. Logo, cobreiro [dá para entender ou precisa desenhar?]. Porém, não é nada disso. Na verdade a tal doença cientificamente é denominada como Herpes-Zoster, doença aguda, produzida por vírus, caracterizada por inflamação de um ou mais gânglios, de raízes nervosas dorsais ou de gânglios de nervos cranianos. Apresenta-se como erupção vesicular dolorosa, na pele ou nas membranas mucosas, que se distribui ao longo do trajeto de nervos sensitivos periféricos originados nos gânglios afetados. Assim, umas espécies de bolhas surgiam na minha barriga formando uma faixa na horizontal. O negócio ardia e ia se espalhando pelo corpo, sempre na mesma direção. Diziam que se as duas partes se encontrassem, formando uma espécie de cinturão, a pessoa morreria. E eu escapei graças a uma resadeira que morava no outro lado da Fábrica de Postes, que ficava ao lado direito da rua que levava a minha casa.

Um dia minha mãe me levou até ela. A velha senhora morava numa casinha de taipa que ficava distante. Depois de analisar o problema mandou que sentasse enquanto se preparava para o ritual. Fiquei assustado sem saber o que iria acontecer. Ela voltou com duas folhas de mamão [virgem, segundo ela] e começou a rezar umas coisas estranhas enquanto me dava uma pisa de mato. Não sei se a senhora era índia, africana ou cigana. Sei apenas que era uma velha estranha que mais parecia uma bruxa dos contos de fadas. Depois de todo o vai e vem, começou a colocar o leite das folhas de mamão sobre as bolhas. Fez uma reza final e nos liberou. Não lembro com quanto tempo fiquei bom, mas sei que a reza da benzedeira funcionou mesmo. Penso então, no quanto a pobreza pode comprometer o desenvolvimento saudável da pessoa humana. Hoje entendo que enquanto categoria do herpes, o cobreiro tende a desaparecer depois de algum tempo. E por ter origem nervosa poderá surgir em situações de demasiado estresse ou prolongada exposição ao sol. Por ser uma doença provocada por vírus não tem cura, e por ser contagiosa pode ser transmitida a outras pessoas. Rebuscando as memórias lembro que meu irmão mais velho, Eduardo, também teve a mesma inflamação. Logo, foi ele o responsável pelo meu cinturão de bolhinhas dolorosas.

Na esteira das enfermidades causadas pela falta de condições dignas de higiene, vinham as brotoejas, que são erupções cutâneas formadas por pequenas vesículas [bexigas ou cavidades] acompanhadas de prurido [que é a sensação desagradável que causa coceira]. Para essas se usava pasta d’água. E lá íamos nós com nossas colorações corporais novamente. Dela não me recordo direito, mas da “minâncura” eu lembro. Servia para várias inflamações da pele e também para catinga de sovaco. Era uma pomada gelatinosa e oleosa que vinha em latinha redonda de cor alaranjada. Na tampa tinha a imagem de uma ancora azul com detalhes brancos. Todo mundo metia o dedo na pomada, passava nas axilas ou na pele, e logicamente assim se transmitia bactérias e doenças. Outra pomada horrorosa e a tal da Iodex. Era preta e pegajosa e quando esfregada na pele fedia demais. Servia para luxações e pancadas. Neste mesmo campo tinha o emplastro sabiá [acho que é assim, não sei]. Era um curativo grande, acho que em formato de tecido ou algo parecido, com furinhos para ventilação e respiração da pele. Coloca-se sobre a contusão e pronto. Era só esperar a dor passar. Eu adorava usar no pesccoço porque mesmo vestido todo mundo podia perceber. Para torcicolo havia benguê em pomada. Essa era geladinha e provocava frescor na pele. a embalagem era verde e branca e tinha a umagem de uma perna de jogador de futebol ao lado do nome. Já o Vick Vapurub me dava verdadeiro nojo. a gente colocava aquilo no nariz e ficava com os olhos cheios d´água. Cibalena era bom pra dor de cabeça e enxaqueca. Acho que a mesma coisa que a neosadina dos dias atuais. Mas o melhor de todos era "Alkacecer" - o alivio imediato, como anunciava o "reclame" [antiga propaganda de televisão]. Lembro até hoje. alguém slatava um dentro de um copo com água e ele fervilhava fazendo pequenas bolhinhas. Lembro que inventava até doença para tomar um daqueles, mas acho que era caro e nunca conseguia ser bem sucedido em meus intentos. Minha segunda irmã, Monica, parece que sofria do mesmo problema e inventava doenças só tomar o remédio que mais parecia refrigerante.

Para fraqueza tinha o óleo de fígado de bacalhau. Esse era terrível e de gosto repugnante. Toda casa que se preze tinha um vidro do remédio. Ele era grande, acho que devia ter pelo menos meio litro, o danado. O vidro era marrom e tinha a imagem de um velho pescador segurando pelas mãos um enorme bacalhau. O interessante é que a imagem era em alto relevo no próprio vidro, que tinha uma tampinha de enroscar. A dosagem era sucessivas colheres de sopa cheias. Aquilo descia pela garganta provocando arrepios e provocava certo desanimo que só passava quando esquecíamos a experiência traumática. Para caroços de pus ou furúnculos, esquentava-se óleo de comida numa colher e passava-se em uma folha de pimenta para cobrir o ferimento. Bicho-do-pé é um inseto [sinfonáptero, hectopsilídeo, ou Tunga Penetrans] cuja fêmea, para fecundar penetra na pele do porco ou do homem e põe seus ovos. E a gente esquentava uma agulha ou alfinete no fogo para esterilizar e depois cutucava os dedos até arrancar o bicho lá de dentro.

Para papeira o melhor era descanso, cama e uma boa frauda que cobria nossas bochechas e se amarrava na cabeça. A gente ficava parecendo um coelho orelhudo ou então o “Topogijo”, que era um desenho animado que tinha como personagem principal um rato bochechudo. Engraçado é descobrir que papeira é uma doença viral contagiosa que provoca a inflamação das glândulas salivares dos bois e dos carneiros, e que é transmitida ao homem e atinge principalmente as crianças. Acho que lá em casa todo mundo teve papeira. Eu, como não poderia deixar de ser, tive nas duas bochechas de uma vez só. É um inferno. Além de doer muito nos impedia de brincar. A única vantagem é que nesses dias de repouso não podíamos fazer esforços, para a papeira não descer para os ovos [como se chamava os testículos]. Assim alguém sempre se incumbia de nossas tarefas. Três-sol, que a gente chamava de “teisó” [acho que era assim que se escreveria] a gente sempre tinha também, e muito. Então esfregávamos o dedo indicador na palma da outra mão até ele esquentar e depois colocávamos sobre o caroço. Diziam que isso resolvia, mas na verdade acho mesmo que só contribuía para infeccionar mais ainda. Também ensinaram que devíamos cantar algo como: “teisó, teisó, vai pro cu da tua vó”. A sorte era que as pragas rogadas nunca pegavam, senão coitadas das pobres e nobres senhoras que nada tinha a ver com a história.

Nas berrugas, que o dicionário carinhosamente classifica como verrugas, que significam pequenas protuberâncias rugosas, a gente colocava leite de “avelóe”, que também era conhecido como “dedo do diabo”. Elas sempre apareciam principalmente nos cotovelos e joelhos. Também se podia utilizar um fio de cabelo, ou fio de rabo de cavalo, para amarrá-las e aos poucos arrancá-las. Depois se colocava mertiolate ou mercúrio para sarar. Cibasol era um comprimido que a gente devia amassar e colocar o pó sobre as feridas. Servia também para as inflamações provocadas pela topadas. Quando esse pozinho se misturava com a areia do quintal fazia uma crosta que a gente ficava alisando para limpar. Este ato de alisar feridas de certa forma provocava até uma sensação agradável. Neste sentido, lembro de uma que se localizava um pouco acima do joelho esquerdo. Foi provocada pela cama-de-mola [antiga cama de campana] que ao ser fechada prendeu a pela e provocou um corte. Essa ferida, que a gente chamava de pereba, me acompanhou por um bom temo. Eu lembro até que ela fez uma casca grossinha. Com o tempo as moscas fizeram dois buraquinhos e eu, de modo geral, gostava de vê-las colocando a língua pelos orifícios até atingir a inflamação. Acho que ali comecei a me interessar por pesquisas [quem sabe?]. Fato é que até hoje tenho a cicatriz da minha pereba de estimação. Isso prova que a pobreza deixa realmente marcas que serão eternas.

O hospital mais perto ficava no cordeiro, o Barão de Lucena. Na época Augusto Lucena era o prefeito de Recife, e logicamente que quem destruía patrimônios históricos e culturais, a revelia dos movimentos populares, não iria se preocupar com a saúde da população [ele entrou para a história como mandante e (in)responsável pela demolição da centenária Igreja dos Martírios, para ampliar a Av. Dantas Barreto]. O atendimento já era comprometido desde aquela época, mas era o único espaço com que se podia contar para tratar das coqueluches, varíolas, bronquites, meningites e tantas outras doenças que me acometeram. Especificamente a varíola, mais conhecida como bexiga, se espalhou pelo corpo todo. Na época tinha uma tal de vacinação coletiva que era um verdadeiro pandemônio para as crianças. Eram filas quilométricas sob o sol quente. Quando chegava a fatídica hora era de pedir clemência aos céus. A injeção era enorme e tinha uma agulha grossa que parecia rasgar nossa carne quando entrava. Engraçado é que era tudo de metal. Só muito tempo depois é que inventaram as pistolas e as seringas descatáveis. Nessa época as agulhas eram esquentas no fogo da vela. E assim as pessoas iam sendo carimbadas feito bichos. Tanto é verdade que muita gente tem marcado na pele a cicatriz deixada pelas injeções. Quase todos os meus irmãos tem. De qualquer forma é o registro de um tempo, não é mesmo? O furador de dedos também era outro profissional detestado por nós. Quando os boatos corriam espalhando sua chegada era um chororô coletivo. Ele tinha um aparelhozinho pontiagudo com que furava nossos dedos e colhia o sangue em uma lamina de vidro [acho que era]. Na verdade nunca soube para que servisse. Mas também a gente não tinha direito a opinar em nada e muito menos pedir explicações. Era entregar o dedo e curtir a dor depois.

Quando quebrei o braço pela primeira vez também fui levado ao mesmo hospital. Na verdade eu até achava bonitinho as pessoas com braços engessados. Tinha suas vantagens. Agente era chaleirado [mimado] e também tinha menos atribuições. Muitas vezes o braço quebrado servia como desculpas para a preguiça e a má vontade. Qualquer coisa ou solicitação mais pesarosa logo se podia argumenta: "estou doente". E assim podíamos curtir sossegados nossa quarentena. Imobilizar o braço ou perna era uma verdadeira obra de arte. Colocavam-se gazes por toda parte, enrolava-se com algodão e só depois se aplicava as ataduras molhadas com gesso. O médico ou enfermeiro alisava o gesso para retirar os excessos e fazer o acabamento e pronto. Era só fazer uma tipóia, colocar o braço e ir pra casa. Outra vantagem é que nesses passeios podíamos ter a sorte de ganhar pipocas e até picolés. Acho que os adultos pensavam que assim estariam compensando, de alguma forma, nosso sofrimento. O ruim é que não se podia comer caranguejos ou carne de porco porque era “remoso”, como se dizia. Na verdade remoso era tudo que o povo achava que poderia comprometer os tratamentos de doenças. Assim, tomar suco de abacaxi com leite também entrava nesta relação.

O mais importante de tudo é perceber que a maiorias destas enfermidades eram tratadas em casa, sem orientação e acompanhamento medico especializado. Na ausência das gestões públicas o povo recorria aos costumes e tradições para resolver seus problemas e legitimar a vida. Contava-se apenas com a sorte e com as redes sociais estabelecidas entre vizinhos e parentes próximos que acudiam nas situações mais graves. Eram dias difíceis e pesados. Dias de instabilidade política e de atraso econômico, intelectual e social. Eram tempos onde uma palavra mal interpretada poderia significar um desaparecimento sem grandes explicações. Tempos onde o medo silenciava a razão. Tempos onde a arbitrariedade e o autoritarismo violava impunemente os direitos humanos. Eu tinha apenas dois anos quando o Marechal Arthur da Costa e Silva [que subiu ao poder em 1967] entrou para a história como feroz tirano por impetrar o AI – 5 [Ato Institucional]. Estava começando a aprender a falar quando institucionalizaram a lei do silêncio através da consolidação da ditadura militar. Eu era apenas mais uma das tantas crianças que se tornaram herdeiras de um regime que suspendeu por duas décadas todas as liberdades democráticas e os direitos, e que permitiu a polícia realizar investigações, perseguições e prisões sem necessidade de mandato judicial.

Eu tinha três anos quando o então vice-presidente Pedro Aleixo, que era civil, foi proibido de assumir a presidência após o afastamento de Costa e Silva, devido a um derrame cerebral. E também quando em seu lugar, o alto comando das forças armadas organizou uma junta militar que governaria o país até a entrada do General Emílio Garrastazu Médici. Com certeza não me lembro de todos os detalhes históricos, mas lembro das situações de pobreza que vivi e vivenciei. Não recordo dos acordos politicos que viabilizaram a ditadura no país, mas relembro das muitas injustiças praticadas em nome do poder. Eu era uma criança que não entendia de política, de autoritarismo e de perseguições, mais que vivenciava ausências e exclusões sociais. E talvez por isso, hoje, tenha me transformado em um homem que entende, valoriza e luta pelo fundamental valor e importância da liberdade e da democracia.

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